Salvador Sobral, uma voz que sabe entrar nas canções
Há apenas três meses, poucos saberiam quem era Salvador Sobral. Mas desde a primeira semi-final do Festival RTP da Canção o cantor de Amar pelos dois, crescido a ouvir obsessivamente Chet Baker, tornou-se um fenómeno que já nem as fronteiras limitam.
É finalmente na noite desta terça-feira que se perceberá quanto se cumprirá da esperança de que a canção interpretada por Salvador Sobral possa conquistar o Festival Eurovisão da Canção. Talvez ainda bafejado pela histórica vitória portuguesa no último Europeu de Futebol, Portugal mergulhou nas últimas semanas num clima de pré-euforia, mas agora tendo por alvo uma canção delicada chamada Amar pelos dois. Só que o entusiasmo, como se foi percebendo aos poucos, galgou as fronteiras e alastrou a muita outra gente seduzida por um miúdo de 27 anos de pose pouco estudada e que não carrega na voz senão o puro prazer de cantar. Quarta-feira de manhã, até pode ser que o país acorde com uma ressaca de injustiça e desilusão se Salvador, tido como um dos favoritos à vitória, não for um dos escolhidos a transitar da primeira semi-final para a final de sábado, em Kiev. Mas o mais importante é o caminho até aqui: uma multidão que descobriu e se apaixonou por um jovem cantor que quase ninguém conhecia há menos de três meses.
Em Fevereiro de 2016, numa sessão para alguns convidados na vivenda do Restelo que fora a casa de Rui Valentim de Carvalho, a editora que carrega o nome do seu fundador fazia uma primeira apresentação de Salvador Sobral a amigos, jornalistas, músicos e profissionais do meio. Nessa curta actuação, cerca de um mês antes da edição do seu álbum de estreia, ficava clara a capacidade interpretativa de Salvador. E ficava também claro que, navegando sempre em águas próximas dos clássicos do jazz vocal, ia mais longe quando cantava palavras e música oferecidas pela sua irmã, a cantautora Luísa Sobral.
Na altura, uma espreitadela aos vídeos de Salvador Sobral no canal YouTube estava muito longe de acumular 1,3 milhões de visualizações (como agora acontece com cada uma das interpretações de Amar pelos dois, na semi-final e na final do Festival RTP da Canção) e as provas da facilidade com que navegava pelas melodias era atestada por vídeos de rua registados em Barcelona, onde viveu enquanto estudava jazz na prestigiada escola Taller de Musics. Agora, é preciso peneirar a sério para encontrar essas imagens, tal a profusão de gravações que entretanto invadiu o YouTube.
Excuse Me foi lançado, algo discretamente – apesar de umas quantas aparições televisivas – em Março de 2016. Como braço direito de Salvador Sobral estava – como está ainda – o pianista Júlio Resende, que se cruzara com o cantor tempos antes numa jam session no Hot Clube de Portugal. “Acabámos por tocar uma música juntos e gostei muito de o ouvir”, recorda o pianista ao PÚBLICO. “Percebi que estava ali alguém com uma capacidade de cantar para lá da competência e da eficiência. Era uma coisa emocional.”
Júlio Resende já não se recorda em pormenor, mas é provável que o tema que então tocaram juntos tenha sido I fall in love too easily, popularizado por Frank Sinatra e por (e é o nome que se segue que verdadeiramente interessa a esta história) Chet Baker. A química entre os dois foi imediata e o instrumentista – cujo interesse em trabalhar com vozes o tem levado a partilhar palcos com Sílvia Pérez Cruz, Aldina Duarte, Gisela João ou Elisa Rodrigues – foi construindo com Salvador uma relação artística em grande parte alicerçada na sua admiração pela “facilidade que ele tem de entrar nas canções”.
É precisamente essa capacidade de “entrar nas canções”, acompanhada de uma fragilidade que em nada enfraquece a força interpretativa, que sobrevém da audição de Amar pelos dois e que tem deixado tantos ouvintes em delírio. Depois de uma participação aos 19 anos no programa Ídolos, em 2009, Salvador partiu para o estrangeiro, para os Estados Unidos e para Espanha onde aprofundou a inclinação natural pelo jazz, tendo cantado bossa nova, reportório latino-americano e criado espectáculos em torno de Chet Baker – cuja audição compulsiva em adolescente inspirou Luísa a compor para a sua voz o tema I might just stay away.
O tema encontra-se em Excuse Me, álbum que documenta também a atracção de Salvador Sobral pela América do Sul, através da interpretação de um tema do brasileiro Dorival Caymmi e um outro do pianista cubano Bola de Nieve, uma faceta que, por enquanto, está longe do radar mediático sintonizado em cada gesto e cada canção do músico.
Coisas extraordinárias acontecem
Júlio Resende, que se tornou naturalmente próximo de Salvador Sobral, ouviu Amar pelos dois antes do público em geral. E por muito que a sua fé no talento do cantor seja inabalável, nada lhe permitiria antecipar “esta apoteose que acabou por acontecer”. O pianista suspeita que parte da forma tão imediata como a canção foi acolhida se prenda com essa temática tão batida quanto universal que é o amor, mas que entregue a uma voz como a de Salvador tem um efeito de reconfortante identificação – “o nosso coração fica mais feliz cada vez que o pode escutar”, resume.
De resto, todo o fenómeno gerado em torno de Salvador Sobral é comparado por Júlio Resende a uma paixão súbita, que entusiasma tanto quanto assusta quem a protagoniza. Portugal é um país pouco habituado a estes arrebatamentos, reconhece. “Mas temos de aceitar, sem grandes temores, que de vez em quando coisas extraordinárias acontecem.” Veremos se, desta vez, a longínqua noite de Kiev desencadeará um amor fervente entre Portugal e a Eurovisão.