Desculpem, mas o melhor do amor é a rotina

Não me enganem com unicórnios de plástico: o amor é em si mesmo uma coisa extraordinária, e é precisamente na rotina que ele se torna ainda mais extraordinário. Não precisa de néones para nos deixar zonzos.

Sou especialista em fantasia e, por isso mesmo, difícil de enganar quando se trata de devaneios. Consigo ver logo se um unicórnio é fruto de uma genuína imaginação ou uma grosseira falsificação. Um nasce de dentro, o outro é impingido. De um lado, uma fantasia pura; do outro, um embuste de plástico. No amor, a relação entre a fantasia e o embuste é igual: os unicórnios existem, têm é de ser inventados por nós, não podem vir de fora.

Por isso é que tenho uma teoria, e não me importo nada que seja só minha (como nos amores, há teses que não são para dividir). A minha teoria é que só se queixa da rotina no amor quem não gosta ou quem tem pouca imaginação. Os pouco imaginativos sofrem de uma espécie de capricho das emoções, como se elas não fossem carrossel que chegue. Capricho é a palavra: é exigir mais, como numa birra de bebés, mais estímulos, como se o amor não fosse estímulo que chegue. É exigir um amor como nas publicidades da televisão, postiço porque o original não excita.

Como é que a rotina pode não ser boa no amor? A rotina é o melhor do amor, e até do resto que vem com ele. Na minha teoria, essa ideia de que a rotina mata o amor foi criada para vender algumas revistas. Dicas e dicas sobre como vencer a rotina no amor. Jantares à luz das velas, viagens inesperadas. Não, na minha cabeça cheia de fantasia, o amor não é parolo: não precisa de paisagens deslumbrantes à volta, nem de jantares requintados; na minha cabeça, o amor é uma coisa delicada, é uma coisa grande feita de coisas pequenas, é uma coisa grande, como cantam os Beach Boys, que só deus sabe como seria a nossa vida sem ele; e é uma coisa pequena, de todos os dias, de pantufas e pijama.

Vencer a rotina no amor? Não, obrigada, eu quero-a. É que não faz sentido. Se é bom, quero todos os dias. O meu capricho talvez seja esse: o de escolher apaixonar-me pelas coisas mais pequenas, pelo quotidiano, e por querer as pessoas de quem gosto nesse quotidiano. Esse é o meu capricho, mas também a minha satisfação: o de me saber apaixonar por isso, e de torcer o nariz ao resto, aos amores luminosos dos arranha-céus das publicidades.

Como num passeio a pé, as ruas não precisam de ser sempre as mesmas, mas não é preciso dar a volta ao mundo para encontrar um espanto. No amor é o mesmo. Não me enganem com unicórnios de plástico: o amor é em si mesmo uma coisa extraordinária, e é precisamente na rotina que ele se torna ainda mais extraordinário. Não precisa de néones para nos deixar zonzos.

Eu conheço uma pessoa que está com outra há 40 anos. Ela diz-me:

– Claro que já não estou apaixonada.

Eu faço questão de não acreditar, mas ele ouve, e riem-se os dois.

O que eu sei é que, 40 anos depois, ela ainda faz um penteado novo antes de ir esperá-lo ao aeroporto. Era uma viagem Porto-Faro, não podia haver nada mais banal, mas o cabelo dela estava extraordinário. Ela não admite que andou ali com ganchos e secadores por causa dele. Mas eu já conheço a rotina deles de ginjeira, a mim não me enganam. Aquilo é um unicórnio verdadeiro. 

 

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