Quem são os novos jihadistas?
Para o sociólogo francês Olivier Roy, é urgente que se faça uma outra leitura sobre quem são os terroristas europeus “domésticos”, cujas biografias revelam serem niilistas violentos que adoptam o islão e não fundamentalistas religiosos que se viram para a violência. Excerto do seu último livro.
Há algo de novo na violência terrorista jihadista das últimas duas décadas. O terrorismo e a jihad existem há muitos anos e formas de terror “globalizado” – que têm como alvo locais altamente simbólicos ou civis inocentes, sem ter em consideração as fronteiras nacionais – remontam, pelo menos, ao movimento anarquista do final do século XIX. O que não tem precedentes é a maneira como agora os terroristas procuram deliberadamente a própria morte.
Nos últimos 20 anos – desde Khaled Kelkal, o líder de uma conspiração para bombardear os comboios de Paris em 1995, aos homicidas do Bataclan, em 2015 – quase todos os terroristas em França se fizeram explodir ou foram mortos pela polícia. Mohamed Merah, que matou um rabi e três crianças numa escola judaica de Toulouse em 2012, pronunciou uma variante da famosa frase atribuída a Osama bin Laden, que é reiteradamente usada por outros jihadistas: “Amamos a morte como vocês amam a vida.” Agora, a morte do terrorista já não é apenas uma possibilidade ou uma consequência infeliz dos seus actos; é parte central do seu plano. O mesmo fascínio com a morte encontra-se nos jihadistas que se juntam ao Estado Islâmico. Os ataques suicidas são vistos como o objectivo derradeiro do seu compromisso.
Esta opção sistemática pela morte é um desenvolvimento recente. Os autores dos atentados terroristas em França nas décadas de 1970 e 1980, quer tivessem ou não alguma relação com o Médio Oriente, planeavam cuidadosamente as suas fugas. A tradição muçulmana, embora reconheça os méritos do mártir que morre em combate, não valoriza quem ataca para perseguir a própria morte, porque isso interfere com a vontade de Deus. Então, por que razão, nos últimos 20 anos, os terroristas escolhem tantas vezes morrer? O que é que isto diz sobre o radicalismo islâmico contemporâneo? E o que é que diz sobre as nossas sociedades actuais?
A última questão torna-se mais relevante porque esta atitude em relação à morte está indissociavelmente ligada ao facto de o jihadismo contemporâneo, pelo menos no Ocidente – bem como no Magrebe e na Turquia –, ser um movimento juvenil que não só está construído de maneira independente da religião e cultura parentais, mas também está enraizado numa cultura jovem mais alargada. Este aspecto do jihadismo moderno é fundamental.
Sempre que este ódio geracional acontece, também adopta a forma de iconoclasmo cultural. Não se destroem apenas humanos, mas também estátuas, locais de culto, livros. A memória é aniquilada. “Fazer tábua rasa” é um objectivo comum à Guarda Vermelha de Mao Tsetung, aos khmer vermelhos e aos combatentes do ISIS. Como escreveu um jihadista britânico num guia de recrutamento para esta organização: “Quando chegarmos às ruas de Londres, Paris e Washington… não vamos apenas derramar o vosso sangue, mas também demolir as vossas estátuas, apagar a vossa história e, de forma mais dolorosa, converter os vossos filhos, que depois irão defender o nosso nome e amaldiçoar os seus antepassados.”
Apesar de todas as revoluções atraírem a energia e o zelo de jovens, a maior parte delas não tenta destruir o que aconteceu antes. A revolução bolchevique decidiu colocar o passado em museus, em vez de o reduzir a ruínas, e a República Islâmica revolucionária do Irão nunca ponderou detonar Persépolis.
Esta dimensão autodestrutiva não tem nada que ver com a política do Médio Oriente. Enquanto estratégia, é até contraproducente. Apesar de o ISIS proclamar que a sua missão é restabelecer o califado, o seu niilismo faz com que seja impossível chegar a uma solução política, participar em qualquer tipo de negociação ou atingir qualquer tipo de sociedade estável dentro de fronteiras reconhecidas.
