A estrada de Alice Coltrane para Deus
Deixou uma carreira de sucesso no jazz para se dedicar à oração e ao louvor pela música. As gravações desse período de Alice Coltrane eram quase secretas. The Ecstatic Music of Alice Coltrane Turiyasangitananda desfaz uma injustiça histórica.
Algures em 1982, Alice Coltrane surpreendeu os seus discípulos espirituais. Convidou-os a ouvirem uma cassete nos auscultadores. “Ouvimos melodias belíssimas e uma voz. Seria um homem ou uma mulher? Não tínhamos a certeza. Mais tarde perguntámos à Swamini [Alice Coltrane] e claro que era ela. Estava a cantar num registo grave que nunca tínhamos ouvido. Perguntámos-lhe sobre aquela voz, ela disse que tinha meditado e que Deus lhe tinha dito que devia cantar e usar aquela voz. Ela disse que soava assim porque não era masculina nem feminina – era a voz da alma”, contou Radha Botofasina, seguidora de Alice.
Por esta altura, Alice Coltrane era já Turiyasangitananda (“a canção mais elevada de Deus”, em sânscrito), uma mulher de 45 anos totalmente imersa na espiritualidade hindu. Ao fim de tantos anos de carreira, Alice, que se tornara conhecida como harpista, pianista e organista jazz, autora de discos fundamentais como Journey in Satchidananda (1971), e mulher e colaboradora de John Coltrane, cantava. E que voz maravilhosa era aquela que se fazia acompanhar por um sintetizador em Turiya Sings, cassete daquele ano de 1982. Mas o mundo não a ouviu.
Depois da morte de John Coltrane, em 1967, com quem casara dois anos antes, Alice, então com 30 anos e quatro filhos, aprofundou a sua religiosidade. Estudou os textos védicos, precursores do hinduísmo moderno. Em 1969, começou a estudar com Satchidananda Saraswati, guru indiano que se tornou famoso no Ocidente por discursar no primeiro festival de Woodstock. Com ele, Alice aprendeu vários cânticos de devoção e peregrinou à Índia, onde descobriu um mundo musical tão antigo quanto excitante.
Levou este conhecimento para a Califórnia, onde se fixou em 1972. Abriu o Vedantic Center na sua casa, em Woodland Hills, a norte de Los Angeles. Em 1983, depois da morte do filho John Jr., deu um passo em frente: investiu numa vasta propriedade ali perto, com 19 hectares, onde abriu um ashram (retiro espiritual das religiões indianas). Por lá passaram centenas de pessoas, entre as quais Steven Ellison, sobrinho-neto de Alice que hoje assina música electrónica como Flying Lotus, e Surya Botofasina, músico que dirigiu em Maio um concerto de homenagem a Alice Coltrane, em Nova Iorque.
“Crescer no ashram parecia o paraíso na Terra. Como crianças, todas sabíamos a sorte que tínhamos. Havia tanto espaço livre e paz. Juntando isso às pessoas belas que ali encontrávamos todos os dias, resultava em algo verdadeiramente bonito”, conta, por email, Surya, filho de Radha Botofasina.
Os cânticos religiosos marcavam o dia-a-dia do ashram. Turiya Sings foi o primeiro de vários discos, feitos entre 1982 e 1995, que documentam a música ali cantada e tocada. Esses registos, editados em cassetes que eram vendidas no ashram (poucas centenas de cópias foram feitas de cada), eram objecto de culto para coleccionadores, um prazer restrito. Até agora: a Luaka Bop juntou algumas destas gravações em World Spirituality Classics, Volume 1: The Ecstatic Music of Alice Coltrane Turiyasangitananda, o primeiro de uma série de discos que a editora de David Byrne vai dedicar à música espiritual.
Obtidas e remasterizadas a partir das gravações originais, estas peças podem fazer justiça a um período quase desconhecido da carreira de Alice Coltrane, que morreu em 2007. Em Om Rama, sintetizadores lustrosos sobem e descem, arrastando-nos com eles, enquanto um coro louva Rama, uma das principais divindades do hinduísmo, e pandeiretas arranjam um festim cósmico. De repente, tudo se cala e estamos no embalo gospel da voz de John Henderson, que guia um coro de louvor. Nove minutos depois, no fim de Om Rama, haveremos de ouvir de novo aquele sintetizador numa fulgurante subida aos céus. Er Ra é conduzida pela harpa de Coltrane, estrela em tantos discos jazz; Om Shanti tem camadas de vozes a levitar, vozes essas que levarão Rama Guru para um delírio blues; Rama Rama cruza a sitar com teclados majestosos e o cântico belíssimo de Alice – como é que uma voz destas estivera em silêncio tantos anos?
