O mundo não vive sem cada canção de Sílvia Pérez Cruz

A 12 de Maio, a catalã lança Vestida de Nit, álbum gravado com quinteto de cordas mas sem a rigidez das partituras, dispensadas pela cantora para privilegiar a emoção. Álbum de uma liberdade e de um risco que tocam a perfeição.

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Alex Rademakers

Em Novembro de 1966, Violeta Parra lançou um álbum que não demorou a ser considerado um prenúncio de morte. Desse registo, Las Últimas Composiciones, fazia parte Gracias a la vida, tema que passou a ouvir-se como uma despedida da cantora chilena, canção de pés cansados de percorrer cidades, charcos, praias, desertos, montanhas e planícies, demasiado cansados já para prolongar a marcha e prestes a quedar-se por terra, cuja beleza simples e o impacto emocional transformaram numa das canções mais notáveis do século XX. O suicídio de Violeta Parra passados escassos meses, em Fevereiro de 1967, trataria de ampliar essa impressão de que cantava publicamente o seu fim com uma fatal tristeza que se diria pacificada — quase soprando as palavras -, ganhando a canção a força de um hino humanista que se espalhou pelo mundo graças às versões de Mercedes Sosa, Joan Baez ou Elis Regina.

As interpretações de Gracias a la vida são incontáveis. A de Joan Baez terá sido aquela que mais ajudou à sua disseminação por todo o planeta; a da argentina Mercedes Sosa será aquela que mais contribuiu para o estatuto de clássico. De tal maneira que entre os falantes e cantantes de castelhano, dos dois lados do Atlântico, parece ter uma presença titânica e carregar um tal magnetismo irresistível que faz com que, ao avolumarem-se as novas versões, cada uma só já pareça engrandecer o original dorido de Violeta Parra e a mais clássica versão de Sosa. Até há um ano não teve, no entanto, uma presença invulgar ou especialmente intensa no percurso de Sílvia Peréz Cruz, nascida há 34 anos em Palafrugell, Catalunha. “Não era algo que cantasse em pequena”, diz a cantora espanhola ao Ípsilon. “Soa-me tão intensa e importante quanto a toda a gente, mas não é a banda sonora da minha vida.” Aconteceu que tendo actuado no Chile e na Argentina em 2016, incluiu a canção no alinhamento “como uma pequena prenda para aqueles países”.

Só que uma canção na voz de Sílvia Pérez Cruz rompe com qualquer (réstia de) normalidade. Não é apenas mais uma canção. É sempre a canção mais essencial ao mundo no momento em que dura na sua voz. E se essa canção se chama Gracias a la vida, como aconteceu no concerto Canções para Revoluções, com que Lisboa celebrou o último 25 de Abril, não ter sentido o corpo estremecer e ser invadido por aquele canto que transporta tanto do fogo do flamenco quanto da liberdade aérea do jazz seria motivo suficiente para procurar ajuda médica e esperar um diagnóstico pouco animador. Porque com Sílvia, à semelhança daquilo que ela diz acontecer-lhe com as suas heroínas — “mulheronas, almas potentes”, como lhes chama — Lola Flores, Amália Rodrigues, Edith Piaf ou Chavela Vargas, acredita-se nela com quantas forças temos quando se lança a uma canção. Como acontecia com qualquer uma destas “mulheronas”, há uma emoção suprema nas suas interpretações, como se cada palavra não pudesse senão conter a inteira verdade do mundo, como se sugasse toda a energia da terra e tudo murchasse à sua volta, como se todos os mistérios da vida coubessem na sua voz, como se o mais terreno e o mais transcendente se encontrassem, por momentos, num mesmo lugar.

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Uma canção na voz de Sílvia Pérez Cruz rompe com qualquer (réstia de) normalidade. Não é apenas mais uma canção. É sempre a canção mais essencial ao mundo no momento em que dura na sua voz Alex Rademakers

Algo terá ficado de quando, ainda criança, deu de caras com a bailarina e cantora de flamenco Lola Flores na televisão e paralisou perante aquilo que se lhe apresentava como uma “arte que não admitia dúvidas”. Era assim porque tinha de ser, sem estar presa a conceitos ou a outras razões que não fossem abandonar-se àquilo que cada canção lhe oferecia e pedia ao mesmo tempo.