O califado é uma fantasia. É o mito de uma entidade ideológica que está constantemente a expandir o seu território. A sua impossibilidade estratégica explica porque aqueles que se identificam com ele escolhem fazer um pacto de morte, em vez de se dedicarem aos interesses dos muçulmanos locais. Não há nenhuma perspectiva política, nenhum futuro brilhante, nem sequer um local para rezar em paz. Mas, embora o conceito de califado faça de facto parte da imaginação religiosa muçulmana, o mesmo não se pode dizer da perseguição da própria morte.
Além disso, o terrorismo suicida nem sequer é eficaz, do ponto de vista militar. Embora seja possível encontrar algum grau de racionalidade no terrorismo “simples” – em que alguns indivíduos infligem danos consideráveis num inimigo muito mais poderoso – isto está completamente ausente nos ataques suicidas. O facto de militantes inveterados serem usados apenas uma vez não é racional. Os ataques terroristas não põem as sociedades ocidentais de joelhos – só provocam uma contra-reacção. E, actualmente, este tipo de terrorismo rouba mais vidas muçulmanas do que ocidentais.
A associação sistemática à morte é uma das chaves para compreender a radicalização dos dias de hoje: a dimensão niilista é central. O que seduz e fascina é a ideia de pura revolta. A violência não é um meio. É um fim em si mesma.
A história não acaba aqui: é perfeitamente concebível que outras formas de terrorismo mais “racionais” possam surgir em breve. Também é possível que esta forma de terrorismo seja apenas temporária.
As razões para a ascensão do ISIS estão sem dúvida relacionadas com a política do Médio Oriente e a sua destruição não vai alterar os elementos básicos da situação. O ISIS não inventou o terrorismo: inspirou-se em algo que já existe. O génio do ISIS é a forma como oferece aos jovens voluntários um enquadramento narrativo dentro do qual eles podem atingir as suas aspirações. Tanto melhor para o ISIS se aqueles que se voluntariam para morrer – os perturbados, os vulneráveis, os rebeldes sem causa – têm pouco a ver com o movimento, mas estão preparados para jurar fidelidade ao ISIS, de modo a que os seus actos suicidas se tornem parte de uma narrativa global.
É por isto que precisamos de uma nova abordagem ao problema do ISIS, que tente compreender a violência islâmica contemporânea juntamente com outros tipos de violência e radicalismo semelhantes – os que apresentam revolta geracional, autodestruição, um rompimento radical com a sociedade, uma estética de violência, cultos apocalípticos.
As pessoas esquecem demasiadas vezes que o terrorismo suicida e as organizações como a al-Qaeda e o ISIS são novos na história do mundo muçulmano e não podem ser explicados exclusivamente com a ascensão do fundamentalismo. Temos de compreender que o terrorismo não surge de uma radicalização do islão, mas sim da islamização do radicalismo.
Longe de exonerar o islão, a “islamização do radicalismo” obriga-nos a perguntar por que razão e de que maneira os jovens rebeldes encontraram no islão o paradigma para a sua revolta total. Não nega o facto de que um islão fundamentalista está a desenvolver-se há mais de 40 anos.
Esta abordagem tem recebido críticas fortes. Um académico alega que eu negligenciei as causas políticas da revolta – essencialmente, o legado colonial, as intervenções militares ocidentais contra povos do Médio Oriente e a exclusão social dos imigrantes e dos seus filhos. Do outro lado, fui acusado de ignorar a ligação entre a violência terrorista e a radicalização do islão por via do Salafismo, a interpretação ultraconservadora da religião. Estou plenamente consciente de todas estas dimensões; digo apenas que elas não são adequadas para explicar os fenómenos que estudamos, porque não se encontra nenhuma ligação causal com base nos dados empíricos que temos à nossa disposição.
O meu argumento é que a radicalização violenta não é consequência da radicalização religiosa, mesmo que muitas vezes siga os mesmos caminhos e empregue os mesmos paradigmas. O fundamentalismo religioso existe, é claro, e representa problemas sociais consideráveis, porque rejeita valores baseados na escolha individual e na liberdade pessoal. Mas ele não leva, necessariamente, à violência política.
