“Não há nada na Constituição que proíba a vacinação obrigatória”
Paulo Otero diz, contudo, que é difícil que o Estado possa ser responsabilizado judicialmente pela morte de alguém que contraiu uma doença evitável por vacinação.
O professor catedrático e constitucionalista Paulo Otero considerou nesta terça-feira que “não há nada na Constituição que proíba a vacinação obrigatória” quando está em causa a protecção da saúde pública e o perigo de contágio alargado da doença.
Paulo Otero falava à agência Lusa numa altura em que existe um surto de sarampo em Portugal, que deixou uma jovem de 17 anos internada nos cuidados intensivos do hospital Dona Estefânia, em Lisboa, e quando é sabido que não existe uma política de saúde que imponha a vacinação obrigatória para certas doenças.
Questionado sobre se a vacinação obrigatória não colide com direitos fundamentais do cidadão previstos na Constituição, Paulo Otero salientou que “é a saúde pública que está em primeiro lugar” em situações de “contágio alargado da doença”.
“Estão em causa as crianças e os pais não são os seus donos. As crianças não são propriedade dos pais”, frisou o professor catedrático, observando que, em matéria de saúde pública e perigo de contágio, é muito discutível que os pais possam dispor da vontade dos filhos, quando em causa está a sobrevivência das próprias crianças.
E o Estado ser responsabilizado?
Além de não encontrar obstáculos de natureza constitucional que impeçam a vacinação obrigatória para protecção da saúde pública, Paulo Otero reconheceu, no entanto, que é difícil que o Estado possa ser responsabilizado judicialmente pela morte de alguém que contraiu a doença evitável por vacinação.
“O que pode haver é a violação do dever de legislação (do Estado) em tornar obrigatório certo tipo de vacinas”, disse, admitindo também que possam ser levantadas questões sobre a responsabilidade civil do Estado em não tornar obrigatória a vacinação contra certas doenças graves e contagiosas.
Quanto ao surto de sarampo em Portugal, Paulo Otero vincou que há “uma atenuante” para o Estado, porque o “surto é anómalo”, já que há décadas que não existia nenhum surto desta doença.
O professor catedrático insistiu porém que “não há motivos decorrentes da tutela dos direitos fundamentais que obstem a casos de vacinação obrigatória”, embora esta obrigatoriedade deva estar sempre subordinada ao “princípio da proporcionalidade”. Ou seja, não faria sentido, por exemplo, tornar obrigatória em Portugal a vacinação contra uma doença que só existe nos trópicos.
"Uma agressão física"
Contactado pela agência Lusa, o constitucionalista e deputado do PS Bacelar de Vasconcelos assinalou que o tema da vacinação é uma questão “polémica entre as próprias instituições de saúde” e que há “opiniões que se contradizem relativamente à imposição da vacinação obrigatória”, nomeadamente quanto a certas “doenças ou surtos epidémicos”.
“É sobretudo uma questão de avaliação da epidemia”, disse Bacelar de Vasconcelos, para quem “só perante uma ameaça grave em que está em causa a saúde pública” é que se deve ponderar a obrigatoriedade da vacinação.
“Em última análise, a vacinação obrigatória é sempre uma agressão física”, considerou o deputado socialista, admitindo contudo que “não há um impedimento constitucional” em tornar a vacinação obrigatória quando “houver um perigo grave para a saúde pública”.
“Não havendo essas condições [de perigo para a saúde pública] impor a toda a gente a vacinação obrigatória é ridículo”, disse, nomeadamente “perante um surto de sarampo que estava erradicado em Portugal”.
Bacelar de Vasconcelos entende que quaisquer medidas que sejam tomadas pelas autoridades sanitárias sobre a vacinação devem ser “proporcionais” à situação que enfrentam, muito embora em “cenários de grave crise epidémica as entidades de saúde pública tenham a possibilidade de adoptar medidas excepcionais e transitórias que travem a propagação da doença”.
Quanto a eventuais responsabilidades criminais ou civis do Estado em situações de morte por ausência de vacinação obrigatória, o constitucionalista considerou que a questão “não se coloca neste momento” e que só uma “negligência grave” poderia fazer repensar o assunto.
Uma jovem de 17 anos com sarampo está internada nos cuidados intensivos do hospital Dona Estefânia, em Lisboa, encontrando-se ventilada, sob sedação e o seu estado clínico é instável.
O hospital recorda que não é prática habitual emitir informação clínica pública sobre doentes internados e que só o faz agora, após autorização da família da doente, a título excepcional.
Em Portugal, desde janeiro de 2017 e até ao fim do dia de segunda-feira, foram registados 21 casos confirmados de sarampo pelo Instituto Ricardo Jorge, havendo outros casos ainda em investigação.
Um surto de sarampo tem afectado desde o início do ano vários países europeus. Esta é uma doença altamente contagiosa, geralmente benigna mas que pode desencadear complicações e até ser fatal. Pode ser prevenida pela vacinação, que em Portugal é gratuita.