E depois dos ecrãs: que vida pode sobrar?

Estamos rodeados de ecrãs e a vida parece caber em meia dúzia de polegadas. Nos transportes públicos, nos restaurantes, em casa. Há quem pense que a utilização febril dos dispositivos conduz afinal a uma nova forma de ignorância.

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nelson garrido

“Nada é mais significativo e deprimente do que ver numa entrada de uma escola, ou num restaurante popular, ou na rua, pessoas que estão juntas, mas que quase não se falam, e estão atentas ao telemóvel, mandando mensagens, enviando fotografias, vendo a sua página de Facebook, centenas de vezes por dia”, escreveu o colunista José Pacheco Pereira na sua última crónica de 2016 para o PÚBLICO. Nela, define um novo tipo de ignorância: aquele que não está apenas relacionado com a falta de conhecimento pura e dura, mas com a falta de interesse pelo que nos rodeia – e que estaria, em grande parte, relacionada com os dispositivos electrónicos e as redes sociais. 

Fala também da falta de capacidade de questionar o mundo e de distinguir a informação certa da falsa. E, pior: porque a informação não-verificada se propaga de forma tão rápida nas redes sociais, Pacheco Pereira define-as como “viveiros de populismos”. Será apenas isso?

Miguel C. Tavares e José Alberto Gomes estiveram em Hong Kong e as imagens que trouxeram parecem ilustrar a crónica de Pacheco Pereira (ainda que não estejam directamente relacionadas). Em cinco minutos, a curta-metragem <i>In Between</i> mostra uma sociedade alheada do que se passa à sua volta e presa aos ecrãs.

Miguel Tavares, formado em arquitectura mas que hoje em dia é realizador freelancer, explicou ao PÚBLICO que não foi para Hong Kong com uma ideia pré-definida – passou lá um mês a misturar-se com a população e com a cidade e a perceber como funcionam as dinâmicas de comunicação. “A ideia surgiu lá, não foi algo pensado”, explica. “É um tema que também me interessa e é bastante actual e pertinente: essa alienação, o facto de cada pessoa viver no seu mundo”. E trouxe para Portugal imagens de pessoas nas suas deslocações quotidianas, mas que não conseguem desligar-se: os olhos estão presos ao ecrã do smartphone e os auriculares não saem dos ouvidos. 

Conta que sentiu mais isso em Hong Kong do que em Portugal, “pela própria dinâmica da cidade” e “pelas distâncias que as pessoas percorrem de transportes”, que acabam por atirá-las para o refúgio do telemóvel e das redes sociais. “Em Portugal não há nada parecido”, considera. Talvez nas grandes metrópoles europeias, mas ainda assim com algumas reservas. 

As reacções que teve enquanto filmava são sintomáticas dessa diferença entre as sociedades ocidentais e orientais: “Era impossível tentar fazer o mesmo em Portugal. Eles têm um à-vontade muito grande com as fotografias e com as câmaras”. No entanto, salienta uma certa falta de abertura em relação ao outro, uma certa reserva e uma vontade de manter as distâncias – salvaguardando que o choque de culturas pode ser a causa disso. 

Miguel C. Tavares já não é novato nas andanças dos festivais de cinema. Com a curta-metragem Sizígia, realizada pelo colectivo Ruptura Silenciosa, do qual fez parte, esteve no Festival Internacional de Cine de Mar del Plata, na Argentina, no Festival Court c’est Court, em Cabrières d’ Avignon, França, e no Indie Lisboa, todos em 2013. A curta-metragem ??? IN BETWEEN ???, filmada em 2016, ainda não se estreou em nenhuma plataforma e é mostrada publicamente agora pela primeira vez.

A “linha da vida” que é o smartphone

Estamos cada vez mais ligados e já quase não sobram dúvidas: o smartphone passou a ser o veículo principal da navegação na Internet a nível global – e os jovens são os seus principais utilizadores. “No Brasil, em três anos, passou-se de 30% de jovens que acediam à Internet pelo smartphone para 85%”, explica Cristina Ponte, investigadora e professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL) que se especializou nas questões que envolvem crianças e jovens e os media. “Num estudo com 44 jovens universitários angolanos, verificou-se que menos de 10 têm um computador e uma ligação à Internet a partir de casa, por isso é o smartphone que os liga ao mundo”. Em Portugal, ainda há uma grande tradição na utilização do computador porque “os jovens cresceram com os programas do e-escolas e e-escolinhas, que lhes deram acesso a computadores portáteis”, explica a investigadora.

Mas a tendência para a crescente utilização do smartphone é real e começa a ter consequências. Pacheco Pereira, por exemplo, alerta para a alienação quase total dos jovens: “Não há maior punição para um adolescente do que se lhe tirar o telemóvel, e alguns dos conflitos mais graves que ocorrem hoje nas escolas estão ligados ao telemóvel que funciona como uma linha de vida”, escreveu. 

