James Baldwin, pregador de uma América que ainda está por converter
Romancista, ensaísta, poeta, dramaturgo, activista, foi um dos grandes intérpretes da América do século XX (e da experiência afro-americana em particular). A América do século XXI recuperou-o para dizer, em coro com ele, que pouco mudou. Um documentário trá-lo até nós, a seguir virão os livros.
Em vida, James Baldwin foi muitas vezes confrontado com a questão de ser um escritor profético. Nessas alturas, o sorriso quase sempre se escancarava, revelando o enorme espaço entre os seus dois dentes da frente. Depois o rosto fechava-se numa seriedade que lhe era clássica e respondia de olhar fixo no interlocutor. Podia ser uma resposta como a que deu à Paris Review em 1984. "Eu não tento ser profético, como não me sento para escrever literatura. É simplesmente isto: um escritor tem de assumir todos os riscos do que põe no papel (...). Ninguém pode controlar essa realidade. Isso lembra-me uma coisa que Pablo Picasso é suposto ter dito a Gertrude Stein enquanto pintava o seu retrato. Gertrude disse: 'Eu não pareço assim.' E Picasso respondeu: 'Mas vai parecer.' E ele estava certo."
Baldwin sabia causar efeito. Aprendeu-o no tempo em que fez sermões na Igreja Pentecostal do Harlem entre os 14 e os 17 anos. Estudava os textos evangélicos e improvisava perante a audiência – “como um músico de jazz numa composição”, diria –, lendo-lhe as reacções, ajustando o que dizia de modo a ganhar e a agarrar a atenção. Era um pregador a tentar passar uma mensagem. Abandonaria a religião, mas foi no púlpito que aprendeu o poder da palavra e, no caso da oralidade, do tom.
Na escrita, tudo era diferente. Um jogo cego, íntimo, em que não vislumbrava o leitor e não havia a tentação do efeito. Isso seria fazer batota. A única opção era ser verdadeiro em relação ao mundo em que crescera, em que vivia, àquilo que estava na sua cabeça e era preciso pôr para fora. “Era o chamamento de testemunhar a verdade que dominava o ser de Baldwin, e nesse papel ele poderia ser duro, intransigente e brutalmente cruel”, escreve o seu amigo e biógrafo David Leeming, em James Baldwin, a biography (1994). Escrevia sobre o que conhecia e o incomodava, um solitário na sua relação atormentada e apaixonada com a América. “Ele sabia que a combinação da sua herança afro-americana, do seu talento – 'um dom de Deus' – com as palavras e até mesmo da sua misteriosa filiação e da sua 'ambivalência' sexual o tornava inevitavelmente um estranho, um estranho condenado (…) a pregar e converter, mesmo que desejasse simplesmente viver”, precisa Leeming.
Nos ensaios, nos romances, nos poemas e nas peças de teatro que escreveu, nas intervenções públicas com que se tornou protagonista da luta pelos direitos civis, Baldwin foi “a testemunha” e essa característica elevou-o ao estatuto de figurar – vale o que vale, sim – como um dos autores do cânone americano. Começou a escrever em 1953, aos 29 anos; morreu em 1987, com 63. A sua obra reflecte a relação conflituosa que sempre teve com o seu país: a América, onde não queria ser tratado como branco nem como negro, mas como um homem para lá da raça ou da sexualidade. Um dia, anos depois das grandes lutas civis, em 1979, disse numa entrevista ao New York Times: "A América não mudou assim muito."
Foi ele que teve de mudar e voltar a sair, para morrer em França sem qualquer expectativa de assistir à conversão do seu país.
O profeta
James Baldwin não se apresentava como um poeta, mas foi-o, e amou os poetas americanos acima de todos. Emily Dickinson e o modo como tratava a língua, a falta de solenidade. Walt Whitman, que lia como um contemporâneo. Na escrita, como na vida, ao lutar contra o racismo, pelos direitos dos negros, dos homossexuais, contra a discriminação de classe, tentou aplicar o que entendeu do poema O Regresso dos Heróis (in Folhas de Erva, Relógio D’Água, 2010): “Sou um homem, estive lá, sofri.” É outra frase da mesma entrevista à Paris Review, em que assume, com todos os riscos, o papel de testemunha de que falava Leeming e que o tornaria no tal profeta, um profeta à semelhança dos do Antigo Testamento, como sublinha o biógrafo: Baldwin era uma espécie de Ezequiel, de Isaías, de Jeremias ou de Samuel do século XX. A sua fé era na redenção do homem, especialmente do homem americano, que acabaria por aceitar todos os homens americanos como iguais.