É dessa emoção selvagem, rude, indomada que se faz Vestida de Nit, o quarto álbum de Sílvia Pérez Cruz e que, como nenhum outro antes, capta de forma aproximada o abalo que é assistir a um concerto da espanhola, em que basta olhar em volta para testemunhar o que significa um encantamento colectivo. Nada há de acidental nisso. Vestida de Nit é o resultado de um longo trabalho de palco desenvolvido com um quinteto de cordas, gravado em apenas dois dias, mas cujo lastro vinha já de Janeiro de 2014. Pensando sempre em formas distintas de se provocar e correr riscos como intérprete, ao ser convidada para se apresentar a solo (voz e guitarra) num ciclo de música clássica madrileno que se deixa invadir por outras músicas, Sílvia respondeu que aceitava mas queria antes cantar com um quinteto. “Quando estudei música na universidade — em que havia clássica, flamenco e jazz”, recorda, “às vezes escutava os quartetos e quintetos de cordas, e ficava louca com aquilo. Pensava que adoraria estar dentro daquele som das madeiras. A guitarra também é corda e madeira, mas esta é uma sensação muito mais completa.”

Fora com as partituras

Não tendo propriamente a pretensão de seguir os passos dos quintetos de Schubert, Mozart, Brahms, Dvorák ou Beethoven, sabia que teria de escolher “canções que conhecesse muito bem para poder trabalhar neste formato e com a sua sonoridade”. Ou, descodificando, teria de manusear canções que conhecesse tão intimamente que a torrente sonora não teria como soterrá-la, não saberia roubar-lhe o espaço interpretativo ou como obrigá-la a cantar enquanto esperneava para garantir que a sua voz ficava à tona e não se fazia ouvir em esforço. “Há algo que controlo em canções que conheço muito bem e que me permite investigar como romper os limites desta sonoridade concreta.”

Esse rompimento, como se imagina, não foi instantâneo. Os concertos que se seguiram à primeira actuação — que tanto entusiasmou Sílvia Pérez Cruz quanto o ensemble — seriam fundamentais para que a rigidez típica de uma formação destas fosse dando lugar a uma outra elasticidade, tornando as canções mais distendidas e mutáveis, disponíveis para seguir a natureza inquieta de Sílvia Pérez Cruz, ao invés de constituírem travões para alguém que só se forçada prossegue duas vezes pelo mesmo exacto caminho criativo. Ao contrário do que seria de esperar, de facto, Vestida de Nit é um disco de espantosa liberdade e em que a cantora corre enormes riscos, sem ceder ao medo de mexer com uma formação que traz consigo alguma solenidade e sem se dar por apaziguada com um disco bonitinho e com arranjos de cordas que julguem bastar-se a si mesmos.

“Creio que é o disco mais corajoso que já fiz”, arrisca. “Precisamente porque quando se fala em quinteto de cordas pensa-se em música clássica, em rigidez e em partituras. E fiz um trabalho apaixonante, um pequeno passo de tentar que um quinteto pudesse soar como uma guitarra e em que não houvesse barreiras. Mas tinha de fazer isto com os músicos e convencê-los para que tocassem sem partitura foi algo que demorou meses. A música clássica protege-se muito atrás das pautas e quando se tira isso, se há tempo para memorizar, desaparece o código, já só há emoção.”

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E não foi só o código a desaparecer. Na verdade, na primeira ocasião em que as partituras e as estantes foram dispensadas, a total ausência de barreiras sonoras entre Sílvia e os músicos criou uma intensidade tal que a cantora diz ter perdido o fôlego e o norte em palco. “Fiquei doida com aquilo”, recorda, “ porque toco dentro deles, estou rodeada pelo som deles e, de repente, estavam a dar-me muito mais.”

Mais radical, mais suave

Outro dos efeitos que Sílvia Pérez Cruz (aluna de improvisação do extraordinário pianista Agustí Fernández nos tempos de universidade) pretendia alcançar ao livrar-se das partituras era abrir espaço para a improvisação e, com essa maleabilidade, instrumentos e voz poderem flutuar, fazer dos tempos uma matéria mais oscilante, sensíveis ao momento. Mas se contava com três músicos também fluentes na linguagem jazzística, para os outros dois a improvisação era um assustador poço sem fundo. Aos poucos, a diferença esbateu-se e a liberdade que queria que circulasse entre voz e instrumentos conquistou o espaço suficiente para que canções como Gallo rojo, gallo negro ou Corrandes d’exili, recorrentes no seu reportório, surjam com um grau de exploração em que não prescindem de um grama da sua identidade enquanto os seus limites são empurrados. Corrandes, confessa, “é uma canção muito dura”. “Fiz dois takes para o disco e já não podia mais. Só que quando a escutei pensei que estava num plano intermédio — precisava de ser um pouco mais radical ou um pouco mais suave. Tentei então separar as partes com um pouco de distorção.”

