Fotografar para nos obrigar a ver
Já não sabemos observar. Os ecrãs roubam-nos o tempo. Loaded Shine, de Paulo Nozolino, mostra-nos “uma atmosfera pesada, com flashes de felicidade”. No Círculo de Bellas Artes, Madrid, coração do PhotoEspaña, há uma sala transformada “num templo”, um convite a parar para pensar.
Vindos do chapão de luz e do bafo quente que já castiga Madrid, chegar à Sala Goya no piso térreo do Círculo de Bellas Artes funciona como um tónico. À entrada, a inscrição loaded shine (brilho carregado) parece paradoxal com o ambiente soturno e sereno do espaço onde estão as 20 fotografias verticais que Paulo Nozolino mostra no PhotoEspaña. Certo é que, depois de se contornar uma longa parede que esconde as imagens dos olhares de fora, é possível sentir a acalmia, a frescura e a solenidade da sala, mergulhada na obscuridade, pensada e modificada para nos levar para o ambiente de um templo, para um lugar onde a introspecção se torne possível.
Na apresentação de Loaded Shine no papel de comissário com carta-branca na edição que celebra o XX aniversário do festival, o fotógrafo espanhol Alberto García-Alix falou na “espiritualidade” que envolvia o espaço e disse, sem rodeios, por que é que entre os seis autores que escolheu para o festival deste ano estava o nome de Paulo Nozolino: “É um dos artistas europeus que mais me interessam.”
Depois do brilho forte dos flashes ter passado (numa sala repleta de jornalistas), Alix avançou um pouco mais ao Ípsilon as razões da admiração que tem pelo trabalho de Nozolino, classificando a sua participação como “um luxo”. “Sempre gostei muito da obra do Paulo. Conheço-o desde os anos 80. Quando começámos a planear este programa, pensei logo nele. Estas paisagens têm uma enorme carga emocional. Ele obriga-nos a ver, a perceber o que é que está à nossa frente. Parece que não se interessa por nada em particular, mas creio que faz fotografia para nos obrigar a ver.” Para o fotógrafo espanhol, este convite a determo-nos o mais possível nas imagens de Nozolino é potenciado por uma montagem que transmite “um ambiente sacro”, no sentido “de seriedade, de religiosidade e de diálogo com a consciência”.
Alinhadas apenas numa parede, as fotografias que dão corpo a Loaded Shine — o regresso de Nozolino às exposições individuais depois de Make do (2015) — foram captadas entre 2008 e 2013 em cidades como Nova Iorque, Lisboa, Paris e Berlim, bem como em zonas rurais de Portugal e França. Mas esta temporalidade e geografia é coisa que pouco interessa a um autor que quer “fazer frente ao tempo” e que ambiciona “a eternidade” para as suas fotografias. O conjunto que agora se mostra no PhotoEspaña — a segunda participação de Nozolino no festival madrileno, depois de Tuga, também no Círculo de Bellas Artes, em 2000 — revela as marcas essenciais da obra do fotógrafo: uma procura pela ruína, pelo que está prestes a desaparecer; uma reflexão sobre o estado do mundo; uma denúncia da violência e do esquecimento; uma relembrança da história e dos erros do passado; uma busca pelas cicatrizes e pelo passar do tempo; uma interpretação da realidade intimista e profundamente subjectiva; uma atenção às paisagens mais banais do quotidiano pessoal e colectivo; uma teimosia em mostrar aquilo a que já não se dá atenção; uma consciência da finitude. No universo fotográfico de Paulo Nozolino, escreve García-Alix num texto à entrada da exposição, vemos “um todo destruído que nos fala, que nos interroga, como um fogo lento”. Sentimos “a reverberação da ausência”.
Em conversa com o Ípsilon depois da inauguração, Nozolino aproximou-se do sentido destas palavras do fotógrafo espanhol, afirmando que com Loaded Shine (até 19 de Setembro) quis fazer “um elogio a um mundo que se está a perder, a uma decadência”, pela qual confessa “grande respeito”. “Procuro alguma da pureza desse estado de decadência em que estamos a viver. Por outro lado, a minha fotografia é também uma forma de resistência à violência do progresso, que está a roubar-nos tempo. Já não há tempo para pensar, só queremos o fútil.”