“A profecia de Baldwin assumiu muitas formas. Os seus ensaios destacam-se entre as expressões mais articuladas que existem da condição humana no seu tempo. As colecções Notes of a Native Son e Nobody Knows My Name, o longo ensaio The Fire Next Time, já se tornaram clássicos. Em três peças, muitos contos e seis romances, incluindo, principalmente, Go Tell it on the Mountain, Giovanni’s Room, Sony Blues e Another Country, Baldwin cria parábolas para ilustrar, no domínio privado e pessoal das relações humanas, as palavras dos seus ensaios.” Mas tudo isto de que fala David Leeman, e que faz de Baldwin um dos nomes fundamentais da literatura da última metade do século XX, está por ler em português.
Trinta anos depois da sua morte, ocorrida em 1987, e no ano em que se estreia o documentário Eu Não Sou o Teu Negro, de Raoul Peck – reconstruindo no cinema um livro, Remember This House, que não chegou a ir além de umas notas e de uma intenção –, James Baldwin pode deixar de ser um quase desconhecido em Portugal. Há pelo menos três editoras a movimentarem-se para tê-lo em breve no seu catálogo: Relógio D’Água, Companhia das Letras e uma terceira que prefere manter o sigilo enquanto decorrem as negociações com os agentes do escritor americano. Porque é que isso só acontece agora? “Talvez por ter havido sempre uma reserva em relação a autores marcadamente americanos, sobretudo em relação a temas como o racismo negro”, arrisca Francisco Vale, editor da Relógio D’Água, que gostava de publicar Giovanni’s Room. “Essa reserva parece estar a desaparecer. Tem havido edição em Portugal desse tipo de autores, há público interessado, o cinema também tem ajudado.” Clara Capitão, directora da Companhia das Letras, adianta que Baldwin “ficou esquecido por estar muito associado à luta pelos direitos civis na América, um tema em desuso durante anos, mas que ressurgiu com grande actualidade”. Quando percebeu que não havia nada dele editado em Portugal, “quis tê-lo no catálogo”, refere, sem adiantar títulos de obras.
A edição em português do livro que esteve na origem do argumento de Eu Não Sou o Teu Negro chegou a estar anunciada, mas dificuldades com os direitos das imagens impossibilitaram que livro e documentário coincidissem no tempo, como aconteceu nos Estados Unidos.
O livro, homónimo, é um tratado sobre a identidade, um dos temas recorrentes de toda a obra ensaística e ficcional de James Baldwin, partindo de uma interrogação fundadora: quem é o meu pai? Daí se construiu ele de olhos no futuro, desde o topo de uma das colinas de Central Park, no Harlem, um dos seus refúgios preferidos. Os biógrafos notam semelhanças com umas das suas personagens, John, outro nome para James, no romance com notas autobiográficas Go Tell it on the Mountain. Também esta passagem se possa talvez aplicar-lhe: “Sentia-se como um conquistador há muito aguardado, a cujos pés se espalhariam flores, e diante do qual as multidões gritavam 'Hossana!' Ele seria, de todos, o mais poderoso, o mais amado, o ungido do Senhor; e iria viver nesta cidade brilhante que os seus antepassados tinham olhado de longe com saudade.”
Ele era dali. Teve a glória, e depois o esquecimento. Quando morreu, vítima de cancro, em 1987, Toni Morrison escreveu um texto elegíaco na New Yorker: “Sabias, não sabias, como eu precisava da tua linguagem e da mente que a formou? Como eu confiei na tua coragem feroz para domesticar desertos para mim? Como eu estava fortalecida pela certeza que vinha de saber que nunca irias magoar-me? Sabias, não é, como eu amava o teu amor? Sabia. Então isto não é nenhuma calamidade. Não. Isto é um jubileu. ‘A nossa coroa", disseste, ‘já foi comprada e paga'. ‘Tudo o que temos de fazer’, disseste, 'é usá-la'”.
Ele deu-lhe a linguagem, diria ela. E, feito o luto, a América parecia ter mudado. Até muito recentemente, Baldwin era um escritor lido por poucos, associado a um tempo ultrapassado. Mas depois começaram a surgir notícias de mortes. Manchetes de jornais sobre negros assassinados pela polícia e um movimento que se alastrou ao país: Black Lives Matter. O activismo afro-americano regressava e recuperava os seus símbolos, depois dos acontecimentos de Ferguson, Staten Island, Baltimore. Escritores de uma nova geração lembravam os escritos de outra geração. Em Entre Mim e o Mundo, carta dirigida ao filho adolescente sobre o que é crescer com um corpo negro na América, o jornalista Ta-Nehisi Coates citava Baldwin como uma referência. Falava do medo. O mesmo medo de sempre, ancestral. O livro foi um best-seller. Os valores do movimento cívico dos anos 50 e 60 pareciam de novo actuais e as palavras de Baldwin proféticas. Ele falara numa falha moral americana, dissera que enquanto a América não enfrentasse o seu preconceito nada mudaria. Num dos seus muitos ensaios, A Negro in Paris, escreveu: "Essa alienação profunda de si mesmo e dos seus homens é, em suma, a experiência americana.”
