Os partidos morrem. E o socialismo?
O que se perde nesta dupla deriva neoliberal ou neonacionalista é, no fundo, o próprio socialismo.
Os socialistas espanhóis foram ontem votar, como noticiou o PÚBLICO, perante a ameaça de tombarem na irrelevância política. Não é para menos: após os casos da Grécia e da Holanda, um terceiro partido socialista europeu colapsou e arrisca-se a desaparecer em França. Que se passa?
Poderíamos encolher os ombros dizendo que isto é o que acontece aos partidos que perdem sentido: não sendo por necessidade eternos, desaparecem. Mas essa é ainda uma explicação curta, porque aquilo que nos deve interessar não é tanto o que sucede ao partido, mas acima de tudo o que acontecerá às ideias que em tempos o animaram. Os partidos socialistas podem morrer, já se viu. E o socialismo?
Esgravatando um pouco mais, uma das explicações para o definhamento dos partidos socialistas é que deixaram de ser socialistas. Sem ideias perante a globalização, a crise ecológica ou a financeirização do capitalismo, os socialistas de “terceira via” acabaram por aceitar que o mercado fosse, com um toque aqui e outro ali, a principal via de fornecimento de bens públicos à população. Onde havia obras públicas, passou a haver parcerias público-privadas. Onde havia políticas de habitação, passou a haver empréstimos imobiliários. Onde havia aumentos de salários, passou a haver cartões de crédito para pagar com cada vez mais dificuldade ao fim do mês.
Este diagnóstico, que costuma ser feito à esquerda dos partidos socialistas, parece-me em grande medida correto. O meu problema não é com o diagnóstico, mas com o prognóstico. Se é verdade que a esquerda perdeu a sua capacidade propositiva desde o fim da guerra fria, não é menos verdade que ela não a vai conseguir recuperar se insistir em roubar ideias à direita. E isso, no entanto, é exatamente o que alguma esquerda eurofóbica está a fazer. Onde numa ponta da esquerda os mais centristas foram buscar o neoliberalismo a Thatcher e a Reagan, na outra ponta os mais extremistas foram buscar à direita o discurso populista e anti-União Europeia. Num caso como noutro, o resultado não pode ser bonito. As ideias têm vida própria: é tão impossível importar o neoliberalismo e querer vesti-lo de esquerda socialmente justa como pensar que importando o neonacionalismo se consegue controlar a sua essência xenófoba e agressiva. Neste caso, na verdade, a ilusão é mais perigosa ainda, sabendo nós como o nacionalismo põe em causa a democracia, o estado de direito e os direitos humanos. Normalizá-lo é convidá-lo a reentrar na história e ganhar o poder. Sabemos o preço que se pagou por isso da última vez que sucedeu.
O que se perde nesta dupla deriva neoliberal ou neonacionalista é, no fundo, o próprio socialismo. O socialismo nasceu na revolução industrial, na Europa e em grande medida para a Europa também, a partir da noção — que ainda é válida — de que todas as sociedades europeias se encontravam diferenciadamente sujeitas aos efeitos dos mesmos impactos económicos. Para lidar com esta realidade, os socialistas foram beber à fonte do século XVIII as ideias cosmopolitas de uma solidariedade universal baseada na tríade liberdade-igualdade-fraternidade.
Tudo no que vemos à nossa volta, da automação do trabalho à revolução na medicina, das alterações climáticas à crise global dos direitos humanos, nos impele a procurar mais solidariedade universal e não menos. Mas tal como a cedência ideológica à desregulação dos mercados não resolveu, antes agravou, os nossos problemas de desigualdade, também a cedência ao fechamento nacional não contribuirá para mais do que nos deixar à beira do precipício autoritário. Ambas as derivas prolongam a situação de dependência e dominação em que muita gente vive quotidianamente e com isso impedem ou atrasam a emancipação humana. A esquerda não pode perder mais outra década sem apresentar o seu modelo para a globalização, modelo esse que não poderá deixar de passar pela Europa. Se não o fizer, arrisca-se a perder o comboio definitivamente.