A guerra do pão de Caracas é um problema português
A situação na Venezuela é tão grave, e a comunidade de emigrantes e descendentes tão grande, que o chefe da diplomacia portuguesa chamou a si, pessoalmente, a coordenação do dossier.
Quando o Presidente da Venezuela declarou que ia ganhar “a guerra do pão em Caracas”, uma comunidade de emigrantes ficou em sobressalto: a portuguesa. É fácil perceber porquê. Mais de 90% das padarias da capital venezuelana são de emigrantes portugueses ou dos seus descendentes.
A preocupação não foi vã. Nos últimos dez dias, o Governo expropriou mais de 20 padarias e despachou para a rua fiscais e milícias populares com a tarefa de fazer rondas diárias às padarias para verificar o cumprimento do Plano 700 — que define as novas regras sobre produção e venda de pão. Como esperado, algumas das padarias “tomadas” são portuguesas. “Há dois ou três casos”, disse nesta terça-feira à tarde o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, numa audição na Comissão dos Negócios Estrangeiros da Assembleia da República.
A deterioração da situação económica e social na Venezuela é hoje tão grave que Santos Silva assumiu “pessoalmente a condução do dossier” e fará a coordenação interministerial dentro do Governo.
Em crise desde a queda do preço do petróleo em 2013, a Venezuela está neste momento, oficialmente, em “estado de emergência alimentar” e acaba de pedir ajuda às Nações Unidas para o fornecimento de medicamentos.
É neste país onde falta de tudo e onde a inflação atinge os 550%, que as canillas — semelhantes às baguetes, mas mais largas — se transformaram no símbolo mais cru da crise venezuelana.
“Os portugueses estão a sofrer duas vezes: como padeiros e como cidadãos”, diz António Freitas, que emigrou há 42 anos para a Venezuela e é hoje um dos seis conselheiros do país com assento no Conselho das Comunidades Portuguesas, órgão consultivo do Governo português. “Mas temos esperança de que este seja um momento pontual. Isto não é um tsunami, é um momento menos bom.”
No Parlamento, o deputado que trouxe o tema para debate, José Cesário, do PSD, fez um retrato menos sereno. “Na comunidade portuguesa, reina um autêntico pânico, as ocupações de estabelecimentos criaram medo real e o sentimento de algum abandono.”
Quadratura do círculo
O novo plano, anunciado pelo Presidente Nicolás Maduro há duas semanas, impõe três regras: 90% da produção das padarias tem de ser de canillas (a forma sugere uma anteperna, daí o nome) e só 10% da farinha pode ser usada para fazer bolos ou os populares cachitos; as padarias têm de estar abertas entre as 7h e as 19h e ter sempre pão; e os preços são tabelados.
Muitos consideram as regras irrealistas. É o Governo quem controla a distribuição da farinha e, com a crise, distribui pouco. “Uma padaria que há um ano consumia 10 sacos de farinha por dia, agora recebe do Estado 10 sacos para um mês inteiro”, resume António Freitas.
Ao problema matemático, junta-se outro: o mercado negro e a corrupção dos intermediários. Observadores que acompanham a situação alertam para o facto de estar a florescer o mercado clandestino da farinha, vendida a preços altos e sujeita a subornos. “Os padeiros estão entre a espada e a parede”, resume um diplomata. Se não têm pão para vender, violam a nova norma; se não alinham na especulação de preços, não conseguem matéria-prima; se são apanhados a comprar farinha acima do preço tabelado, são multados ou presos. “É uma pescadinha de rabo na boca.”
Há 176 mil portugueses inscritos nos serviços consulares na Venezuela, mas a comunidade tem muitas centenas de milhares de pessoas. Fala-se num milhão de luso-descendentes. Parece ser unânime que as medidas sobre as padarias não têm uma motivação anti-portuguesa. Os membros da comunidade são olhados como venezuelanos e muitos naturalizam-se nos anos 1970 e 80. Tecnicamente, de qualquer modo, Portugal não poderia invocar uma situação de protecção consular, porque a segunda nacionalidade é irrelevante perante o Estado da Venezuela.