O que acabámos de ouvir? Gospel, bhajans (hinos religiosos) da Índia, blues, um sintetizador moderno (um Oberheim OB8, que chegou ao mercado em 1983) em viagens ao Universo e a voz de Alice, a solo ou como comando de um coro. “Cantar (…) permite que o cantor chegue aos domínios mais elevados da consciência espiritual. Pode levar uma pessoa para mais perto de Deus porque essa pessoa chama Deus”, escreveu Alice nas notas que acompanham Divine Songs (1987), uma das cassetes representadas nesta compilação.
Procurar Deus
Surya descreve a vida no ashram. “Música, bhajans, mantras, orações, fazia tudo parte da vida diária de diferentes formas”, conta. “A forma mais simples era a existência constante de cânticos de nomes de deuses. A uma certa altura, tocava-se bhajans duas vezes por dia no nosso mandir [templo].” No centro de tudo, uma pessoa: Alice. “A sua presença e orientação divinas foram da maior importância para mim. Só queria estar na presença dela, ela era uma pessoa que estava claramente a viver da forma mais devocional possível. Foi sempre esta perfeita combinação de inspiração, devoção a Deus e humildade.”
A busca do divino começara muito antes de Alice Coltrane abrir o ashram numa zona alta e sossegada da Califórnia. Nascida numa família baptista, em Detroit, Alice Lucille McLeod interessou-se desde cedo pela música – aprendeu música clássica aos sete anos, revelou-se um prodígio ao piano, tocou em igrejas, como a mãe. Cedo foi também parar ao jazz, tornando-se uma pianista bebop de qualidades excepcionais. A música religiosa e secular cruzavam-se logo nos primeiros anos de vida.
Com John Coltrane, meditou e conheceu outras fés – John lia o Alcorão, o Bagavadguitá (escritura do hinduísmo) e outros textos religiosos, retirando lições de cada um. “Nenhuma estrada é fácil, mas todas levam a Deus”, escreveu no clássico A Love Supreme, editado em 1965.
Depois da morte de John, Alice comia pouco, dormia mal, alucinava. Mas, neste período difícil, experimentou aquilo a que chamou um “reacordar”. “A partir dessa altura, a sua música ora tentava expressar a sua experiência do divino ou era escrita e interpretada como uma oferenda a Deus", escreveu Franya J. Berkman na biografia Monument Eternal: The Music of Alice Coltrane (2010).
Logo no primeiro álbum a solo, A Monastic Trio (1968), Alice Coltrane mergulhava o jazz no misticismo do Oriente. Os títulos e a música dos discos seguintes indicam essa vontade de procurar Deus e fundir o gospel, o jazz, os blues e a música indiana. Journey in Satchidananda (1971) já reflectia a estadia de cinco semanas na Índia e a inspiração do guru Satchidananda Saraswati. “Ele conhece o caminho do infinito, através dos reinos celestiais, para a eternidade”, cantaria Alice em Journey to Satchidananda, peça de 1995 presente em The Ecstatic Music of Alice Coltrane Turiyasangitananda.
Em 1978, Alice renunciou a subir na hierarquia do jazz e praticamente desapareceu da vida pública.
O som que é Deus
No ashram de Alice Coltrane cabiam todas as religiões – tal como na sua música cabiam o gospel cristão (muitos dos discípulos tinham esse passado) e referências ao islão e até à religião do antigo Egipto. Alice era a swamini. De túnica laranja e sandálias, conduzia as sessões de culto através da música. Para ela, tocar instrumentos e cantar não era uma “linguagem musical”, mas sim “uma linguagem espiritual”.
Num conjunto de entrevistas feitas por Mark McNeill para uma tese académica sobre Alice Coltrane, Varun Soni, responsável pela vida religiosa da Universidade da Califórnia do Sul, explica: “Nos contextos ocidental ou abraâmico [as religiões monoteístas cuja origem comum é Abraão, como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo], dizemos: ‘no princípio havia Deus e Deus era a palavra’. Bem, na perspectiva hindu, no início havia o som e esse som era Om. É o som da consciência universal. É o som da criação e da destruição. É um som que liga as consciências e é o som que é Deus. Não representa Deus, é Deus.”
Segundo a biógrafa Franya J. Berkman, Alice Coltrane superou o fardo de “ser a viúva de John Coltrane” e desmontou “as expectativas sociais” que existiam nos anos 1960 e 1970 “para uma música jazz afro-americana de Detroit, uma mulher baptista de uma família conservadora de classe média, uma mãe de quatro filhos”. “Certamente que não era esperado que Alice se tornasse uma improvisadora avant-garde, quanto mais uma swamini”, refere Berkman. “A relação mística e pessoal de Alice com o divino parece ter dado a direcção e a força de que ela precisava para transcender as expectativas sociais, o cepticismo e percorrer o seu próprio caminho criativo.”