Agora venha a final (é que gostamos outra vez da Eurovisão)
E, de repente, ligamos novamente à Eurovisão. A final é este sábado e Salvador Sobral é favorito. Três históricos e um especialista explicam o que se passou e o que se está a passar.
Parece que foi há uma eternidade porque muito aconteceu desde então. A 5 de Março, Salvador Sobral vencia a final do Festival da Canção, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, e começava a planear a viagem para a final da Eurovisão, em Kiev – início às 20h. O que aconteceu depois? Amar pelos dois, composta pela irmã de Salvador, Luísa Sobral, tornou-se um fenómeno viral e êxito popular. Começou a saltar fronteiras, a subir nas casas de apostas e, de repente, já não eram só os portugueses que achavam que havia ali qualquer coisa. De repente, após a semi-final de terça-feira, Amar pelos dois é mesmo a grande favorita à vitória – ultrapassou sexta-feira a anterior favorita, a Itália. O que é que aconteceu aqui?
Aconteceu o público "ligar-se à canção e ligar-se ao Salvador”, diz Simone de Oliveira, que representou Portugal na Eurovisão em duas ocasiões, em 1965, com Sol de Inverno, e em 1969, com a Desfolhada portuguesa. Aconteceu ter aparecido esta canção “a lembrar as valsinhas do Chico Buarque, sem os ingredientes das festivalices e a produção gigantesca”, refere Carlos Mendes, também ele presente um par de vezes nos palcos da Eurovisão, em 1968, com O Verão, e, em 1972, com A festa da vida. Paulo de Carvalho, que cantou na Eurovisão a histórica E depois do adeus, em 1974, semanas antes do 25 de Abril, e em 1977, integrado n’Os Amigos, Portugal no coração, gosta muito da canção e do cantor, mas gosta “sobretudo da pessoa Salvador” e acha que, na verdade, “já ninguém quer saber há anos do festival da Eurovisão". Para ele, há duas explicações para o que se vem vivendo em redor de Salvador Sobral. Uma: “as redes sociais”. Outra: “Aquilo é um espectáculo de variedades e, de repente, aparece alguém que se distingue por não fazer as mesmas palhaçadas”.
O jornalista Nuno Galopim, um dos responsáveis pelo formato renovado apresentado pelo Festival da Canção este ano, vê todo o entusiasmo como consequência, inesperada na dimensão que atingiu, de “voltar a fazer do festival uma fonte para o cancioneiro da música popular portuguesa, onde se pudessem representar as diversas frentes da música popular”. Evitar a formatação é, defende, essencial. “Não existe uma receita para a Eurovisão. Tanto ganha a [pop electrónica da ucraniana] Jamala [vencedora em 2016], como o hard-rock dos Lordi [finlandeses vencedores em 2006]”.
Neste momento em Kiev, onde tem testemunhado o enamoramento internacional pelo representante português – “não só foi recebido como um Beatle na passadeira vermelha como gera grande empatia e colhe muita admiração dos profissionais presentes” -, Nuno Galopim vê em Amar pelos dois uma canção onde se conjugam duas cenas a fervilhar actualmente no Portugal musical, “a do jazz e a dos cantautores, realidades que aqui se congregam numa só”.
"Como se se tivesse enganado no palco"
Quando subir a palco em Kiev – será o décimo primeiro concorrente a fazê-lo -, o cantor que se estreou discograficamente em 2016 com Excuse me, terá em Portugal alguém sentado em frente à televisão “a sofrer que nem uma condenada”, mas a pedir encarecidamente que ninguém “embandeire em arco”. Simone de Oliveira sabe muito bem do que fala. “Embora ele tenha uma postura diferente da minha, não quero que o Salvador sofra a mesma agonia que eu”. A cantora e actriz lembra-se bem do entusiasmo entre a comitiva portuguesa no Teatro Real, em Madrid, quando, em 1969, a Desfolhada surgiu em terceiro lugar no quadro electrónico, inovação tecnológica estreada naquele ano. Estávamos no ensaio geral e os jornalistas presentes haviam dado o pódio à canção portuguesa. Já no dia do festival, enquanto decorria a votação, maestros, cantores e compositores, aproximavam-se de Simone, perguntando: “E Portugal? Onde está Portugal?”. Não estava. A Desfolhada haveria de se classificar num incompreensível 14º lugar.
