Um guia para o sinuoso caminho até ao “Brexit”
A partir de hoje, o Reino Unido tem exactamente dois anos para chegar a um acordo que enquadre a sua saída da União Europeia. O que falta percorrer até lá e quais os principais obstáculos nesse percurso?
Theresa May pôs finalmente em marcha o contra-relógio: o Reino Unido sabe que ao abrigo do artigo 50 do Tratado de Lisboa tem exactamente dois anos para chegar a um acordo que enquadre a sua saída da União Europeia (UE). As negociações que vão arrancar em breve serão das mais complexas e difíceis da História recente. Serão também inéditas — nunca nenhum país deixou a comunidade europeia — e a orientá-las está um artigo de cinco alíneas que determina apenas o essencial de um processo no qual se joga o futuro de um país e a estabilidade de toda a UE.
Quais são os próximos passos?
O presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, garante que os restantes 27 Estados-membros vão responder no prazo de 48 horas à notificação do Governo britânico. Bruxelas enviará às capitais uma proposta com as linhas de orientação para a negociação com Londres. Estas orientações, bem como o mandato da equipa de negociadores, liderada pelo antigo comissário europeu Michael Barnier, serão aprovadas numa cimeira extraordinária, a 29 de Abril. A Comissão Europeia demorará mais algumas semanas a elaborar o guião para as negociações que, na melhor das hipóteses, devem começar no fim de Maio ou início de Junho.
Afinal não eram dois anos?
Barnier tinha já avisado que o prazo útil para as negociações será só de 18 meses, lembrando que o acordo que vier a ser negociado terá de ser aprovado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho a tempo de tudo estar concluído a 29 de Março de 2019. May também já prometeu que os deputados britânicos votarão o acordo antes dos eurodeputados. Mas há outras datas a ter em conta: as legislativas alemãs realizam-se a 24 de Setembro e, sendo Berlim uma das capitais-chave no rumo das negociações, é pouco provável que os temas mais sensíveis sejam discutidos antes de se saber quem será o próximo chanceler. Como se não bastasse, em 2018 a UE vai começar a discutir o seu primeiro orçamento pós-“Brexit” (2021-27), pelo que quer acelerar as negociações sobre as implicações financeiras da saída do Reino Unido, o segundo maior contribuinte líquido para os cofres da União.
Como vão ser organizadas as negociações?
Essa será uma das prioridades quer de Barnier, quer de David Davis, o ministro para o “Brexit” que irá chefiar a delegação britânica. Mas será também uma das primeiras dificuldades. E o calendário terá grande impacto no desenrolar de todo o processo.
Londres quer uma abordagem simultânea das negociações, insistindo que é possível discutir o intrincado processo de divórcio e, ao mesmo tempo, o acordo de livre comércio com a UE, que espera concluir até 2019. Bruxelas, com o consenso dos 27, insiste em negociações faseadas e sublinha que é impossível concluir um acordo comercial em tão pouco tempo — o acordo com o Canadá, que não inclui o sector dos serviços que é caro a Londres, demorou sete anos a ser negociado.
Quais os temas prioritários?
Barnier quer que as negociações se centrem este ano exclusivamente nos arranjos para a saída britânica, dando prioridade a três dos temas que prometem gerar maiores tensões: as garantias a dar aos europeus que vivem no Reino Unido e aos britânicos que vivem na UE; a definição de quanto Londres tem ainda de contribuir para os cofres da UE; e a situação da fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, a única barreira terrestre entre o Reino Unido e a UE. Só depois os 27 aceitam discutir o futuro das relações bilaterais, e um acordo de transição, a adoptar entre o momento de saída e a entrada em vigor de um acordo comercial.
O Governo britânico sabe que as negociações faseadas lhe diminuem a margem de manobra, ao reduzir o tempo disponível para debater o que mais lhe interessa. John Kerr, o antigo embaixador britânico na UE que participou na redacção do artigo 50, recordou que o texto prevê que as negociações de saída “tenham em conta o enquadramento das relações futuras” entre os dois blocos. Ou seja, “pode ser possível chegar a um acordo sobre os princípios que governarão a futura relação comercial” antes de expirar o prazo.