A objecção segundo a qual os radicais são motivados pelo “sofrimento” sentido pelos muçulmanos que foram colonizados antigamente ou que foram vítimas de racismo ou de outro tipo de discriminação, bombardeamentos americanos, drones, orientalismo, etc., implicaria que a revolta é guiada principalmente por vítimas. Mas a relação entre radicais e vítimas é mais imaginária do que real.
Aqueles que cometem atentados na Europa não são habitantes da Faixa de Gaza, da Líbia ou do Afeganistão. Não são necessariamente os mais pobres, os mais humilhados ou os menos integrados. O facto de 25% dos jihadistas serem convertidos demonstra que a ligação entre os radicais e o seu “povo” é também, em grande parte, uma construção imaginária.
Os revolucionários quase nunca vêm das classes oprimidas. Na sua identificação com o proletariado, as “massas” e os colonizados, há uma escolha baseada em algo mais do que a sua situação objectiva. Muito poucos terroristas ou jihadistas publicitam as suas histórias de vida. Geralmente, não falam sobre o que viram do sofrimento de outros. Não foram palestinianos que atacaram o Bataclan.
Até meados da década de 1990, a maioria dos jihadistas internacionais vinha do Médio Oriente e tinha combatido no Afeganistão antes da queda do regime comunista local em 1992. Posteriormente, regressaram aos seus países de origem para participar na jihad, ou levaram a causa para o estrangeiro. Foram estas pessoas que montaram a primeira vaga de ataques “globalizados” (o primeiro atentado contra o World Trade Center em Nova Iorque, em 1993, os ataques contra as embaixadas americanas na África Oriental em 1998 e o navio de guerra americano Cole, em 2000).
Esta primeira geração de jihadistas teve como mentores pessoas como Bin Laden, Ramzi Yousef e Khaled Sheikh Mohammed. Mas, a partir de 1995, começou a desenvolver-se uma nova estirpe – conhecida no ocidente como o “terrorista doméstico”.
Quem são estes novos radicais? Conhecemos muitos deles pelo nome, graças à identificação feita pela polícia dos autores de ataques na Europa e nos Estados Unidos. Muitos mais foram apanhados a planear ataques. Também possuímos toda a informação biográfica recolhida por jornalistas. Não é necessário embarcar em trabalho de campo aprofundado para compreender as trajectórias dos terroristas. Todos os dados e perfis estão disponíveis.
Para compreender as suas motivações, temos vestígios do seu discurso: tweets, chats do Google, conversas no Skype, mensagens no WhatsApp e no Facebook. Eles telefonam aos amigos e à família. Divulgam comunicados antes de morrerem e deixam testamentos em vídeo. Em suma, ainda que não possamos ter a certeza de que os compreendemos, eles são-nos familiares.
Não há dúvida de que temos mais informação sobre as vidas dos terroristas que operam na Europa do que sobre as vidas dos jihadistas que partem para países estrangeiros e nunca regressam. Mas, como demonstrou um estudo da Sciences Po sobre os jihadistas franceses que morreram na Síria, há muitas semelhanças entre estes grupos. Neste texto, vou focar-me principalmente nos franco-belgas, que fornecem a maior parte das fileiras dos jihadis ocidentais. Mas a Alemanha, o Reino Unido, a Dinamarca e a Holanda também têm contingentes significativos nas linhas da frente.
Utilizando esta informação, compilei uma base de dados de cerca de 100 pessoas que estiveram envolvidas em terrorismo em França ou que saíram da França ou da Bélgica para participarem numa jihad global nos últimos 20 anos. Ela inclui os autores de todos os principais atentados que tiveram como alvo o território francês ou belga.
Não há um perfil padrão de um terrorista, mas há características recorrentes. A primeira conclusão que se pode retirar é que os perfis mudaram muito pouco ao longo dos últimos 20 anos. Khaled Kelkal, o primeiro “terrorista doméstico” de França, e os irmãos Kouachi (Charlie Hebdo, Paris, 2015) têm uma série de características em comum: segunda geração; relativamente bem integrados no início; período de pequena criminalidade; radicalização na prisão; ataque e morte — de armas na mão — num confronto com a polícia.