Cristina Ponte, professora universitária, confirma que os jovens confiam cada vez mais no smartphone. “Por exemplo, os meus alunos dizem-me muitas vezes que deram uma vista de olhos no texto que mandei para ler no telemóvel, mas isso não dá para nada”. A investigadora diz que há coisas que têm de levar o seu tempo – e ler é uma delas. “Concordo com Pacheco Pereira quando ele diz que o tempo da leitura não é o tempo da imagem em movimento – sobretudo se estas imagens durarem apenas 60 segundos e forem mudas. Há um tempo que pede para ser vivido de forma mais lenta”.  

No entanto, salienta que a sensibilidade para os perigos da Internet e dos ecrãs é fruto da cultura familiar e dos processos prévios – e não apenas do facto de se ser jovem, como parece sugerir Pacheco Pereira na passagem citada acima. O espírito crítico nasce de um “ambiente estimulante” criado em casa, diz a investigadora, de jovens que foram incentivados, desde cedo a exprimirem as suas opiniões. “Não podemos ver os jovens e a tecnologia e ignorar os ambientes familiares em que viveram, a educação que tiveram, o facto de terem crescido em condições de liberdade e de acesso a um conjunto diversificado de literatura, cinema, teatro…”, explica a investigadora, acrescentando que todas as pessoas têm recursos diferentes, o que justifica o facto de a tecnologia não actuar em todas as pessoas da mesma forma. Por isso, defende, é perigoso generalizar, como fez Pacheco Pereira. 

Activismo político e as redes sociais

“Há jovens que têm a capacidade de ter um espírito crítico e tiram partido das redes sociais, normalmente com um sentido mais activista”, adianta a mesma investigadora. O que explica, em parte, os movimentos activistas (de jovens e não só) nascidos nas redes sociais. Cristina Ponte considera que os telemóveis e as redes sociais facilitam a organização e mobilização em torno de uma causa. Isso ganha mais expressão no caso dos jovens porque “estão sempre na vanguarda das tecnologias, são capazes de se mobilizar e fazer curto-circuito à informação mainstream”.

Ao mesmo tempo, assiste-se a um tempo em que os jovens não parecem ter outra alternativa às redes sociais. Cristina Ponte salienta que na actualidade há alguns espaços que lhes são interditos, e que os obrigam a procurar outras formas de estarem em contacto uns com os outros. A rua, por exemplo, tornou-se num espaço quase proibido e os adolescentes são vistos como arruaceiros se andarem em grupo. 

Já Tiago Lapa, investigador do Centro de Estudos de Sociologia do ISCTE-IUL e professor na mesma universidade, salienta o carácter mais tradicional das manifestações de interesses políticos que começam nas redes sociais e que passam para a rua. “Quem usa as redes sociais quer transmitir uma mensagem”, sintetiza. “Os movimentos sociais organizam-se a partir das redes sociais – o que provoca uma certa globalização desses movimentos – mas há que perceber que um dos objectivos dessas mobilizações é, precisamente, aparecer na televisão”, acrescenta o investigador.

Exemplo disso foi a manifestação de 12 de Março de 2011, que ficou conhecida como manifestação da “gração à rasca. Tiago Lapa diz que as redes sociais foram peças centrais nessa manifestação, mas que se “não tivesse sido televisionada, não teria o impacto que teve na percepção das pessoas”.

Já António Guerreiro, ensaísta, crítico literário e cronista, tem uma visão mais céptica sobre a possibilidade de as redes sociais se constituírem como a voz de um movimento político. Conta ao PÚBLICO que, até hoje, “não há uma comunidade política ou um sujeito social constituídos através das redes sociais”. O que não quer dizer, explica, que as redes sociais não produzam efeitos, mas são “de outra ordem”. “As redes sociais são um bom exemplo de um mecanismo hipertélico, algo que vai para além dos seus próprios fins e se anula por isso”, considera. 

“Quem não está na rede é como se não existisse”

Se não foi fotografado, comentado ou gravado no Facebook, no YouTube, no Twitter ou no Instagram é porque não aconteceu: é esta a lógica que parece reger a comunicação nas redes sociais. E, segundo Cristina Ponte, é importante pensar nos tipos de vigilância que instaura. Por um lado, a vigilância positiva, o facto de “podermos tirar uma fotografia a algo que achemos injusto”, como descreve a investigadora, e partilhá-lo numa questão de segundos. Por outro, instaura “um tipo de vigilância e controlo, tidos quase como naturais, e que colocam muitas questões de privacidade e reserva”. E, de facto, o que está na Internet não sai da Internet – para o bem e para o mal. O direito ao esquecimento impõe-se como um novo debate político, cujas bases só agora foram lançadas. “É uma batalha política pura que poderá ganhar algum relevo nos próximos anos”, avalia Tiago Lapa. 