É por esta experiência que Simone de Oliveira pede alguma contenção, mas reconhece que essa mesma euforia, em caso de vitória, ou essa grande desilusão, caso a classificação não seja a que por agora se sonha, afectará mais aqueles que rodeiam Salvador Sobral que o próprio cantor. “Ele é uma pessoa muito descontraída. Não está nem aí, não tem a preocupação das fotografias. Não tem nada a ver com estes festivais. É como se se tivesse enganado no palco”.
O jovem Carlos Mendes de 20 anos iria reconhecer-se nessa postura. Estávamos em 1968 e ele, saído dos Sheiiks, rocker de botas Beatle nos pés, levava Verão à Eurovisão. “A Valentim de Carvalho fez-me a proposta [de concorrer ao Festival da Canção] e aceitei porque os Sheiks tinham acabado, porque me prometeram que faria uma carreira a solo e porque era Londres e o Royal Albert Hall, o que na altura, por causa dos Beatles, tinha um significado muito grande”, recorda. “Foi entrada por saída. Nervoso? Nervoso para quê?”. O que lhe interessava era passear por Carnaby Street, ver concertos e tocar com “malta da música” que conhecera entretanto. E, de caminho, “episódio que mostra bem o desinteresse pessoal que tinha por aquilo”, faltar ao jantar que os representantes da BBC marcaram para o conhecer - havia coisas mais interessantes a fazer.
Quando regressou ao festival, quatro anos depois, tudo mudara. “A poesia entrara nas canções, as palavras tinham uma forma muito importante, e eu já tinha vivido a luta estudantil. Estava muito politizado e tinha outros horizontes”. Além do mais, conta, tinha o apoio de uma editora, a Pye, gravara nos estúdios de George Martin, produtor dos Beatles, e tinha gente da BBC a garantir-lhe que iria ganhar, revela. “Entretanto, somos chamados a Lisboa para reunir com Ramiro Valadão, director da RTP, que nos diz que Portugal não poderia ganhar”. O regime não queria um magote de gente da Europa democrática a entrar pelo país, nem arcar com as despesas significativas inerentes à organização do festival. Ramiro Valdão desejava “um honroso terceiro lugar”. Ficaria com o sétimo, à época a melhor classificação portugesa de sempre.
Daí para cá, tudo mudou. Carlos Mendes, tal como Paulo de Carvalho, há muito se desligou. O segundo, olhando para trás, vê nas suas participações nos festivais, “um espaço de formação". Agora, porém, “a música é outra, a forma de estar é outra e apareceu gente nova, com novas vontades”. Carlos Mendes, enquanto elogia aquela que para si é a grande revelação de Amar a dois, “o extraordinário arranjo de cordas [de Luís Figueiredo]”, tem esperança que uma vitória de Salvador Sobral permita “revitalizar a canção” para que tenhamos mais “a feira da música e menos música de feira”.
Nuno Galopim explica que a Eurovisão sempre viveu em ciclos, como o da “chanson nos anos 1950”, “o disco-sound no final da década de 1970” ou “a relação com a pop dos anos 1980”. Neste momento, os modelos são “a pop electrónica e a balada de grande opulência”. Amar a dois pode ser o anúncio da chegada de um novo ciclo: “Não conduzir simplesmente ao despojamento mas também à opção por cantar na língua de origem”. Quanto a isso, o futuro o dirá. Agora, é momento de assistir à final.
“Adoro o Salvador e adoro a canção. Só não roo as unhas porque são postiças”, ri Simone de Oliveira. E até Carlos Mendes, há tanto desligado do festival, pergunta: “É amanhã [sábado], não é? A que horas?” Às 20h, respondemos. “É isso, vou ver. Estou a torcer pelo Sobral". Estamos todos.