As canções de Miguel Araújo à escuta do passado

No seu terceiro álbum a solo, Giesta, Miguel Araújo viaja até à infância nos arrabaldes da Maia à boleia de uma dúzia de canções caseiras ajudadas por arranjos de cordas – “maltrapilhos de fato e gravata”, como lhes chama.

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Miguel Araújo leva-nos numa viagem (melancólica, mas sem ponta de nostalgia) a um mundo centrado na casa da sua avó materna Adriano Miranda

Para Miguel Araújo, o rock morreu em Julho de 1992, ali por volta daquele momento em que Axl Rose se estatelou no palco do Estádio José Alvalade e a birra o levou a cantar uns quantos temas deitado, maldizendo seguramente o chão, o estádio, Lisboa, Portugal e o mundo em geral por aquele seu percalço. Miguel Araújo não estava lá, mas quase se poderia dizer que ouviu com estrondo a queda do vocalista dos Guns N’Roses. Na verdade, ouviu-a relatada pela irmã, mas foi como se tivesse testemunhado tudo com os seus próprios olhos e tivesse visto não apenas Axl caído na desgraça mas também o rock a resumir-se àquele amuo, fatal para qualquer idolatria necessitada de heróis inspiradores e não rastejantes e tão pouco preparados para sobreviver a um simples tombo.

Miguel Araújo não estava no Estádio de Alvalade porque estava ocupado com a sua própria birra. “Tinha 13 anos. Adorava ter ido, mas espolinhei-me no chão a chorar, tentando convencer a minha mãe de que já tinha maturidade suficiente para ir”, recorda ao Ípsilon. “O que, naturalmente, é um acto que se nega a si próprio.” Depois disso, os metaleiros do liceu abandonaram o traje oficial, cortaram as melenas e seguiram em direcção ao acid jazz de Jamiroquai e James Taylor Quartet, e Miguel foi atrás, sem especial convicção. É disso que fala em Axl Rose, uma das canções mais iluminadas do seu terceiro álbum, Giesta. Fala dessa súbita orfandade de ídolos e do curto período na sua vida, aqueles três anos entre 1991 e 1994, em que Guns N’Roses, Nirvana, Pearl Jam, Pantera e outros que tais o fizeram sentir que o seu gosto estava alinhado com o pop/rock contemporâneo.

“Em 1989, eu gostava da música que os meus tios ouviam, não gostava da música feita na altura”, sublinha. “A menos que fossem os discos do Tom Petty, do Roy Orbison ou do George Harrison daquele período. Mas a música dos Duran Duran ou dos Pet Shop Boys não me dizia nada.” A excepção foram, portanto, aqueles três anos em que conseguiu fazer conviver nas suas preferências o hard-rock com súbitos apetites épicos dos Guns N’Roses e a filiação punk bastarda de uns Nirvana que vomitavam diante de Axl e companhia. Mas depois daquele curto pavio, os novos discos de Black Crowes e Megadeth, bandas com que também se encantara nessa janela temporal, pareceram-lhe sempre uma prova cabal de que “o rock, que sempre foi evoluindo e mudando, e sempre foi uma coisa orgânica, viva e com actualizações, a partir daí começou a ser revivalista”.

Não há, ainda assim, grandes vestígios de 1994 em Axl Rose. Belíssima canção, destapa sem mácula a confessa filiação de Miguel nos Beatles facção Paul McCartney, com guitarras apensas que poderiam muito bem ter sido gravadas por George Harrison por alturas de All Things Must Pass. São as peças fundamentais de um triângulo que o músico descreve em Sangemil, nome de terra nos arrabaldes da Maia, colada à Giesta, onde ficava a casa da sua avó, grande o suficiente para acolher a banda de rock dos tios na cave. O reportório desse grupo, com passagens por Please don’t let me be misunderstood, Just like a rolling stone, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, invade a canção e ajuda a fechar esse triângulo de referências que une Liverpool, Nashville (uma escolha por questões de rima) e Sangemil.

Sangemil é Miguel Araújo a desenhar o seu próprio mapa de referências, com destaque para a sua devoção pelos “reis das melodias” Paul McCartney e Paul Simon, principais municiadores do seu arsenal melódico. “Há muita preocupação se a música é portuguesa ou não é portuguesa, se é legítima ou não, se pode integrar coisas de fora ou não”, analisa. “Mas os Beatles eram totalmente influenciados pelo Little Richard e pelo Elvis”, defende.

Todos estes nomes, assim como Bob Dylan ou os Velosos (Caetano e Rui), estão tão entranhados na personalidade musical de Miguel Araújo que é impossível não os ouvir a escorregarem para as suas canções. São como que a sua natureza, assumida quando, aos 34 anos, decidiu avançar para o seu primeiro álbum a solo (fora d’Os Azeitonas) e teve de perceber que terrenos iria trilhar. “Depois de uma profunda negociação comigo mesmo, decidi que ia fazer música que me fosse natural, que não fosse pensada”, conta. “Se tivesse gravado um disco com 23 ou 24 anos teria sido mau e arrepender-me-ia porque teria tomado decisões deste género, fazer ao jeito deste ou daquele. Mas todos temos uma maneira de tocar que, se o fazemos desde pequenos, é nossa. Não se pensa se é blues, rock, Dylan ou Neil Young, toca-se e escreve-se de uma certa maneira. Como quem fala com o sotaque com que cresceu e não pensa nisso.” Esta gente é o seu sotaque.