O Reino Unido tem de pagar para sair da UE?
A resposta é um pouco mais complicada, mas dela pode depender o sucesso ou colapso das negociações. Quando o país sair da UE estará ainda em vigor o actual orçamento comunitário, para o período de 2014-2020. Bruxelas alega que Londres deve cumprir as contribuições que aceitou em 2013, quando o orçamento foi negociado, mesmo saindo antes do final de 2020. A isto acrescem os projectos de desenvolvimento europeu que o Governo britânico aceitou financiar, mas que só serão pagos após a execução (alguns só no princípio da próxima década) e as contribuições para o sistema de pensões dos antigos e actuais funcionários britânicos da UE. Várias fontes admitiram que a conta final poderia ascender aos 60 mil milhões de euros. Um montante que enfureceu os eurocépticos britânicos, apostados em garantir que May não aceita uma verba sequer próxima desse montante.
Londres aceita esta factura?
O Governo britânico já excluiu continuar a fazer “grandes contribuições” para a UE após a saída (apesar de admitir manter o financiamento a alguns projectos em que quer continuar a participar) e tem já alguns pareceres que alegam que o país não está legalmente obrigado a mantê-las. Mas, como reconhece um relatório da Câmara dos Lordes, a recusa em manter as contribuições minará a boa vontade de que Londres precisa para negociar um futuro acordo comercial. Vários observadores sublinham, por isso, que o montante aceitável para as duas partes terá de resultar de um compromisso político, mais do que de um cálculo puro. É incerto, no entanto, se os eurocépticos darão a May a margem suficiente para o fazer. Também Bruxelas estará sob pressão — o Reino Unido é o segundo maior contribuinte líquido da UE e a sua saída criará um rombo no orçamento que ronda os dez mil milhões de euros por ano.
E se ninguém ceder?
A hipótese de uma ruptura das negociações, logo numa fase inicial, é um cenário que ninguém excluiu e a “factura do divórcio” que será apresentada a Londres pode ser um dos gatilhos a desencadear a crise. A pressão interna (tanto política como mediática) para recusar um montante próximo do que lhe for exigido pela UE pode levar a primeira-ministra britânica a decidir bater com a porta e a convocar legislativas antecipadas. As sondagens indicam que os conservadores poderiam reforçar em muito a maioria no Parlamento, perante a debilidade da oposição trabalhista, o que permitiria a May regressar reforçada às negociações. Mas a estratégia tem um enorme risco, já que reduziria ainda mais o tempo disponível para Londres negociar a saída e deixaria os europeus menos disponíveis para negociar a relação futura entre os dois blocos ou um acordo de transição.
Para que servirá este acordo de transição?
Para já, trata-se apenas de uma possibilidade — um cenário que surgiu depois de, em Janeiro, a primeira-ministra ter anunciado que não quer continuar no mercado único europeu (para poder controlar a imigração) e na união aduaneira (o que lhe permitirá negociar os seus próprios acordos comerciais). Prefere um acordo de livre comércio com a UE que inclua o mínimo de entraves às transacções, com condições especiais para alguns sectores-chave da economia britânica, casos dos serviços financeiros ou indústria automóvel.
Os 27 insistem que o Reino Unido não poderá escolher manter apenas o que mais lhe agrada e, mais do que tudo, sublinham que os dois anos previstos no artigo 50 são apenas suficientes para lançar as bases de um acordo comercial. Nesse sentido, tanto as empresas britânicas como a UE sugerem que o melhor desfecho possível para as negociações será a definição de um acordo de transição, até à entrada em vigor das novas relações comerciais, limitando a enorme instabilidade que representaria a saída da UE sem qualquer enquadramento.
Há divergências nesta matéria?