A escolha de uma fotografia que mostra um velho ecrã de televisão numa discoteca (transformado num adorno entre o revivalista e o futurista) demonstra essa vontade de querer falar da velocidade a que tudo acontece e da dependência das tecnologias, sinais do quotidiano das sociedades de hoje. “Ao longo dos tempos, têm tentado vender-nos uma ideia de felicidade contínua. Acontece que o progresso é extraordinariamente violento. E essa violência é de tal ordem que as pessoas têm de se aperceber dela, têm de tentar travá-la. É preciso pôr areia na engrenagem. É preciso haver descanso, caso contrário vamos ficar doidos.” Ainda a propósito de ecrãs, Nozolino fala de uma “loucura” social relacionada com uso de telemóveis que, segundo o fotógrafo, está a deixar pouco espaço para fazermos algo aparentemente tão simples como observar, contemplar. “As pessoas não largam o telemóvel a andar na rua, estão sempre a olhar para aquela porcaria, comem com o telemóvel ao lado. Este objecto está a tomar conta da vida das pessoas. Já não sabemos ver, olhar para o céu e contemplar uma nuvem a passar durante 15 minutos. Está tudo ocupado a olhar para ecrãs e a receber informação que não interessa nada. Temos de criar filtros para nos protegermos de tudo isto, que nos está a invadir. Estas fotografias são peças de reflexão, servem para nos obrigar a olhar, a parar para pensar. E, sobretudo, a sentir.”
Uma faca na água
O apelo ao “sentir” foi, aliás, uma das marcas do curto discurso de apresentação que Nozolino fez deste trabalho, em que explicou que Loaded Shine é uma descrição do seu “estado de espírito” e uma forma de dizer como se sente “a viver debaixo de uma atmosfera pesada, com flashes de felicidade, momentos de consciência clara”. Apontando para o início e para o fim da sala, assinalou aquilo que parecia não oferecer dúvidas e deixou um convite: “[É um exposição que] começa ali e acaba ali. São 20 fotografias alinhadas. Talvez não signifiquem muito, talvez sejam como uma faca na água, podem não mudar nada. Mas demonstram como me sinto no mundo em que estamos a viver. Por isso, observem-nas, sintam-nas e, se conseguirem, aproveitem-nas.”
O brilho carregado — que numas imagens é dado em pormenores (nas anilhas de metal de um esgoto, nas patas de um burro morto) e noutras sublinhado com a inscrição visual do flash (num ecrã de televisão, numa superfície reflectora onde foi impressa uma fotografia) — não é um referente obrigatório em todas as imagens da série, mas a ideia da sua existência, como uma frequência permanente que às vezes sofre um pico, fica plantada na cabeça de quem observa. Estes lampejos podem servir como indicação de um estado de espírito, mas também funcionam como alfinetadas, como se Nozolino nos quisesse manter despertos para o que se passa à nossa volta. No meio da penumbra, procura a luz para nos manter acordados. E, quando a luz natural não é suficiente, o fotógrafo convoca a luz artificial. Como naquela imagem que mostra tubos de esgoto em Berlim. À frente dela, começa a contar a “história por trás da fotografia”. “São esgotos de um hotel que, durante a Segunda Guerra Mundial, foi o Ministério da Cultura. Na mesma cave, ao lado destes esgotos, estavam guardados todos os quadros roubados por Hermann Göring [militar e político nazi], a arte considerada degenerada, picassos, mirós... É uma história por trás da fotografia. Mas o que me interessa é que são esgotos, a merda passa toda por aqui, independentemente desta ou de outras histórias. A história dos quadros é só um detalhe para nos rirmos um bocado, mas o que se vê nesta fotografia é que para mim é importante — a merda passa toda pelo mesmo lado.”