Outra característica que todos os países ocidentais têm em comum é que os radicais são quase todos muçulmanos “renascidos” que, depois de viverem uma vida altamente secular — frequentando discotecas, bebendo álcool, com envolvimento em pequena criminalidade — subitamente renovam a sua prática religiosa, individualmente ou no contexto de um pequeno grupo. Os irmãos Abdeslam geriam um bar em Bruxelas e iam a discotecas nos meses antes do tiroteio no Bataclan. A maioria passa à acção nos meses que se seguem à sua “reconversão” ou “conversão” religiosa, mas normalmente já exibiam sinais de radicalização.
Em quase todos os casos, os processos de formação de um grupo radical são quase idênticos. A constituição do grupo é sempre a mesma: irmãos, amigos de infância, conhecidos da prisão e por vezes de um campo de treino. O número de irmãos que se encontra também é notável.
Esta sobrerrepresentação de irmãos não ocorre em mais nenhum contexto de radicalização, quer seja a extrema-esquerda ou os grupos islamistas. Ela acentua a importância da dimensão geracional da radicalização.
Como escreveu o antigo jihadista David Vallat, a retórica dos pregadores radicais pode resumir-se, basicamente, assim: “O islão do teu pai foi o que os colonizadores deixaram para trás, o islão dos que se inclinam e obedecem. O nosso islão é o islão dos combatentes, do sangue, da resistência.”
De facto, os radicais são frequentemente órfãos — como eram os irmãos Kouachi — ou vêm de famílias disfuncionais. Não estão necessariamente a rebelar-se contra os pais a nível pessoal, mas sim contra aquilo que eles representam: humilhação, concessões perante a sociedade e o que vêem como a sua ignorância religiosa.
Muitos dos novos radicais estão profundamente imersos na cultura jovem: vão a discotecas, seduzem raparigas, fumam e bebem. Quase 50% dos jihadistas em França, de acordo com a minha base de dados, têm um historial de pequena criminalidade — sobretudo tráfico de droga, mas também actos de violência e, menos frequentemente, assalto à mão armada. Encontra-se um valor semelhante na Alemanha e nos Estados Unidos — incluindo um número surpreendente de detenções por conduzir sob o efeito do álcool. Os hábitos de vestir deles também estão em conformidade com os da juventude actual: marcas, bonés de basebol, capuzes, por outras palavras, streetwear, e nem sequer da variante islâmica.
Os seus gostos musicais também são os dos tempos modernos: gostam de música rap. Uma das figuras radicalizadas mais conhecidas é um rapper alemão Denis Cuspert — inicialmente conhecido como Deso Dogg e depois como Abu Talha al-Almani —, que foi combater na Síria. Naturalmente, também são entusiastas dos videojogos e gostam de filmes americanos violentos.
As suas tendências violentas podem ter outros escapes que não a jihad e o terrorismo — como vemos nas guerras de gangues em Marselha. Também podem ser canalizadas para instituições — Mohammed Merah queria alistar-se no exército — ou para o desporto. Um grupo de convertidos portugueses, a maioria de origem angolana, saiu de Londres para se juntar ao ISIS depois de formar laços num clube de boxe tailandês fundado por uma ONG britânica. Na vida social da jihad, os desportos de combate são mais importantes do que as mesquitas.
A língua que os radicais falam é sempre a do seu país de residência. Em França, é frequente passarem a usar uma versão “salafizada” do dialecto francês banlieue quando se reconvertem.
O tempo passado na prisão coloca-os em contacto com “pares” radicalizados e muito à margem de qualquer religião institucionalizada. A prisão amplifica muitos dos factores que alimentam a radicalização contemporânea: a dimensão geracional; a revolta contra o sistema; a difusão de um salafismo simplificado; a formação de um grupo muito unido; a busca pela dignidade relacionada com o respeito pela norma e a reinterpretação do crime como forma de protesto político legítimo.