A grande questão é aquilo que Bruxelas pode exigir. Para minimizar a incerteza, o sector financeiro e as empresas britânicas defendem que o país deveria continuar a poder aceder ao mercado único durante este período de transição. No entanto, para tal, Londres teria de manter uma contribuição para o orçamento comunitário, aceitar a livre circulação de pessoas e continuar a reconhecer a autoridade do Tribunal de Justiça da UE — condições que ultrapassam as “linhas vermelhas” definidas por May, que ainda não se comprometeu a negociar este acordo de transição, preferindo falar num “período de implementação” para os entendimentos que acredita que conseguirá negociar antes de 2019.
Podemos falar então de três acordos?
Sim. O que definirá as condições de saída, outro para regular um eventual período de transição (e que poderá concentrar grande parte das negociações durante o ano de 2018) e o ambicionado futuro acordo de comércio que, segundo vários especialistas, pode demorar vários anos a ser concluído.
É possível prolongar as negociações?
É um dos poucos aspectos concretos previstos no artigo 50 do Tratado de Lisboa — “os tratados deixam de se aplicar ao Estado em questão a partir da data de entrada em vigor do acordo de saída ou, não sendo isso possível, dois anos após a notificação, a menos que o Conselho Europeu, em acordo com o Estado membro em causa, decida por unanimidade estender este período”. A palavra decisiva aqui é “unanimidade” — não bastará uma maioria de países para prolongar as negociações, pelo que May sabe que só poderá contar com esta possibilidade se as negociações estiverem a decorrer num espírito construtivo e um entendimento estiver à vista ou, em alternativa, se os restantes 27 sentirem nesse momento que têm muito a perder com uma saída desordenada do Reino Unido. Para já, nenhuma das partes admite esse cenário e todos, em Londres e Bruxelas, querem que, uma vez em marcha, o “Brexit” se concretize o quanto antes.
E se tudo falhar?
É o pior dos cenários em cima da mesa. O Reino Unido abandonaria a UE sem um acordo que regule temporariamente as transacções entre os dois lados do canal da Mancha, que passariam a fazer-se segundo as regras da Organização Mundial de Comércio, o que implicaria a imposição de tarifas muito elevadas para alguns sectores (10% nas importações de automóveis, 20% nas bebidas) e barreiras à exportação de outros serviços. Além disso, uma saída desordenada geraria grande incerteza, fazendo desaparecer todo o quadro legal e regulatório que há 43 anos une a economia britânica às dos restantes países da UE. As empresas britânicas que têm investimentos no continente e as europeias que actuam no Reino Unido seriam as primeiras atingidas, mas todos os sectores interdependentes, da finança às universidades, passando pela aviação, seriam afectados. Michel Barnier descreve este cenário como “apocalíptico”, mas a primeira-ministra britânica “sacode” a pressão, insistindo que “nenhum acordo é melhor do que um mau acordo”.
O Reino Unido pode inverter caminho?
O artigo 50 é omisso sobre a irreversibilidade da decisão de saída. Mas vários especialistas, incluindo John Kerr, sustentam que se o diploma não proíbe explicitamente o recuo é porque ele é legalmente possível — a palavra final caberia, neste caso, ao Tribunal de Justiça da UE. A grande questão é, no entanto, política: poderia o Governo britânico recuar em relação a uma decisão tomada pelos eleitores (possivelmente realizando novo referendo) ou aceitaria a UE “passar uma esponja” sobre um processo que se adivinha fracturante? Tudo dependerá do rumo das negociações, da evolução da economia e, crucialmente, do cálculo político que cada uma das partes fará. No momento actual, contudo, essa é uma hipótese que Londres não equaciona: com um mandato popular para concretizar o “Brexit”, uma maioria no Parlamento e sob pressão dos eurocépticos, May não admite qualquer recuo. E a UE avisa que, posto o processo em marcha, o Reino Unido só poderá regressar mediante um novo processo de adesão.