A distorção pode soar herética em quem começa Vestida de Nit com a candura menos enviesada de Tonada de luna llena, de travo flamenquista. Mas não é isso que acontece, nem rebenta com estrondo quando Sílvia Pérez Cruz se atira à ginga latino-americana de Mechita (composição do peruano Manuel Raygada Ballesteros). A liberdade vai-se impondo de mansinho, transformando aos poucos aquilo que a elegância do quinteto de cordas permite, esticando cada vez mais o seu alcance, como um dedo que puxa o elástico de uma fisga para trás até, de repente, culminar num disparo. O que não implica, ainda assim, que Vestida de Nit se vá construindo com o único propósito de preparar a chegada desses temas mais arriscados. Não há um arrebatamento mais contido em Tonada de luna llena, nem sequer há um risco mais controlado ao aplicar este formato à Lambada (sim, essa mesma), de Kaoma, que foi um fenómeno de popularidade radiofónica e televisiva na passagem para os anos 90.

Lambada (chorando se foi) começa com aquele que será, talvez, o arranjo de aparência mais clássica. Veste-se do romantismo enlevado de Schubert só para enganar e atrai uma melancolia estranha ao videoclip veraneante em que rabos e coxas concentravam toda a atenção enquanto bailavam a música do Pará. Quando Sílvia pediu a um amigo que lhe fizesse um arranjo de cordas para Lambada, este hesitou se o pedido era uma brincadeira ou um sinal de insanidade — talvez por isso, termina Lambada e a cantora atira-se a Loca. “Não o faço pensando em rasgar com alguma coisa”, diz sobre a escolha da canção brasileira. “Sou muito orgânica, faço de coração. Simplesmente desde pequena adoro esta melodia. Então começamos lentamente, com as cordas, para que se desfrute, vamos subindo e chego àquilo que queria — reivindicar essa melodia.”

Curiosamente, não é Lambada a oferecer o momento de descompressão num álbum de intensidade sempre carregada — esse papel cabe a Ai ai ai, tema que Pérez Cruz compôs para Domus, álbum com os temas da banda sonora do filme Cerca de Tu Casa. “São canções muito fortes e num concerto não as colocaria todas de seguida, teria de separá-las”, diz. “Não sei se aguentaria um alinhamento destes. Havia até mais duas ou três canções que estavam muito bem, mas já era demasiado.” Na sua discografia, Vestida de Nit é um álbum focado na interpretação e, por isso, próximo de Granada, gravado em duo com o guitarrista Raül Fernandez Miró, um outro registo de assombro. Mas vai mais longe na recriação do registo de concerto. Granada era gravado por partes e baseava-se numa outra sonoridade e relação musical, enquanto aqui tudo parece mais volátil e espontâneo.

Daí que no processo de “plantar emocionalmente” as canções, Sílvia Pérez Cruz sentisse que tinha material em excesso. Ao “tentar criar uma viagem, em que cada canção passa coisas diferentes” e em que explora dinâmicas distintas, percebeu na primeira audição integral que fez do disco, num trajecto nocturno de carro por estradas francesas, que não devia abusar da concentração do ouvinte. Interessava-lhe criar um som de unidade com os músicos e apresentá-lo como algo diverso e completo, mas queria travar antes de embater na redundância ou na sobredose. Nessa viagem de carro tornou-se claro onde é que o disco devia calar-se. E um dos temas que ficou então de fora foi uma versão de Hallelujah, de Leonard Cohen, com a qual não ficara inteiramente satisfeita. “Pensei que tinha de ser um homem velho e beber álcool para poder cantá-la”, confessa. Mas a decisão de excluí-la não lhe trouxe qualquer paz. E não conseguia afastar a ideia de que o álbum lhe soava incompleto, como se interrompido subitamente por um golpe desferido a despropósito. Parecia amputado, refém de uma presença fantasma.