Em Novembro de 2016, James Hannaham, um escritor, negro, homossexual, citava James Baldwin em Nova Iorque a propósito da vitória de Donald Trump. Ironizava: “Neste momento tenho tudo para ser perseguido segundo o discurso que elegeu este senhor para presidente dos Estados Unidos”.
É com estas referências, e visto o documentário, que se chega ao Harlem num sábado de manhã. À procura da tal batida ou do ritmo afro-americano que os seus romances carregam. No Boulevard Malcolm X, esquina com o Martin Luther King. O Harlem continua negro, mas já não é só negro, é muito mais multirracial. Numa banca, entre livros antigos, há uma edição velhinha de Tell Me How Long The Train’s Been Gone, o quarto romance de Baldwin, coberto com uma película de plástico riscada. Não tem preço marcado. O vendedor pede para não mexer. Está no meio de volumes sobre a história da escravatura, de fotos de Barack Obama. Cheira a galinha frita, a incenso, canta-se hip-hop. O som da voz de Samuel L. Jackson parece ecoar. É o som que tomou posse da voz de Baldwin no filme, e parece tudo muito vivo.
O livro que está ali remete para outro tempo, estranhamente. Talvez James Baldwin não reconhecesse este Harlem. Ou talvez sim. O facto é que não custa andar por ali como que a fazer a viagem que os livros dele sugerem e que a sua biografia conta.
O ilegítimo
James Baldwin nasceu ali, no Harlem, em Nova Iorque, a 2 de Agosto de 1924, com uma palavra associada à sua certidão. Ilegítimo. Filho de Berdis Jones, nunca soube quem foi o pai e viu nessa ilegitimidade a metáfora da raça a que pertencia. O biógrafo David Leeman refere mesmo que ele construiu uma mitologia pessoal a partir daí. “Preferiu usar a sua ilegitimidade, o seu estatuto de minoria e a sua homossexualidade como material de apoio para uma persona mítica ou representativa indicada em títulos como Nobody Knows My Name, No Name in The Street ou Stranger in the Village”, escreve Leeming, recordando que ele se auto-denonimava um bastardo do Oeste.
O seu apelido é o do padrasto, David Baldwin, um rígido pastor protestante do Harlem, filho de uma escrava de Nova Orleães, mãe de 14 filhos, negros e mulatos, e pai dos oito irmãos mais novos de James. Naquela família estava outro símbolo da América de todas as cores que Baldwin levou para a literatura e para os seus discursos enquanto activista dos direitos civis. “Sou negro apenas enquanto vocês pensarem que são brancos” foi uma das frases que mais repetiu, literalmente ou em múltiplas versões com o mesmo sentido; em voz alta ou na solidão da escrita que descobriu à noite, enquanto todos dormiam. Era nessa altura que reflectia sobre os livros que lia na escola, os filmes que via, os heróis que tomou como seus e que acontecia serem quase todos brancos, porque era partir da perspectiva branca que se narrava a América da literatura e do cinema. Joan Crawford, John Wayne, Bette Davis, Abraham Lincoln. No filme de Peck, diz que não pensava neles como brancos; via-os americanos como ele.
O reverendo Baldwin não gostava disso. Dos interesses e da amizade de James com brancos. Para um homem vindo do Sul, isso era desafiar a vontade de Deus. Acabou louco e morreu de tuberculose quando James tinha 19 anos. Deixou-lhe um sentido de responsabilidade sobre os outros que nunca mais se apagaria. O mal que lhe pudesse acontecer teria repercussões. Pouco depois, o seu melhor amigo atirou-se da Ponte George Washington para as águas do Rio Hudson, uns quarteirões acima do Harlem, então a capital afro-americana, o que era o mesmo que a capital da segregação a que muitos não resistiam. Baldwin viu nesse suicídio uma projecção do seu futuro. Se não fugisse, matava-se, matava ou morria. Nova Iorque discriminava-o. Aos 24 anos, com 40 dólares no bolso, foi para Paris com um livro começado e uma identidade por resolver.
