Crianças mergulharam na escuridão para sentir o que os cegos sentem
Desafio partiu do escultor Rui Chafes e teve como destinatários alunos do Centro Helen Keller.
O que se sente na escuridão, no silêncio? O que se vê? Numa sala às escuras, com os olhos vendados, 21 alunos entre os seis e os 15 anos do Centro Helen Keller, em Lisboa, acabam de mergulhar nesta aventura, para a qual não iam preparados.
Aconteceu nesta segunda-feira. Sabiam que iam participar num workshop de escultura que tinha como nome Silêncio, mas sobre a parte da escuridão ninguém lhes falara antes. “A surpresa é um factor importante para responderem com maior espontaneidade”, justifica ao PÚBLICO o escultor Rui Chafes, autor da ideia para esta actividade e seu orientador.
Pela sala escura já tinha passado outro grupo. Os que agora estão sentados em filas de seis ignoram o que se passou com aqueles que os precederam. Têm à frente um pequeno tronco de madeira e um bloco de massa para moldarem.
“Cada um vai fazer uma escultura ou várias, mas do vosso mundo interior, que nunca viram”, exorta o escultor, 51 anos. Por isso, também, a importância do silêncio, da escuridão, das vendas (só três das crianças do grupo têm uma deficiência visual), porque assim “vão estar a usar só o tacto, a tentar imaginar uma escultura dentro de vocês, mas também a tentarem perceberem como é o mundo para os vossos colegas invisuais, para se aproximarem ainda mais deles”, prossegue Rui Chafes.
Na sala não se ouve uma voz. As mãos vão trabalhando a massa. Uns em pedaços muito pequenos, outros avançando por dimensões maiores o que, segundo o escultor, que foi prémio Pessoa em 2015, apenas demonstra o que sabe há muito, que “o interior não tem escala”.
“Quando toco vejo”
Rui Chafes vai acompanhando os movimentos das mãos a moldar a massa. “Fico sempre fascinado”, confessa. Esta experiência com crianças é “uma coisa rara” na sua vida, mas, diz, veio comprovar que há uma “pureza” nos mais pequenos: “Dizem o que lhes vai na alma sem pensar duas vezes.”
Há quem trabalhe a massa para a depor no tronco que tem à frente, mas muitos ficam-se apenas pelo primeiro material. E depois há Ringo, 15 anos, o único da sala que não tem nenhuma visão: partiu o tronco em pequenos pedaços e em conjunto com a massa fez uma amálgama de texturas.
“Foi o que me veio à cabeça, o que fui sentindo com as mãos. É difícil de explicar”, diz sobre aquilo que fez quando, uma hora depois, as vendas são retiradas. Para ele não faz diferença, a escuridão permanece. Arrisca: “Quando toco vejo. É outra forma diferente de ver as coisas.”
João, 12 anos, que não tem nenhuma deficiência visual, imaginou logo um anjo e foi um anjo que lhe saiu das mãos no final do workshop. E porquê esta escolha? “Porque tenho muita sorte com o que vivo, com os meus amigos, com os meus pais, com tudo. É como se tivesse um anjo que me guarda.”
Na fila de trás, Ricardo, 13 anos, fez uma figura humana com uma mão na cabeça e uma porta de cada lado: “São portas de entrada e ele não sabe qual escolher. Simboliza onde temos de entrar no mundo, mas ele está confuso porque não sabe ainda. Eu próprio ainda não sei onde pertenço, que escolhas hei-fazer.”
Durante a actividade, há o som do mar proveniente de um gravador e também cheiros de incenso, alfazema, que vão sendo dados a cheirar aos alunos. Há quem se sobressalte de imediato, encaminhando o rosto na direcção do cheiro, mas muitos outros nem reagem de tal modo estão entregues ao acto de moldar algo na escuridão.
O silêncio não existe
No final, Rui Chafes há-de dizer-lhes que afinal o silêncio não existe. Enquanto a actividade durou ouviram-se os barulhos do recreio, os pavões que por ali passeavam, os sons do mar, mas é com esses ruídos que têm de procurar o “silêncio que há neles” e assim “desacelerar”. “O silêncio pode ser uma espécie de paz interior”, tinha dito antes ao PÚBLICO.
“Num mundo saturado de ruídos”, o silêncio é também algo crucial para o director pedagógico do Centro Helen Keller, Pedro Coragem, 35 anos. Este colégio, que vai do jardim-de-infância ao 9.º ano do ensino básico, tornou-se conhecido, sobretudo, por receber crianças com deficiência visual. Hoje, estas são uma minoria.
Foi de Pedro Coragem que partiu a iniciativa de desafiar o escultor das sombras que também é Rui Chafes para prosseguir um dos princípios do seu mandato, iniciado em Setembro passado: a inclusão pela arte. O outro pilar é a ecologia.
“A inclusão não passa só por falarmos da deficiência visual, mas sim por dar voz a estes miúdos, por exemplo fazendo os outros sentir a diferença que marca o mundo deles”, relata. Rui Chafes diz que mal lhe foi feito o convite, a ideia que agora pôs em prática surgiu-lhe de imediato. “Como o Centro Helen Keller tem por tradição acolher crianças invisuais, juntei duas noções: uma que desenvolvo muito, que é a da escultura como um mundo interior, que nos permite olhar para dentro de nós; a outra foi a de fazer com que os outros alunos tivessem uma compreensão de como os seus colegas [com deficiência visual] percebem o mundo.”
Na sala, já com a luz acesa e as vendas retiradas, alguns alunos relatam o que sentiram. “De olhos vendados o esforço para tentar perceber onde está tudo é enorme. Mostrou-nos que este é um mundo totalmente diferente”, resume um deles.