Com a morte de Cohen, Sílvia voltou a escutar a gravação e a perceber que não resultava. Nesse momento quebrou a sua própria regra de gravar tudo ao vivo (a que acrescentou cirúrgicas segundas vozes) e já no estúdio em que estava a misturar o álbum voltou a tentar, cantando não para os músicos (como antes) mas cantando para a imagem mental do velho crooner e poeta canadiano, consciente de que este estava farto de ouvir Hallelujah e outros dos seus temas cantados por todo o pretendente a cantor deste mundo. Já em Granada foi Cohen a obrigá-la a furar as suas próprias regras, uma vez que a combinação com Raül era a de não gravarem temas demasiado presentes na memória colectiva. Pequeño vals vienés, a contragosto de Raül, foi a excepção. Agora, Hallelujah é a excepção não apenas no registo ao vivo mais adulterado, mas também por ser o único tema que não tinha já sido testado em palco vezes suficientes para que os arranjos estivessem colados à voz de Sílvia, ajustados à medida do seu canto milagroso.

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Ouvir hoje Sílvia Pérez Cruz será uma fortuna semelhante àquela que tiveram os privilegiados que ouviram Chavela, Amália, Piaf, Violeta e até Lhasa nos seus anos áureos Alex Rademakers

A purga

Vestida de Nit deve o seu nome de baptismo a uma canção que tem mais ou menos a idade de Sílvia Pérez Cruz. Composta pelos seus pais, Castor Pérez e Glòria Cruz, Sílvia cresceu a ouvi-la, tantas e tantas vezes que se fartou da música — como qualquer filha provavelmente se fartaria das criações dos seus pais. Só em 2010, ao ser convidada a participar num festival de habaneras — a grande paixão musical de Castor — na sua terra, pensou que poderia ter lugar na sua vida e fez as pazes ao cantá-la em palco com o pai. A morte deste passados escassos meses passados — facto que desencadearia a gravação do primeiro álbum de Sílvia, 11 de Novembre — havia de salvar o tema em definitivo. “Por acasos da vida”, descreve, “tornou-se uma das canções que me acompanha, me protege e me lapida. Tem graça porque para mim é como resgatar algo do passado e dar-lhe outra vida sem querer. Não procuro estas coisas, mas sabia que só poderia aparecer num disco em que fosse muito bem cuidada. Tinha de ser feita com gente que a tratasse bem.”

Se a purga emocional em 11 de Novembre (data de nascimento de Castor Pérez) era assumida — num álbum em abordava directamente a morte do pai em Pare meu mas em que era impelida sobretudo pela noção de que não deveria adiar os seus discos e fixar a sua música enquanto a vida continuava a correr em fundo sem grande respeito pelos seus tempos pessoais — e se voltar a cantar Vestida de Nit traz consigo uma visitação a um lugar emocional frágil, Sílvia Pérez Cruz garante que a música apenas lhe traz “uma limpeza” e não qualquer esgravatação da dor. “Até porque há muitas formas de se contar algo íntimo sem que se entenda. Posso ter toda essa intimidade num simples ‘ah’. Para mim, o delicado está sempre na relação com os outros. É um pouco como aquela frase que diz que há que ter mais medo dos vivos do que dos mortos e dos fantasmas. Não tenho cautelas nem cuidados com aquilo que canto.”

Até porque foram os vivos que, no auge da crise em Espanha, atiraram para as ruas centenas de famílias sem capacidade para pagar a hipoteca das suas casas. Seria esse o mote do álbum anterior Domus e de uma canção-estandarte No hay tanto pan, cuja letra faz “banqueros y trileros” [discursos, jornais, banqueiros e apostadores] rimar com “confetis, cruceros e puteros” [confetti, cruzeiros e putanheiros]. Será a canção mais revolucionária de todas aquelas a que deu voz até hoje. E que não cantou no Terreiro do Paço por não ter ainda suficiente história atrás de si. Mas a cada novo disco e a cada novo concerto, aquilo que parece óbvio é que esta é uma das vozes que marcarão de forma mais profunda os nossos dias. Ouvir hoje Sílvia Pérez Cruz será, porventura, uma fortuna semelhante àquela que tiveram os privilegiados que ouviram Chavela, Amália, Piaf, Violeta e até Lhasa nos seus anos áureos e disso se podem gabar para inveja generalizada. É a isso que estaremos muito provavelmente a assistir de novo neste momento.

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