Alberto Carneiro, inventor de mundos, escultor da natureza

Nasceu na aldeia de São Mamede do Coronado, na Trofa, e, sem nunca a abandonar verdadeiramente, viajou mundo fora para se tornar um dos mais importantes escultores portugueses. A morte chegou aos 79 anos.

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Daniel Rocha

Era um dos mais importantes escultores portugueses, autor de um corpo de obra em que arte e vida são indissociáveis e dotado de uma voz única em que a ruralidade e a proximidade à natureza — consequência do nascimento, em 1937, na aldeia de São Mamede do Coronado, concelho da Trofa — se aliava ao estudo e profundo envolvimento com a filosofia oriental (Zen, Tantra, Tao). Alberto Carneiro morreu este sábado, aos 79 anos, no Hospital de S. João, no Porto, onde estava internado. A notícia foi confirmada ao PÚBLICO pela família do escultor.

Com ele a natureza entrou dentro dos museus. “Avança-se pelo mundo de Alberto Carneiro como por uma floresta. Às escuras, tropeçando em árvores, raízes e pedras, até aparecer uma clareira e o céu explodir na luz desgovernada de um manhã de Inverno”, escrevíamos em 2014. Ao longo dos anos participou nas Bienais de Veneza (1976) e de São Paulo (1977), entre outras grandes exposições internacionais. Nas antológicas da sua obra, contam-se as apresentadas na Fundação Calouste Gulbenkian (1991), em Lisboa, na Fundação de Serralves (1991), no Porto, para além do Museu Nacional Machado de Castro (2000), em Coimbra, no Centro Galego de Arte Contemporânea (2001) de Santiago de Compostela, no Museu de Arte Contemporânea do Funchal (2003), e na Casa da Cerca, em Almada.

“Se tivesse nascido na cidade, se tivesse vivido a minha primeira infância na cidade, a minha obra não seria o que é. Nem eu, provavelmente, me teria encontrado com este mundo”, dizia em entrevista publicada na 2, revista do PÚBLICO, em 2013. “Sendo a mesma pessoa, fisicamente, o mesmo nariz, as mesmas orelhas, não seria o mesmo. A minha sensibilidade foi construída numa relação directa com essas coisas. Aprendendo a amar essas coisas. E não as dispensando”. A consciência da importância desta origem na sua formação e na forma de olhar o que o rodeava foi fundamental no seu percurso artístico, iniciado em 1947 numa oficina de santeiro onde trabalharia 11 anos.

A relevância dessas raízes é igualmente enaltecida pelo subdirector do Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia, em Madrid (e ex-director do Museu de Serralves), João Fernandes, que em declarações ao PÚBLICO fala dessa "coragem" do artista em "assumir o seu conhecimento dos rituais camponeses e agrícolas, e levá-los para um processo de apropriação e transformação da natureza", acabando por nessa dinâmica "levar a natureza para dentro dos museus e galerias, criando novas experiências sensoriais onde o espectador deixava de o ser para passar a ser participante da obra". Na sua visão, Alberto Carneiro "é o caso surpreendente de um homem que se faz artista sem nunca deixar de ser homem na sua plenitude, inventando novas formas de pensar, agir e reinventar a relação da arte com a vida e da arte com o mundo."

O percurso de João Fernandes está, aliás, ligado ao de Alberto Carneiro. "A primeira exposição que fiz, em 1992, chamava-se Sortilégios e foi uma sugestão dele", na qual participaram também Gerardo Burmester e Albuquerque Mendes. "Para mim foi importante na altura trabalhar com alguém que havia sido um pioneiro e que abriu muitos caminhos. O Alberto foi um dos artistas que me estruturaram na forma de pensar e agir", afirma, argumentando que a sua originalidade no contexto da arte portuguesa, "onde é pioneiro das linguagens conceptuais", como no plano internacional, continua em parte por avaliar. "Ainda existe muito por pensar acerca da universalidade da sua obra, principalmente no contexto internacional, onde o seu trabalho ainda não foi tão difundido como seria desejável. Ele é muito singular", avalia. "Veio de um contexto rural, de uma aldeia onde trabalhou em criança como aprendiz a fazer imagens de santos para as igrejas e aproveitou depois a sua extraordinária habilidade com as mãos. Em Londres confrontou-se com linguagens de âmbito internacional, mas em parte quando ele sai das Belas Artes do Porto já estava a caminho de construir uma linguagem própria, da qual resultaria uma obra original, que ainda deverá ser avaliada no contexto das linguagens da época que cruzam a arte com a natureza e a vida."