Parecemos cada vez mais alheados do mundo – mas saltamos de aplicação em aplicação e sabemos exactamente o que cada um dos nossos amigos está a fazer. Como Pacheco Pereira coloca a questão: “quem envia um ping espera um pong”, escreveu o colunista da sua primeira crónica deste ano no PÚBLICO, em que voltou ao tema. “É uma pressão para estarmos constantemente ligados e a responder num tempo vertiginoso”, confirma Cristina Ponte. “[Os novos meios] são quase totalitários. Quem não está na rede é como se não existisse”, afirma a investigadora da FCSH. 

Em Portugal são cada vez menos os casos de pessoas que optam por não pertencer ao universo das redes sociais. O número de utilizadores continua a aumentar e isso tem a ver com a “nossa cultura latina”, de querer saber sempre o que os outros estão a fazer. “A cuscar”, como resume a professora.  

“A sociedade da transparência, ditada pelos media sociais, retira a distância mas ao fazer isso retira a possibilidade da descoberta e da curiosidade”, explica Tiago Lapa. Dá a falsa impressão de que é possível conhecer e saber tudo sobre uma pessoa, apenas através daquilo que ela escolhe publicar na Internet. “Essa transparência é enganadora e extremamente redutora”, adverte o investigador do CIES, até porque a personagem online é construída e “aquela pessoa tem outra vida, outras máscaras e outros sentimentos, é apenas uma versão de si mesma”. 

Contudo, não se trata, necessariamente, de “sociedades sem relações humanas de vizinhança, de companhia e amizade, sem interacções de grupo, sem movimentos colectivos de interesse comum” como avalia Pacheco Pereira. Cristina Ponte afirma, que, pelo menos no caso dos adolescentes, estas dinâmicas sociais não são novas. “É o que faz com que o jovem se sinta integrado”, especialmente no caso das raparigas. Antigamente “eram as cartas, depois as cassetes, os telefones, todo um conjunto de recursos tecnológicos que eram dados aos adolescentes” e que, na essência, não são diferentes dos media sociais. 

Alienação e a (aparente) ascensão dos populismos 

Quando se tira o holofote dos jovens e adolescentes e se passa para os adultos, o cenário não sofre grandes alterações. Pacheco Pereira escreve que “não é por acaso que o grande reservatório do populismo político e social nas sociedades ocidentais são as redes sociais, que, não sendo a causa do populismo, são um seu grande factor de crescimento e consolidação”. Será que há necessariamente uma relação entre as duas coisas? 

A opinião de Tiago Lapa não é totalmente contrária. Explica que o problema não é exclusivo das redes, mas de um conjunto de condições políticas especiais que “tornam esses discursos atractivos”. As pessoas transmitem as suas opiniões sobre um determinado assunto “utilizando uma ferramenta que têm à mão, que são as redes”. Mas ressalva que tem mais a ver “com os mensageiros do que com os meios” – portanto isto podia acontecer na Internet, na rua ou nas páginas de um jornal. De acordo com o professor do ISCTE, as redes sociais suprimem algumas necessidades de sociabilidade mas “ainda são um meio que temos de aprender a utilizar”. O que falta, muitas vezes, é uma abordagem crítica sobre o que se lê – uma certa desconfiança em relação à fidedignidade e credibilidade das pesquisas online. E para generalizar esse espírito crítico há que aumentar a literacia da população: fazer com que saibam descodificar mensagens e perceber o objectivo do emissor quando escreve e publica nas redes sociais. 

Não se trata de uma época com falta de informação. Trata-se, antes, de um contexto em que há “várias informações contraditórias disponíveis” – há demasiada informação e não se sabe em quem acreditar. Em paralelo, houve a deterioração de “um conjunto de autoridades, sendo o jornalista uma delas”. Também neste ponto, Tiago Lapa e Pacheco Pereira estão de acordo. 

Discordam apenas na definição de “nova ignorância”. Pacheco Pereira define “este novo tipo de ignorância” como um “ataque ao saber, ao conhecimento certificado, em nome de um igualitarismo da ignorância”. Tiago Lapa tem algumas reservas. A existência de várias fontes de informação não é necessariamente negativa: “Permitem canais alternativos para obter informação fora dos canais mainstream”, diz Tiago Lapa, o que é positivo porque cada pessoa pode fazer a sua dieta informativa própria. 