Canções com detalhes

Miguel Araújo é um consumidor ávido de entrevistas de outros músicos. Gosta de aceder a um pouco do seu mundo, talvez porque na sua criação musical também não levanta propriamente barreiras nem se esconde atrás de metáforas vazias ou ininteligíveis. Gosta que as canções fervam em factos mais ou menos reais e que proponham histórias concretas. Já depois de ter escrito e gravado Giesta, cruzou-se com uma entrevista de Leonard Cohen em que o crooner canadiano confessava ter aprendido com escritores que não se escreve “a árvore” quando se pode escrever “a figueira”. “Essa frase tocou-me bastante por me identificar tanto com ela”, confessa. “Quando oiço o Wild West End no primeiro álbum dos Dire Straits e ele [Mark Knopfler] fala do Café Angelucci’s e do Barocco Bar, acredito muito mais. Ainda ontem estava a ouvir a música Eu não sei, dos Expensive Soul, e eles falam no ‘pessoal da Bataria’. Não sabia o que era a Bataria, fui ver ao Google e é um bairro em Leça [da Palmeira]. Acho muito mais verdadeiro ser oferecido esse detalhe, mesmo que nem sequer soubesse da sua existência. Ser detalhado e super factual ao invés de ser lacónico e abstracto não me parece que retire em nada a universalidade.”

1987, concentrado de referências que regressa ao Porto naquele ano em que o clube que carrega a cidade no nome venceu a Taça dos Campeões Europeus, recupera o seu olhar deslumbrado de nove anos perante um centro comercial Dallas baptizado com o deslumbramento de uma série televisiva, uma barbearia que evocava a capital londrina ou um outro shopping chamado Brasília onde David Hasselhoff, o Michael Knight de O Justiceiro que deixava a criançada em delírio com o seu automóvel KITT, passara a distribuir autógrafos. “Sátira ou paródia à nossa mentalidade provinciana”, resume Miguel, mas em que tudo parece possível para um miúdo que assistira à felicidade improvável encontrada num golo de calcanhar.

A especificidade está por todo o lado em Giesta, álbum que é um assumido mergulho de Miguel Araújo na sua infância, em particular num mundo pessoal centrado na casa da avó materna, em Giesta, um pequeno lugar rodeado de outros pequenos lugares chamados Sangemil, Brás-Oleiro, Forno e Pícua. É a partir dessas memórias musicadas que chegamos à história de Lurdes (Lurdes valsa lenta), tia-avó abandonada no altar por um militar de alta patente, que a canção retrata como alguém que “às vezes acorda com fome/ há 12 anos que quase não come/ molha a bolacha maria no chá/ e engana a gata com bombons rajá”. “Se dissesse qualquer coisa como ‘uma senhora velhinha nas suas angústias, ai quanta melancolia’ não tinha graça. E ao dar-lhe um nome e uma gata, se puser tudo como estou a ver na minha cabeça, de forma paradoxal acho que se torna mais universal ainda.”

Ao tomar-nos pela mão e levar-nos a acompanhá-lo numa viagem (melancólica mas sem ponta de nostalgia) pela sua infância, Miguel Araújo não tem qualquer obsessão preciosista. Tal como Randy Newman – cita o músico a propósito de um dos seus álbuns preferidos, Land of Dreams, uma transposição para as canções dos seus tempos de criança na passagem de Nova Orleães para Los Angeles – altera nomes de ruas por uma prática necessidade poética, também Miguel alterou nomes de pessoas “não por uma questão de pudor ou de reserva de intimidade, mas porque soavam melhor assim” e transformou a Barbearia Londres num Salão Londres cuja métrica era mais mastigável e cantarolável. Serve-se da factualidade mas não se deixa escravizar por ela. “Todas as histórias de que falo são coisas que fui ouvindo ao longo da minha vida, mas não tenho a certeza se foram mesmo assim”, diz. “Não fui confirmar nada, até com medo de que as coisas não fossem tão interessantes como as imaginava. Houve coisas que chegaram até mim bastante mais míticas. Conta-se na minha família, por exemplo, que um antepassado nosso foi vice-rei ou governador da Índia, mas são histórias certamente exageradas.” Quando vingam as imprecisões, isso significa apenas que “a música manda mais do que os factos”.

Presente já antes mas explorada de forma mais consistente e aprofundada no anterior Crónicas da Cidade Grande, há nos discos de Miguel Araújo uma noção de conjunto que faz com que as canções não sejam atiradas ao mundo de forma avulsa – por muito que possam sobreviver e perseverar por sua conta e risco. É algo que se impõe de forma acidental. Se em Crónicas os temas acabaram por sugerir a narrativa maior de uma vida que se deixava cantar e contar da sala de partos até ao funeral, aqui – num disco de canções caseiras decoradas por arranjos de cordas, que Araújo define como “maltrapilhos de fato e gravata” – deu-se a coincidência de, ao agrupar em conjuntos temáticos as músicas em que vinha trabalhando, constatar que várias apontavam para a casa da avó e para aqueles anos da infância. Esse pulsar narrativo que encontra em Chico Buarque, Carlos Tê, João Monge, Paul Simon ou Bob Dylan chega então sob a forma de canções que em termos musicais desvendam uma galeria de heróis em que Dylan, Neil Young, Rui Veloso, Caetano ou até o cancioneiro alentejano se deixam intuir. Mas como alguém já antes o disse, Miguel escreve como quem está à janela em atenta mas despreocupada observação. É apenas nisso. E não é pouco.

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