Cada vez mais crianças sofrem as consequências da violência entre os pais
Bebés podem ser apanhados no conflito e crianças a partir dos quatro anos já tentam proteger a vítima. Os casos de exposição a estes comportamentos foram os que mais aumentaram nas comissões de protecção de crianças e jovens (CPCJ) em 2016.
As situações de crianças expostas à violência entre os pais tem sido nos últimos anos aquela que predomina no universo das sinalizações por exposição a comportamentos que comprometem o bem-estar e o desenvolvimento da criança, que também inclui os comportamentos desviantes ou de consumos. A violência doméstica chegou a representar 90% dos casos relativos a essa problemática, a nível nacional. Em 2016, foi de mais de dois terços (67,7%).
O impacto que esta violência do dia-a-dia tem em crianças muito pequeninas é uma das grandes preocupações de uma das 309 Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) instaladas no país, e ouvida pelo PÚBLICO, no dia em que começa o Encontro Nacional de Avaliação da Actividade das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens, onde será apresentada uma síntese do relatório anual de actividades, que apenas será conhecido em Junho quando for entregue à Assembleia da República.
“Tivemos mais 100 processos relativos a violência doméstica. Temos agora um pouco mais de 200 processos por essa razão" num total de 270 por exposição a comportamentos negativos, "o que é dramático”, diz a presidente da CPCJ de Sintra Oriental, Sandra Feliciano, assistente social. No total do universo dos comportamentos que comprometem o desenvolvimento da criança "o conflito parental ou a violência doméstica sempre foi e continua a ser de mais de 70%” em Sintra Oriental.
“Tínhamos muitos conflitos parentais, agora há mais violência doméstica”, esclarece. E são casos que afectam crianças muito pequenas.
Crianças atingidas
“Tivemos a situação de um bebé com menos de um ano que ficou ferido no meio da agressão entre os pais. Caiu no chão e sofreu um traumatismo craniano. Teve de ser hospitalizado”, diz a responsável. “Há crianças batidas porque estão ao colo das vítimas” e são apanhadas nos movimentos de quem agride. “Um menino levou com um comando da televisão na cabeça e teve que ser assistido.” E ainda há as crianças que se metem entre os pais, para travar a situação. “Aos quatro anos já o fazem: tentar separar os pais ou proteger a vítima, o que nos preocupa muito."
Outra grande preocupação, porque afecta crianças de tenra idade, acrescenta, é "o número de crianças abandonadas ou entregues a si próprias e os maus-tratos físicos” porque embora possam não estar a aumentar no total “estão a ter um crescimento enorme em crianças até aos cinco anos”. Acontece com crianças muito pequenas que ainda não estão na escola e, como tal, “estão só na dependência dos agressores”. "Não há um professor, não há acompanhamento”, porque a criança está fora do sistema escolar.
Na apresentação prévia aos jornalistas da síntese do relatório de 2016, o presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), juiz-conselheiro jubilado Armando Leandro, colocou a tónica na necessidade de um envolvimento de toda a comunidade, para além da escola, e isso significa estar atento aos sinais o que, por sua vez, permite “uma maior capacidade de intervenção preventiva” que permita identificar os factores de risco” e “fazer o diagnóstico das situações”, disse, defendendo “uma intervenção comunitária, quer preventiva, quer reparadora”. Nestas e noutras situações.
Arquivados e reabertos
No resumo apresentado, e relativamente a 2015, “constata-se que o número de situações por exposição a comportamentos que possam comprometer o bem-estar e desenvolvimento da criança aumenta significativamente”. Esse aumento tem sido constante nos últimos anos. Em 2016, houve 12851 situações comunicadas, mais 614 do que em 2015, e mais 1989 do que em 2014. A grande maioria (67,7%) é relativa a sinalizações por violência doméstica.
Outra conclusão: o número de situações por negligência mantém valores semelhantes aos de 2015, mas reflectindo um ligeiro aumento (mais 111 processos), depois de ter diminuído nos últimos dois anos. Continua a ser a segunda situação mais importante. Em contrapartida, diminuiu no último ano a frequência de ”situações de perigo em que esteja em causa o direito à educação” – como insucesso ou abandono escolar – e o número de casos por maus-tratos físicos (1887 em 2016).
Se o universo de processos arquivados aumentou em 2016, o que para a secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, é um sinal positivo da "maior capacidade de resposta das CPCJ", também o número de processos reabertos tem vindo a crescer. No ano passado, houve 8352 processos reabertos, depois de terem sido 8328 em 2015 quando aumentaram aos 7993 processos reabertos em 2014.
Quer isso dizer que as situações não ficam resolvidas? O que está a falhar? “Essa é uma área sensível”, disse Ana Sofia Antunes em resposta aos jornalistas. “Se por um lado podemos ser muito criticados por aplicar muitas medidas em meio natural de vida [mantendo a criança no seio da família] podemos também ser muito criticados pela retirada às famílias”.
A reabertura do processo de uma criança “não significa necessariamente que a situação que levou à abertura do processo não tenha ficado resolvida”, acrescenta. “Pode tratar-se de uma situação que ficou sanada e que, anos mais tarde, teve de voltar a ser acompanhada."
Amadora volta a liderar
No panorama nacional, a CPCJ da Amadora voltou a liderar (com 1893 processos em 2016) na lista do volume processual global (que engloba os processos abertos, transitados do ano anterior e os reabertos). Sintra Oriental passou a ser a segunda maior do país, com um volume global de 1785 processos, seguida de Sintra Ocidental e de Loures, que tinha liderado em 2015.
Para Sandra Feliciano, as situações que aumentam entre as crianças até aos cinco anos são as mais preocupantes. E insiste nos casos de violência doméstica que têm “um impacto tão adverso no desenvolvimento cognitivo, comportamental, social ou emocional da criança” como situações graves de maus-tratos físicos.
De que forma? “O medo constante", responde Sandra Feliciano. "Essa angústia constante de tentarem prever o desfecho das discussões ou de tentar perceber como vai chegar a casa” a pessoa que agride, com que disposição. Um ambiente diário de muita hostilidade e de muita violência deixa muitas marcas, diz. E lembra que muitas vítimas desistem das queixas, por dependência financeira ou emocional, levando os filhos a viver estas situações repetidamente no tempo, o que é muito prejudicial para o seu desenvolvimento. Por isso diz, referindo-se às vítimas, que devem romper com estas situações: "Se querem continuar a ser mães protectoras, não podem permitir que os filhos se mantenham expostos a situações de violência.