Outra característica comum é a distância entre os radicais e o seu círculo mais próximo. Não viviam num ambiente particularmente religioso. A sua relação com a mesquita local era ambivalente: ou a frequentavam de forma episódica ou tinham sido expulsos por mostrarem desrespeito pelo imã local. Nenhum deles pertencia à Irmandade Muçulmana, nenhum deles tinha trabalhado para uma instituição muçulmana de caridade, nenhum deles tinha participado em actividades de proselitismo, nenhum deles era membro de um movimento de solidariedade palestiniano e, por fim, nenhum deles, tanto quanto sei, participou nos motins nos subúrbios franceses que aconteceram em 2005. Eles não foram radicalizados primeiro por um movimento religioso antes de se virarem para o terrorismo.
Se houve de facto uma radicalização religiosa, ela não ocorreu no contexto das mesquitas salafistas, mas individualmente ou no seio do grupo. As únicas excepções são no Reino Unido, que tem uma rede de mesquitas militantes frequentadas por membros do al-Muhajiroun, que deu origem a um grupo ainda mais radical, o Sharia4UK, liderado por Anjem Choudary. A questão, portanto, é saber quando e onde os jihadistas aderiram à religião. O fervor religioso surge fora das estruturas comunitárias, tardiamente, de forma relativamente súbita e pouco antes de os terroristas passarem à acção.
Para resumir: o radical típico é um convertido ou imigrante jovem, de segunda geração, muitas vezes envolvido em episódios de pequena criminalidade, praticamente sem nenhuma educação religiosa, mas com uma trajectória rápida e recente de conversão/reconversão, mais frequentemente no contexto de um grupo de amigos ou da Internet do que no contexto de uma mesquita. A adesão à religião raramente é mantida em segredo; pelo contrário, é exibida, mas não corresponde necessariamente a uma imersão na prática religiosa. A retórica da ruptura é violenta – o inimigo é kafir, alguém com quem é impossível chegar a qualquer compromisso –, mas também inclui a própria família, cujos membros são acusados de seguir o islão de forma inapropriada ou de se recusarem a converter-se.
Ao mesmo tempo, é óbvio que a decisão dos radicais de se identificarem com a jihad e de alegarem pertencer a um grupo radical islâmico não é meramente uma escolha oportunista: a referência ao islão faz toda a diferença entre a jihad e as outras formas de violência em que os jovens se envolvem. Apontar esta cultura generalizada de violência não é a mesma coisa do que “exonerar” o islão. O facto de estes jovens escolherem o islão como contexto de pensamento e acção é fundamental e é precisamente a islamização do radicalismo que temos de tentar compreender.
Tirando as características habituais discutidas acima, não há um perfil social e económico típico dos radicalizados. Há uma explicação popular e muito simplista que vê o terrorismo como uma consequência de uma integração falhada — e, portanto, um presságio de uma futura guerra civil —, sem parar um momento para ter em conta as massas de muçulmanos bem integrados e que ascenderam socialmente. Por exemplo, é um facto indiscutível que em França há muitos mais muçulmanos que são membros das forças policiais e de segurança do que os que estão envolvidos na jihad.
Além disso, os radicais não vêm de comunidades extremistas. O bar em Bruxelas dos irmãos Abdeslam estava situado num bairro que tem sido descrito como “salafizado” – e que, portanto, estaria interdito a pessoas que bebem álcool e mulheres que não usam véu. Mas este exemplo demonstra que a realidade destes bairros é mais complexa do que se pode fazer crer.
É muito habitual ver o jihaadismo como uma extensão do salafismo. Nem todos os salafistas são jihadistas, mas todos os jihadistas são — supostamente — salafistas e, portanto, o salafismo é a porta de entrada no jihadismo. Em suma, considera-se que a radicalização religiosa é a primeira etapa da radicalização política. Mas, como vimos, as coisas são mais complicadas.
No entanto, é evidente que estes radicais são crentes sinceros: acreditam piamente que vão para o paraíso e o seu quadro de referência é profundamente islâmico. Eles juntam-se a organizações que querem estabelecer um sistema islâmico ou mesmo, no caso do ISIS, restaurar o califado. Mas estamos a falar de que forma do islão?
