Os caminhos de quem caminha para Fátima
A peregrinação até Fátima é muito mais do que uma promessa. É um momento de reflexão interior, de partilha de experiências e de desafio à resistência física. Acompanhámos os peregrinos para ouvir as suas histórias e descobrir as estradas que percorreram até chegarem ao caminho da peregrinação.
O leve manto de nevoeiro ainda não se tinha dissipado quando 100 pessoas, numa madrugada no início de Abril, se preparavam para partir da aldeia da Merceana, no concelho de Alenquer, a caminho de Fátima. Pela frente tinham uma caminhada de 105 quilómetros, quatro dias fora de casa a dormir em santuários e albergues, a carregar consigo apenas o essencial: roupa, água, comida e protector solar.
O centenário de Fátima é um incentivo para estas pessoas participarem nesta peregrinação anual organizada pela Unidade Pastoral da Merceana. Mas não é a razão principal. Para a maioria, a peregrinação a Fátima não é tanto uma questão de promessa, mas sim um teste à sua resistência física e uma forma de arranjar tempo para estar consigo e reflectir sobre a vida.
“Descobri que não se tratava só de gostar de andar ou de ser católica, mas sim de ser um retiro para mim própria”, desabafa Ana Margarida Martins. “Penso nas pessoas que me rodeiam, nos seus problemas e nos meus. Penso em tudo”. Esta funcionária administrativa de 29 anos não é uma principiante nas peregrinações. No ano passado, chegou a ir sozinha até Fátima, mas rapidamente foi acolhida pelos grupos com que se cruzava. “Foi o ano em que me senti mais acompanhada, porque todos os grupos me queriam adoptar. Houve um que nem me deixou seguir o meu caminho. Diziam-me: ´Não, vais ficar aqui connosco, não tens hipótese’”, ri-se. Apesar de ter tido uma educação católica, Ana Margarida acredita que nem sempre ser crente de uma religião é sinónimo de bondade. “Há pessoas boas e há pessoas más. As pessoas que acreditam em Deus podem ter um íntimo mau e devoção de forma errada e aquelas que não acreditam podem ser boas pessoas e fazer o bem diariamente. Acho que isso tem mais valor do que ir todos os dias à missa. Acredito mais em pessoas boas do que em pessoas cristãs”.
Depois de uma pausa para um lanche e um momento de oração na aldeia de Casais Galegos, o grupo começa a subir a serra por um caminho íngreme. Ao lado de Ana Margarida vai uma criança de boné na cabeça e mochila às costas. Maria Carrilho tem 11 anos e veio acompanhar o pai, Orlando, na sua primeira peregrinação. Ao longo da subida, ouve-se Orlando a incentivar a filha a manter o ritmo da caminhada. “Estava com muito receio, mas fiquei muito contente quando a Maria disse que vinha comigo”, revela com emoção. “Isso ajuda-nos a ter força, a continuar a caminhar e a seguir em frente”. Orlando tem 57 anos e está desempregado há um mês. Mas acredita que esse período irá permitir-lhe aprender uma nova forma de estar na vida, e no futuro dedicar mais tempo à família e menos ao trabalho. Para além disso, tem a certeza de que este período de desemprego irá durar pouco tempo. “Só aos 50 anos é que me virei para a religião católica, e foi uma transformação muito grande em mim. Tenho passado por muitos problemas mas acho que quando temos fé as coisas se realizam”. Pai e filha aventuraram-se nesta viagem com um único objectivo: chegar até Fátima. “Quando lá chegarmos vai ser uma alegria”, diz Maria entusiasmada. “Então se não for no carro de apoio, faço uma festa”.
Com a Merceana já a alguns quilómetros de distância, os peregrinos atravessam várias aldeias e cruzam-se com os seus habitantes. Quem passa pelo grupo – padeiros, talhantes, pastores ou habitantes – raramente permanece indiferente. Trocam-se acenos, iniciam-se conversas, há quem receba apertos de mão ou abraços: “Bom dia, como está?”; “Olhe, são umas entremeadas para Fonte Pipa, que é onde vamos almoçar!”; “Boa viagem, tudo de bom.” Esta última frase é aquela que mais se ouve, até o grupo passar por inteiro. No meio do campo, o silêncio é interrompido pelas conversas, risos e canções dos peregrinos. Antes de chegar à aldeia onde pára para almoçar, o grupo compromete-se a permanecer em silêncio para reflectir e “ficar em comunhão com Deus”. A quietude volta. Durante praticamente meia hora, para além do barulho das passadas na terra, resta apenas o tilintar dos chocalhos de uma dezena de cabras que pastam no monte.