Os instrumentos da diplomacia são por isso limitados. Num caso como este, há as chamadas “conversas diplomáticas”, que dependem da boa vontade do outro lado, e há espaço para fazer diligências alertando para a importância de a lei e os direitos dos cidadãos serem respeitados. Mas em 2017, Estado de Direito e Venezuela não rimam. A Organização dos Estados Americanos acaba de emitir um comunicado a exigir que Caracas liberte os seus prisioneiros políticos e volte a “respeitar os valores democráticos”, avisando que, se não o fizer, será suspensa. Na Venezuela, resume Pedro A. Neto, director executivo da Amnistia Internacional em Portugal, “não há democracia — está em curso uma ‘caça às bruxas’ de líderes da oposição e há um padrão de conduta do Governo de repressão das vozes dissidentes”.
Na comissão parlamentar, o ministro Santos Silva disse que as medidas de intervenção nas padarias (pelas “autoridades ou colectivos mais ou menos oficiosos”) são “ameaças à propriedade que merecem a nossa preocupação”, mas, para frustração dos deputados da oposição, recusou dizer especificar as diligências feitas.
José Cesário, que foi secretário de Estado das Comunidades de Pedro Passos Coelho, acredita que “o Governo deve ser mais actuante no plano diplomático e na área da protecção consular”, disse ao PÚBLICO à margem da audição. “Importa ter no terreno equipas muito eficazes que apoiem directamente os cidadãos nacionais alvo de situações que ponham em causa a sua segurança pessoal e a segurança das suas actividades profissionais e empresariais.”
Pão, arma política
Mal Nicolás Maduro acusou a federação nacional de padeiros de ter “declarado guerra ao povo”, avisando que iria ganhar a guerra, a padaria do emigrante português Eduardo dos Santos, no centro de Caracas, foi ocupada por inspectores da Superintendência Nacional para a Defesa dos Direitos Socioeconómicos, que chegaram acompanhados por milícias populares. Eduardo dos Santos contou que o empurraram à força para fora da sua padaria, tiraram-lhe a chave da loja e a entregaram a um Comité Local de Abastecimento e Produção, os CLAP, organizações de vizinhos criadas pelo Governo para distribuir alimentos a preços subsidiados. Tereck El Aissami, vice-presidente venezuelano, chamou à operação “usar a autoridade democrática, mas actuar”.
Emigrado na Venezuela há 25 anos, Eduardo dos Santos terá a sua padaria tomada durante pelo menos 90 dias. Os seus 18 empregados foram despedidos e agora, a fazer e a vender pão na sua loja, está um grupo que o emigrante descreve como “uns jovens com rastas, piercings e tatuagens”, a quem chamou “delinquentes”. Como noutros casos, a sua padaria Mansion reabriu no dia seguinte com um novo nome, Minka. Mas quando um jornalista da Associated Press lá foi dias depois, faltava uma coisa: pão. Vários relatos dizem que a nova gerência só vende pão a membros da CLAP.
O pão transformou-se em arma de arremesso político. Maduro diz que os padeiros provocam “filas na rua por maldade” e que fazem bolos para terem mais lucros. Os padeiros dizem que o regime tem de importar mais farinha.
Santos Silva deixou um aviso: “Portugal não é parte da guerra ideológica em curso na América Latina. Olhamos com interesse, mas não somos parte dela. Não somos um dos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos, não somos mais anti-venezuelano ou mais pro-Argentina, nem mais anti-Argentina e mais pro-peruano. Essa não é a nossa praia. A nossa preocupação é o relacionamento bilateral com a Venezuela, um país muito próximo de Portugal há muitos anos, no qual muitas empresas portugueses têm interesses, um país que apoiou inequivocamente o nosso candidato a secretário-geral da ONU desde a primeira hora”. A situação na Venezuela tem que ser vista com “muita prudência, muito cuidado, muita presença”, sublinhou. A receita de ouro para esta crise? “Fazer toda a paleta de diligências e nunca fechar os contactos com as autoridades.”