Antes, tocara à campainha do escritor, poeta, crítico literário e comunista desprezado pelos comunistas brancos Richard Wright, em Brooklyn. Dezasseis anos mais velho, Wright era um dos nomes mais activos na luta contra o racismo. Perseguido, ou melhor, pressionado pelo então regime puritano dos Estados Unidos do pós-guerra, mudou-se para Paris com a ajuda de Gertrude Stein e tornou-se definitivamente um expatriado. Baldwin dirá que foi para Paris porque a cidade era uma referência de liberdade. De costumes, de pensamento. Mas que poderia ter ido para qualquer outro lugar. Simplesmente fugia de um futuro que se lhe apresentava diferente daquele que imaginara na colina de Central Park. Sentia que se tinha alguma coisa para fazer, para escrever, Paris era o lugar. Nos Estados Unidos, estava agarrado ao anátema: ser negro, e homossexual, no Harlem. E em Paris, onde não conhecia ninguém, reencontrou Richard Wright, um dos seus mentores. “Richard foi muito importante para mim. Era muito mais velho (…). Ajudou-me, realmente, com o meu primeiro romance. Isso foi em 1944-45”, conta na entrevista à Paris Review, uma das mais esclarecedoras sobre o modo como entendeu o seu percurso. “Um dia bati à porta dele em Brooklyn! Apresentei-me e, claro, ele não fazia ideia de quem eu era. Não tinha publicado nenhum ensaio, nenhuma ficção (…). Eu adorava-o. Amava-o. Éramos muito diferentes um do outro, como escritores, provavelmente como pessoas também. E à medida que eu crescia, isso tornou-se cada vez mais evidente.” Acabaram zangados.
Mas Baldwin tinha razão. Foi em França que começou a sua carreira de escritor. Com ensaios e um primeiro romance, terminado numa aldeia dos Alpes suíços ao som da música de Bessie Smith, como ele conta e como outro escritor, muitos anos mais tarde, em 2014, recriará num texto publicado na New Yorker. Era o livro que o acompanhara desde Nova Iorque, centrado na sua relação com o padrasto a quem sempre chamou pai. Go Tell it on the Mountain saiu em 1953 e revelou uma intimidade política numa prosa que muitos compararam em elegância à de Henry James. James Baldwin escrevia através de imagens. “Não descrevam, mostrem”, aconselhava a quem lhe perguntava como escrever. Era sempre ele, no papel de testemunha que já revelara nos ensaios que ia publicando em várias revistas, desde os 20 e poucos anos. Descreve-os como uma tentativa de se superar.
Afirmava-se então como escritor em França, mas a América chamava-o. “Eu sabia que tinha de voltar”, dirá várias vezes. Conhecia Martin Luther King Jr., Malcolm X, Medgar Evers. Estavam a desempenhar um papel importante numa luta que também era a dele. Era o seu dever estar com eles, publicamente.
O pregador voltava. Agora porta-voz de uma causa. A sua história não era apenas a do escritor. O activista político ganharia protagonismo nos anos seguintes.
E seriam anos de morte. Medgar Evans, Malcolm X e Martin Luther King Jr. seriam assassinados, por esta ordem. Enquanto Baldwin percorria o país, foi ao Sul da família do pai, mais uma vez falou em encontro com as raízes e mais uma vez viu que essas raízes eram as da América. E escrevia. Sobre a estranheza, sobre ser um corpo estranho. Havia sempre quem olhasse. Em Paris, em Nova Iorque, nos Alpes suíços, em Nova Orleães. Ele procurava uma linguagem para falar disso, que fosse a sua, que resultasse do seu testemunho. Do ilegítimo, e do que viu o amigo suicidar-se, acontecimento-chave que levou para outro dos seus romances de referência, Another Country (1962). É o Village dos anos 50, a bissexualidade, a relação amorosa entre raças diferentes, a traição, um ambiente que conheceu quando foi empregado de mesa num restaurante local, ou quando o impediram de se sentar noutro restaurante, já como cliente, por não servirem negros.
Estava outra vez na América. Perante o documentário que agora se estreia nas salas portuguesas, e que dá conta da urgência desse regresso ao país, do impulso de estar ao lado das minorias, revela-se um Baldwin público, quase cinematográfico, que se movimenta entre estúdios de televisão, priva com Hollywood, tenta arranjar adeptos para a sua causa, a da igualdade, da não-discriminação. Que tenta não chorar no funeral de Martin Luther King, mas que quase enlouquece depois, incapaz de continuar a escrever. Tudo parecia ter parado. Ele desistia da América e a escrita era o que lhe restava. Sobre a América, inevitavelmente, porque não teve outro assunto que não a identidade.