Na frente da peregrinação vai Francisco Jorge Júnior, a pessoa mais velha do grupo, com 76 anos, a quem chamam na brincadeira de “especialista em peregrinações”. Francisco tinha 16 anos quando foi pela primeira vez a pé até Fátima. Agora, já conta com mais de 60 peregrinações, a maioria por promessa. Em 1963, Francisco foi destacado para combater na Guerra Colonial, em Angola. Um dia, foi apanhar flores para decorar a figura de uma santa que estava no acampamento. Os colegas ao verem o carro cheio de flores, arrancaram, deixando-o para trás. No meio da floresta cerrada, não se via sol nem lua. Apenas árvores com ramos tão altos que cobriam o céu. “Pedi a Nossa Senhora que ninguém me apanhasse. Disse: ‘Oh, minha rica Nossa Senhora, se me salvares, quando chegar a Portugal, a primeira coisa que vou fazer é ir a Fátima’”, conta Francisco. “Prometi que, enquanto pudesse andar, ia até Fátima a pé”.
Francisco é dos poucos que ainda caminham devido a uma promessa. Neste grupo de 100 pessoas – 85 a caminhar, os restantes no carro de apoio, encarregues da logística e das refeições –, a maioria procura usufruir da experiência e do sentimento de companheirismo. Para Margarida Crispim foi a curiosidade que “alimentou o bichinho” pela peregrinação. Com 50 anos, é proprietária de uma sapataria na Merceana e todos os anos recebe clientes à procura do calçado ideal para fazer a peregrinação. Mesmo sem se sentir uma especialista no assunto, dava conselhos e fazia questões sobre o caminho, até começar a fazer parte dele. “Passo pelos sítios que conheço tão bem e vou dizendo aos outros: ‘Olha, eu nasci aqui. Baptizei-me aqui’. E as pessoas começam a ver as coisas com outros olhos”, diz Margarida, que rapidamente se destaca do grupo de peregrinos pela boa disposição com que contagia os outros durante a caminhada. “Todos os dias temos mochilas às vezes bem mais pesadas do que aquelas que trazemos às costas a caminho de Fátima”, confessa. “Passei perto de uma casa de umas pessoas amigas que perderam um filho. Eu tenho um filho com 25 anos e andamos numa fase conturbada os dois. E eu comecei a pensar para mim: ‘O que penso eu, que não consigo transmitir aquilo que gostaria ao meu filho, e o que pensará esta mãe, que perdeu um filho e não tem essa possibilidade? Tenho uma coisa que me parece de uma dimensão gigantesca mas é tão pequenina comparada com a daquela mãe que perdeu um filho. Só passar numa estrada, junto de uma casa, leva-nos a pensar em coisas de que no dia-a-dia não nos lembramos, porque estamos preocupados com outros assuntos”.
Esta peregrinação com partida na Merceana começou a ser organizada há cerca de dez anos pelo padre Rui Louro, e é agora mantida por quatro padres e pelos paroquianos que ganharam o gosto e o hábito de manter viva esta tradição. Desde o início, a peregrinação é feita pelo campo, excepto em alguns troços onde apenas é possível seguir pela estrada. Mas o percurso pode alterar-se de ano para ano. “Nem sempre vamos pelo mesmo caminho por uma razão muito simples: precisamos de nos desinstalar e de arriscar”, refere o padre João Sobreiro, 34 anos, que acompanha o grupo de peregrinos. “Para além de ser mais seguro, ao ir pelo campo temos o privilégio de podermos contemplar a criação de Deus e também de estarmos uns com os outros em silêncio, para nos escutarmos”. Os peregrinos provêm das oito paróquias que constituem a Unidade Pastoral da Merceana, seis do concelho de Alenquer e duas do concelho de Torres Vedras. Cada ano, o número de participantes varia, mas tende sempre a aumentar. “Há uma sede de espiritualidade cada vez maior. Hoje em dia, vemos Fátima como um alimentar da espiritualidade e a peregrinação como um alimentar da fé. Mais do que uma promessa, é uma forte experiência de encontro com Deus e de estar em comunidade”, defende o padre João Sobreiro.
No dia 8 de Abril, pelas 16h30, os peregrinos chegaram a Fátima. A pequena Maria conseguiu chegar ao fim sem ter de ir no carro de apoio. Mas, para a maioria, não é a chegada que importa, mas sim o caminho. As amizades que se criam, o apoio mútuo em momentos mais difíceis – quando os pés se enchem de bolhas e as pernas fraquejam –, as refeições partilhadas e a espontaneidade da viagem, onde vários caminhos se cruzam. “Aquilo de que eu mais gosto é aquilo que nos une. É o facto de estarmos aqui, virmos como pessoas singulares mas acabarmos como um colectivo”, explica Miguel Marques, de 22 anos. “Não olho nem para começo nem para o fim, olho para o que se passa aqui. O meu objectivo não é chegar, é estar aqui a viver”.