Como vimos, os jihadistas não partem para a violência depois de estudarem a fundo os textos sagrados. Não têm a cultura religiosa necessária — e, sobretudo, não estão muito interessados em tê-la. Não se tornam radicais por fazerem uma leitura errada dos textos ou porque foram manipulados. São radicais porque escolhem sê-lo, porque o radicalismo é a única coisa que os atrai. Qualquer que seja a base de dados usada como referência, a falta de conhecimentos religiosos entre os jihadistas é gritante. De acordo com uma fuga de informação de relatórios do ISIS, que continham detalhes sobre mais de 4 mil recrutas estrangeiros, apesar de a maioria deles terem uma boa formação académica, 70% afirmam que só têm um conhecimento básico do islão.
É importante fazer a distinção entre a versão do islão defendida pelo ISIS, que está muito mais baseada na tradição metodológica de exegese das palavras do profeta Maomé e é supostamente baseada no trabalho de “eruditos” — e o islão dos jihadistas que juram fidelidade ao ISIS, que, em primeiro lugar, gira em torno de uma visão de heroísmo e de violência moderna.
As exegeses das escrituras que enchem as páginas da Dabiq e da Dar al-Islam — as duas revistas mais recentes do ISIS, escritas em inglês e em francês — não são a causa da radicalização. Elas ajudam a fornecer uma racionalização teológica para a violência dos radicais — que não se baseia em conhecimentos reais, mas sim num apelo à autoridade. Quando os jovens jihadistas falam de “verdade”, nunca é em referência ao conhecimento discursivo. Referem-se às suas próprias certezas, por vezes apoiadas por referências encantatórias aos xeques, que nunca leram. Por exemplo, Cédric, um francês que se converteu, alegou no seu julgamento: “Não sou um jihadista de teclado, não me converti no YouTube. Li os eruditos, os verdadeiros.” Disse isto apesar de não saber ler árabe e de ter conhecido os membros da sua rede através da Internet.
Provavelmente, faz sentido começar a ouvir o que os terroristas dizem. Os mesmos temas são recorrentes com todos eles, resumidos na declaração póstuma feita por Mohammed Siddique Khan, líder do grupo responsável pelos bombardeamentos de Londres, no dia 7 de Julho de 2005.
O primeiro motivo que mencionou foram as atrocidades cometidas pelos países ocidentais contra o “povo muçulmano” (na transcrição, ele diz: “O meu povo em todo o mundo”); o segundo é o papel de herói vingador (“sou directamente responsável por proteger e vingar os meus irmãos e irmãs muçulmanos”, “agora, vocês também vão provar a realidade desta situação”); o terceiro é a morte (“amamos a morte como vocês amam a vida”) e a recepção no paraíso (“que Alá… me faça ascender entre aqueles que amo como os profetas, os mensageiros, os mártires”).
A comunidade muçulmana que estes terroristas estão desejosos de vingar quase nunca é especificada. É uma realidade sem história nem espaço. Quando se insurgem contra a política ocidental no Médio Oriente, os jihadistas usam o termo “cruzados”; não se referem à colonização francesa da Argélia.
Os radicais nunca se referem explicitamente ao período colonial. Eles rejeitam e ignoram todos os movimentos políticos e religiosos que os precederam. Não estão alinhados com as lutas dos seus pais; quase nenhum deles regressa ao país de origem dos pais para fazer a jihad. Note-se que nenhum dos jihadistas, quer tenham nascido muçulmanos ou se tenham convertido, fez campanha — que eu saiba — como parte de um movimento pró-palestininano ou pertenceu a qualquer associação de combate à islamofobia, ou mesmo a uma ONG islâmica. Estes jovens radicalizados leram textos em francês ou em inglês que circulam na Internet, mas não leram obras em árabe.