O investigador, por outro lado, não concorda que os ecrãs e as redes sociais por si sejam um meio de alienação, como sugere Pacheco Pereira. A discussão, aliás, já é antiga. “É uma associação muito antiga e que já vem com o cinema, com a televisão, com os grandes meios de comunicação e que agora é associado à Internet”, explica Tiago Lapa. Essa teoria baseia-se num conjunto de pressupostos, como a falta de pensamento crítico e passividade dos consumidores de conteúdos. “Sim, qualquer meio tem potencial de alienação”, admite o professor, “mas há que perceber para que grupo e em que condições”.

António Guerreiro, por sua vez, coloca a questão da alienação noutra perspectiva: “o mundo que nos rodeia não é o das tecnologias, da realidade virtual, das imagens sem referente? Se estamos atentos a esse mundo, estamos atentos ao real porque não existe outro”. Não se trata necessariamente de alienação. Na perspectiva do ensaísta aceitar que existe alienação “seria aceitar uma velha concepção de que estamos mergulhados na ‘ideologia’”, que precisa de ser afastada, “como um véu”, para aceder à verdade. 

Para além dos ecrãs, o que existe?

Nem a Organização Mundial de Saúde nem o manual da Associação Americana de Psicologia definem a dependência da Internet como uma doença mental. No entanto, há programas de tratamento para a dependência da Internet, que a equiparam a adições a substâncias como a droga ou o álcool. Daniel Sampaio, psiquiatra responsável pelo Núcleo de Utilização Problemática da Internet do Hospital de Santa Maria, explica ao PÚBLICO que “as pessoas que têm dependências da Internet, do ponto de vista do cérebro, não são muito diferentes das que são dependentes das drogas ou do álcool": "Tem a ver com a diminuição da ansiedade”, explica. 

O que distingue a utilização normal da utilização abusiva da Internet é o prejuízo da vida pessoal e social. Faltar à escola, ao trabalho, às refeições e aos convívios com amigos seriam sinais de uma utilização abusiva. O simples facto de estar sempre ligado não faz com que alguém seja viciado na Internet – acontece apenas a partir do momento em que se deixar de lado as actividades do quotidiano. Na categoria dos casos pouco problemáticos estão as “pessoas sozinhas”, mas com “óptimas relações em presença”, que desenvolvem com recurso a vários dispositivos, descreve Daniel Sampaio. 

“O grande problema das pessoas dependentes da Internet é que muitas vezes têm patologias associadas, sintomas de outras doenças mentais, particularmente sintomas depressivos ou ansiosos”, afirma o psiquiatra. O tratamento é psicológico e psiquiátrico e consiste em tratar as perturbações associadas, fazendo, ao mesmo tempo, uma desabituação à Internet – mas nunca cortando abruptamente o seu uso. 

Os casos de pessoas que apresentam sintomas de dependência relançam o debate sobre o progresso. Este debate é antigo, e no entender de Tiago Lapa, está resolvido. O progresso técnico nem sempre anda de mãos dadas com o progresso social e isso é óbvio em muitas esferas da vida quotidiana. “Não é por termos melhores aparelhos que vivemos melhor”, resume. 

A questão do trabalho é sintomática de uma utilização da Internet que nem sempre se traduz numa melhoria das condições de vida, que é, por sua vez, um debate político. Algumas profissões tornaram-se obsoletas e a intensificação do trabalho é uma realidade. O direito a desligar, que deu origem a uma nova lei em França e que tem passado, também, para as agendas políticas de outros países europeus, é exemplo disso. Para Cristina Ponte, a questão é simples: trata-se de bom senso da parte de quem manda um e-mail ou tenta telefonar fora do expediente. “Esta discussão é importante para nos fazer pensar que temos que ter respeito pelo outro e pelo seu tempo de descanso”, considera. Resume a questão de maneira peremptória: “Podem mandar e-mail, mas não fiquem à espera que responda”. 

No entanto, evidencia que “na maior parte do tempo, as pessoas estão ligadas, não por causa do trabalho, mas porque há um certo horror ao ‘não fazer nada’”. E isso reflecte-se na maneira como os pais educam os filhos: “Há pais que acham que o tempo dos ecrãs deve ser útil, por isso, os filhos devem estar a fazer alguma coisa educativa”, resume a investigadora. E isso nem sempre é o melhor do ponto de vista pedagógico. 

Esta nova sociabilidade “faz parte de sociedades em que deixou de haver silêncio, tempo para pensar, curiosidade de olhar para fora, gosto por actividades lentas como ler, ou ver com olhos de ver”, escreve Pacheco Pereira. As questões avolumam-se – a Internet mudou assim tanto o nosso quotidiano? Constitui um tipo de progresso? É uma nova forma de expressão política? A comunidade cientifica ainda não chegou a um consenso mas estas questões – que começam a ser agora discutidas no âmbito político – tornam-se cada vez mais relevantes.

Texto editado por Sérgio B. Gomes e Hugo Daniel Sousa

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