Entre dois narcisistas
Como nos velhos templos, o chão de madeira já muito gasto da Sala Goya range a cada passo durante as idas e vindas em frente das imagens, sobre as quais o fotógrafo confessa ter dificuldade em falar. O discurso é apontado para o conjunto do trabalho, mas de vez em quando deixa escapar uma ou outra revelação sobre uma fotografia em particular. Aponta para uma. E começa a falar. “Isto é num quarto de hotel em Paris. São as minhas calças penduradas. É como se fosse a ausência de mim próprio.” E pára à frente de outra, uma apropriação de outra fotografia, um tipo de imagem rara no conjunto da sua obra, mas que nesta série encontra dois exemplos. É uma fotografia de uma fotografia que mostra emigrantes acabados de chegar a Ellis Island, Nova Iorque, no princípio do século XX. Estão desalinhados e a mulher do centro olha frontalmente para o fotógrafo. Têm a roupa marcada. Nozolino aqui não hesita um segundo a conduzir-nos pelas subcamadas da superfície fotográfica: “Ao desembarcarem, aqueles a quem diagnosticassem uma doença venérea ou tuberculose, por exemplo, eram marcados com um ‘x’ no casaco e não entravam. Algumas décadas depois, alguém mandou marcar outras pessoas com um símbolo judaico. Estas pessoas que foram marcadas em Nova Iorque sãos os únicos rostos humanos que aparecem nesta exposição. Há aqui uma ausência de figuras humanas, mas quero relembrar sempre aqueles que são marcados, com um ‘x’ ou com uma estrela de David, como estando abaixo. Sou tão contra isso. Estamos a viver uma era em que Donald Trump está a fazer a mesma coisa. Não põe nada na roupa das pessoas, mas entra nos seus iPhones para ver se há lá alguma coisa contra ele para não as deixar entrar no país. Este processo de selecção continua, este fascismo continua, esta distinção entre as pessoas de bem e de ‘mal’ continua. E esta fotografia serve para lembrar isto.”
No Círculo de Bellas Artes, uma das mais carismáticas salas de exposições em Madrid, habitual centro nevrálgico do PhotoEspaña, Nozolino diz-se “ensanduichado entre dois enormes narcisistas”. Por baixo, numa sala subterrânea, a obra de Pierre Moliner e as suas infindáveis encarnações, encenações e exercícios sexo-fetichistas. Por cima, Antoine d’Agata e a sua deriva pelas dependências e pela tortura auto-infligida. “A progressão por estas três exposições faz muito sentido. Temos no mesmo edifício uma descida ao inferno através do boudoir intimista e voyeur de Molinier, depois esta sala que se apresenta como um templo de meditação, e lá em cima, no último piso, o trabalho de Antoine d’Agata, em que o sujeito, à semelhança de Molinier, também é a decadência.”
Tanto d’Agata como Molinier fazem parte do programa comissariado por Alberto García-Alix. Paulo Nozolino lembra ao Ípsilon o momento em que o fotógrafo espanhol viu pela primeira vez as imagens de Loaded Shine e lhe explicou porque precisava delas naquele percurso expositivo. “Ele adorou o trabalho. Disse-me que eram paisagens morais. E que era precisamente aquilo que lhe faltava dentro do conjunto de trabalhos em que já tinha pensado, que estavam sobretudo ligados ao sexo e à carnalidade.”
A amizade entre García-Alix e Nozolino é antiga e não está fundada apenas na fotografia. Os dois conheceram-se nos anos na movida madrilena, na década de 1980. Nozolino revela, entre sorrisos, que o que mais interessa a Alix pode muito bem ser outra coisa: “Uma vez ele disse-me que fazia fotografia sobretudo para ‘alimentar’ as Harleys. E isto também mostra como é preciso relativizar aquilo que fazemos. Senão torna-se autofágico, entramos dentro de uma máquina de lavar programada para as 5 mil rotações.” Na fotografia, Nozolino quer fugir dessa lógica “de supermercado”. “O meu trabalho não é para estar dentro da máquina de lavar. Estas fotografias devem ser observadas calmamente, devem potenciar meditação. Não sei se consegui, mas estou contente com o que fiz nesta exposição.”
O Ípsilon viajou a convite do TurEspaña e do PhotoEspaña