Estranhamente, os defensores do Estado Islâmico nunca falam da sharia e quase nunca falam da sociedade islâmica que será construída sob a tutela do ISIS. Os que dizem que foram para a Síria porque queriam “viver numa sociedade verdadeiramente islâmica” são normalmente retornados que negam ter participado em violência enquanto lá estiveram — como se querer fazer a jihad e querer viver de acordo com a lei islâmica fossem coisas incompatíveis. E, de certa forma, são incompatíveis, porque viver numa sociedade islâmica não interessa aos jihadistas: eles não vão para o Médio Oriente para viver, mas sim para morrer. É este o paradoxo: estes jovens radicais não são utópicos, são niilistas.
O mais radical nos novos radicais, em comparação com as gerações anteriores de revolucionários, islamistas e salafistas, é o seu ódio pelas sociedades existentes, sejam elas ocidentais ou muçulmanas. Este ódio está consubstanciado na busca da própria morte ao cometer homicídios em massa. Eles matam-se juntamente com o mundo que rejeitam. Desde o 11 de Setembro de 2001, este é o modo de actuação preferido dos radicais.
O homicida em massa suicida é, infelizmente, uma figura contemporânea habitual. O exemplo típico é o atirador americano que vai para a escola altamente armado, mata indiscriminadamente o maior número possível de pessoas e depois suicida-se ou deixa-se matar pela polícia. Ele já publicou fotografias, vídeos e declarações na Internet. Neles, assumia poses heróicas e regozijava-se com o facto de toda a gente ir passar a saber quem ele era. Nos Estados Unidos, houve 50 ataques ou tentativas de ataque deste género entre 1999 e 2016.
A fronteira entre um assassino em massa suicida deste género e um militante a favor do califado é, compreensivelmente, indefinida. O assassino de Nice, por exemplo, começou por ser descrito como um doente mental e, mais tarde, como um militante do ISIS cujo crime tinha sido premeditado. Mas estas ideias não se excluem mutuamente.
A questão é não misturar estas categorias. Cada uma delas é específica, mas há uma linha comum considerável entre os homicídios em massa realizados por jovens descontentes, niilistas e suicidas. O que as organizações como a Al-Qaeda e o ISIS proporcionam é um guião.
A força do ISIS é jogar com os nossos medos. E o medo principal é o medo do islão. O único impacto estratégico dos ataques é o efeito psicológico. Eles não afectam as capacidades militares do Ocidente; até as reforçam, ao pôr fim aos cortes orçamentais militares. Têm um efeito económico marginal e só põem em risco as nossas instituições democráticas no sentido em que nós próprios as questionamos através do debate sem fim sobre o conflito entre a segurança e o Estado de direito. O medo é que as nossas sociedades venham a implodir e haja uma guerra civil entre os muçulmanos e os “outros”.
Perguntamo-nos o que o islão quer, o que o islão é, sem nos apercebermos nunca de que este mundo do islão não existe; que o ummah [comunidade constituída por todos os muçulmanos do mundo] é, na melhor das hipóteses, um desejo devoto e, no pior dos casos, uma ilusão; que os conflitos são, acima de tudo, entre os próprios muçulmanos; que a chave para resolver estes conflitos é, em primeiro lugar, política; que os assuntos nacionais continuam a ser centrais no Médio Oriente e a questão social é central para a integração.
É certo que o ISIS, tal como a Al-Qaeda, criou um sistema imaginário grandioso onde se imagina a conquistar e a derrotar o Ocidente. É uma fantasia gigantesca, como todas as ideologias do fim do milénio.
Mas, ao contrário das principais ideologias seculares do século XX, o jihadismo tem uma base social e política muito limitada. Como vimos, ele não mobiliza as massas e só atrai quem está nas margens da sociedade.
Há a tentação de ver no islão uma ideologia radical que mobiliza multidões de pessoas no mundo muçulmano, tal como o nazismo conseguiu mobilizar largos segmentos da população da Alemanha. Mas a realidade é que a pretensão do ISIS de estabelecer um califado global é uma ilusão — é por isso que atrai jovens violentos que têm delírios de grandeza.
Excerto editado do livro Jihad and Death: The Global Appeal of Islamic State de Olivier Roy, publicado pela Hurst e divulgado no The Guardian a 13 de Abril de 2017.
Tradução: Rita Monteiro