A bipolaridade da Venezuela: nas ruas, o desastre; na televisão do Presidente Maduro, tudo bonito

A história dos imigrantes venezuelanos em Portugal é "sempre a mesma", dizem -- é feita de angústia e tristeza, mas também de gratidão pelo sentimento de segurança e a perspectiva de um futuro melhor

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Mariangela e Egna já vivem em Portugal há mais de um ano. Adriano Miranda/Público

Para Mariangela e Egna, duas venezuelanas de 24 e 27 anos de idade que já vivem em Portugal há mais de um ano, é muito difícil adormecer sem chorar. “Quando cheguei, e nos primeiros seis meses, acordava, chorava. Andava na rua, chorava. Voltava para casa, chorava”, lembra Mariangela Ferrante. “Chegas a casa cansada do trabalho e queres poder desligar, mas é difícil arranjar sono quando ao teu telefone chega toda a maldade que se está a passar na Venezuela, só informações negras, escuras. Adormecer é sempre a chorar”, completa Egna Regalado.

São as mensagens e notificações que chegam aos telemóveis, as conversas que se fazem nas redes sociais, as notícias que procuram ler na Internet e que passam nos ecrãs dos televisores portugueses que as mantêm constantemente ligadas ao seu país natal – ao qual, muitas décadas antes, chegaram os seus avós vindos de Itália e de Portugal, e onde ainda permanecem muitos dos seus familiares, a sofrer com a violência, a escassez e a falta de perspectiva de um futuro melhor. “Nós aqui temos uma vida dupla, porque é cá que estamos a trabalhar mas é lá onde está a nossa mente. Há um fio que não se corta nunca”, diz Egna. “Foi o país que nos deu a vida, é natural”, justifica Mariangela.

E por isso, o que lêem, o que vêem e o que ouvem das famílias, enche-as de tristeza. “É principalmente um sentimento de impotência”, dizem, certas que cá, como lá, não podem fazer muito para mudar a situação. “Vês as imagens do teu país, a tua gente na rua, metade a querer mudar o Governo, e outra metade que está conformada. Então, o que vais conseguir fazer, o que é que podes mudar?”, pergunta Mariangela.

A resposta é: “mudas-te a ti”. Apesar do sacrifício que é viver longe, as duas dizem que permanecer na Venezuela, nas actuais circunstâncias, seria hipotecar o futuro de uma vida diferente, melhor. “Qualquer jovem pensa em estudar, trabalhar, arranjar a sua casa, constituir família. É complicado ter 22 anos e não ter a perspectiva de poder fazer nada disso”, nota Mariangela, cujo salário na Venezuela, quando começou a trabalhar, “não dava para nada”. A decisão de sair custou, mas segundo ela, corria o risco de chegar aos 50 anos e perceber que tinha perdido a sua vida – a vinda para Portugal foi uma opção pensada, pela facilidade de ter passaporte europeu (italiano) e por já ter uma tia a viver no país. “Ela ajudou-me a tratar dos papéis e eu vim”.

No caso de Egna, a partida foi motivada pelo fim dos estudos secundários da irmã mais nova. “Ela saiu da escola e nem queria pensar em começar a faculdade lá sem saber se podia terminar. Por isso, decidimos começar do zero, e a opção mais rápida e mais cómoda era vir para Portugal. Temos dupla nacionalidade, a cultura e o idioma não eram totalmente estranhos”, explica. Fazem agora parte da diáspora venezuelana, um conceito que, notam, é uma novidade para o país: “Nós [venezuelanos] nunca fomos imigrantes, sempre recebemos toda a gente. Mas agora, as terceiras gerações estão a deixar a Venezuela e a procurar os países dos seus avós”.

Em Portugal, as duas fizeram novos estudos e encontraram trabalho na restauração, um sector que nunca antes tinham contemplado e que dizem lhes traz grande satisfação. “A adaptação é difícil e ter uma oportunidade aqui também é complicado”, reconhece Egna. “Mas em Portugal sabes que um salário te dá independência”, contrapõe Mariangela. “Aqui podes ficar tranquilo, porque sabes que tens para comer, que tens hospitais, que tens segurança”, acrescenta a amiga.

Segundo garantem as duas venezuelanas que se conheceram no Porto, onde agora vivem, a sua “história é igual à de toda a gente” que veio para cá: o que passam e o que sentem, do dinheiro que juntam para poder enviar para a Venezuela os produtos de que os seus familiares precisam, ao desespero que sentem quando durante horas as suas mensagens ficam sem resposta – é porque não há luz e caiu a Internet, ou porque a mãe foi à rua e não voltou? “A situação é tão perigosa que podes sair para comprar pão e não sabes se vais voltar”. À violência que já não era novidade, acresce agora a angústia de mais de 50 dias de protestos em Caracas, que já fizeram dezenas de mortos. “A bipolaridade que se vive na Venezuela é esta: na rua é o desastre, mas na televisão do Presidente Maduro é tudo bonito”, resume Egna.

Para a maior parte dos venezuelanos que, como Egna e Mariangela, sentem o desejo e a responsabilidade de ajudar o seu país, falar sobre o que se passa lá assume uma importância particular. Todos eles sublinham a necessidade de sensibilizar (e mobilizar) a opinião pública portuguesa, para que não se imponha a indiferença perante a repetição das notícias de confrontos de rua ou de instabilidade política na Venezuela — há uma resposta a esta crise que tem de passar pela reacção da comunidade internacional, defendem.

Organizações como a Venexos – Associação Civil de Venezuelanos em Lisboa têm organizado concentrações e protestos em várias cidades portuguesas onde já existem  comunidades de venezuelanos, com o objectivo de chamar a atenção “para a grave crise humanitária, social, económica e política que atravessa a Venezuela”. Ao mesmo tempo, também pretendem dar conta dos entraves que ainda impedem os portugueses e luso-descendentes na Venezuela de regressar a Portugal — do preço das passagens aéreas ao deferimento de processos administrativos (por exemplo para o reconhecimento de equivalências de graus académicos), ou ainda a incerteza do pagamento de pensões pelo Estado venezuelano.

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