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Alberto Carneiro na Fundação Serralves, 2013 Paulo Pimenta

Algo semelhante diz o artista plástico José Pedro Croft ao PÚBLICO. "Toda a sua produção ao longo dos anos foi única, muito para além das nossas fronteiras. Ele era um homem do mundo, no sentido em que o universal é o local sem fronteiras", afirma. "Tinha uma relação muito forte com a natureza que marcou muito a relação que ele tinha do corpo, e do envolvimento do corpo, no trabalho directo que fazia. O seu olhar era absolutamente revolucionário, tendo acompanhado todos os movimentos dos anos 1970." Para além dessa dimensão e do seu trabalho individual, José Pedro Croft destaca o seu enorme apoio aos colegas. "Ao longo de décadas, com o parque de esculturas de Santo Tirso, foi organizando, cuidando, tratando e convidando outros artistas e fazer um trabalho que é único."

O artista plástico e escultor Carlos Nogueira diz ao PÚBLICO que a sua morte "é uma perda irreparável", enaltecendo "um artista maior e um professor maior, que ao longo dos anos foi igual a si próprio, tendo encontrado o seu caminho, que trilhou numa procura permanente de novos passos e novos saltos." E conclui: "Foi um autor incansável que trabalhou até aos últimos dias. Cultivemos a sua memória." Também o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, publicou uma nota de pesar na página da Presidência na Internet,  considerando que Alberto Carneiro procurou “incessantemente, uma arte ‘primitiva’” e “primordial, com um cunho meditativo de traços orientais”, recordando ainda que o artista descobriu cedo uma forte ligação à natureza, àquilo a que chamava a ‘personalidade’ das árvores, o vínculo às coisas concretas, e a dimensão corporal dos ofícios”. O ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, também lamentou a sua morte, através de uma nota onde é referido que "com uma voz singular combinou a arte com elementos da natureza e marcou as artes visuais em Portugal a partir da década de 60."

"Não mitifico a arte"

Trabalhava sobre a natureza, os elementos, a água, a terra, o fogo e o ar. Na sua visão a obra de arte existia para questionar, para aumentar o campo de acção, para criar novas fronteiras e novos conceitos. "Eu e arte não sabemos ao certo quem somos, mas temos a certeza de sermos um do outro, e isto é tudo o que precisamos para a vida", escrevia no texto de apresentação da retrospectiva de Serralves, Arte Vida / Vida Arte, em 2013. Nessa altura, numa visita guiada que o PÚBLICO acompanhou, olhando para as suas obras, dizia: "Isto é um sortilégio. Eu vibro mais com isto do que com a Mona Lisa — e considero-me uma pessoa culta em relação à arte. Mas não a mitifico. A essência da beleza da Mona Lisa e do Moisés, encontrámo-la também aqui."

Licenciado pela Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP), em 1967, rumaria a Londres no ano seguinte. Na capital inglesa foi aluno dos escultores britânicos Anthony Caro e Philip King, no âmbito da pós-graduação que frequentou na Saint Martin’s School of Art. A primeira exposição individual aconteceu antes da viagem para Inglaterra, em 1967, na ESBAP. Entre 1975 e 1976, anos em que estudou as formas e os procedimentos estéticos resultantes do amanho da terra, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian.

Em paralelo à sua obra escultórica, deixou bibliografia, sob a forma de livros e ensaios, dedicados a Arte e Pedagogia. Foi professor de Escultura na ESBAP, na década de 1970, director pedagógico e artístico no Círculo de Artes Plásticas da Universidade de Coimbra, entre 1972 e 1985, e professor na Faculdade de Arquitectura na Universidade do Porto.

Ao longo dos anos realizou mais de setenta exposições individuais e participou em mais de cem mostras colectivas, em Portugal e no estrangeiro. Além da presença em território português (Santo Tirso, Chaves, Metropolitano de Lisboa, Jardins da Casa de Serralves), deixa obras espalhadas por todo o mundo: The Stone Garden, em Gateshead, Inglaterra, uma escultura no parque metropolitano de Quito, Equador, outra em Wicklow, na Irlanda, outra na Aldeia Folclória Coreana, na Coreia do Sul, ou uma escultura na cidade de Taoyuan, na Ilha Formosa, para citar apenas alguns exemplos.

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Exposição Arte Vida / Vida Arte, 2013 Nelson Garrido

No início dos anos 1990 foi o grande ideólogo do Museu Internacional de Escultura Contemporânea (MIEC), actualmente com 54 obras espalhadas por vários espaços públicos de Santo Tirso. Aliás a câmara local vai adjudicar nos próximos dias a obra relativa ao projecto Centro de Arte Alberto Carneiro, um projecto que deverá ser inaugurado no final de 2018.

Entre as distinções que recolheu ao longo da carreira, incluem-se o Prémio Nacional de Escultura (1968) ou o Prémio Nacional de Artes Plásticas da Associação Internacional de Críticos de Arte (1985). Reconhecido internacionalmente, presente em vários museus e colecções, continuava a ter na aldeia onde nasceu a sua residência e o seu local de trabalho.

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