Os dois Martin que viveram em McGuinness
Filho de Derry, foi comandante do IRA nos anos de chumbo do conflito - um passado que só admitiu parcialmente. Mas com Gerry Adams encaminhou a comunidade republicana para a paz. Carismático e persistente desaparece quando a incerteza volta a pairar sobre a Irlanda do Norte.
Pobreza, discriminação, violência, terrorismo, negociação e por fim autoridade. São muitos os capítulos da vida de Martin McGuinness, o comandante do Exército Republicano Irlandês (IRA) que se transformou no principal negociador e estratega dos Acordos de Sexta-feira Santa (1998) e depois no estadista que, por entre todos os sobressaltos, se tornou um dos pilares da partilha de poder na Irlanda do Norte, que há uma década garante a paz, unindo os inimigos do passado. Uma transição extraordinária que para a maioria é um notável testemunho do lugar que soube ocupar na História, mas que outros insistem não ser suficiente para apagar as mortes do passado.
McGuinness morreu nesta terça-feira, dois meses depois de se ter demitido, em ruptura com o Partido Democrático Unionista (DUP), forçando a queda do executivo e eleições em que o Sinn Féin, já sem ele, ficou a um deputado de vencer. Não há certezas que as duas partes consigam entender-se para formar um governo — a única certeza, sublinhou o Guardian é que pela primeira vez desde 1972 McGuinness não estará lá, com o seu carisma e a sua determinação férrea, para evitar o colapso das instituições autónomas.
“O mundo da política e as pessoas em toda a ilha vão sentir a falta da sua liderança”, garantiu o Presidente da República da Irlanda, cargo a que McGuinness chegou a candidatar-se em 2011 num dos episódios da nem sempre fácil relação entre Dublin e os republicanos a norte da fronteira. “McGuinness é como Janus, o deus da guerra e da paz”, disse ao Politico Kathryn Johnston, autora da biografia não autorizada do dirigente republicano. “Ele presidiu ao início e ao fim do conflito. É preciso admirá-lo por aquilo que fez pelo processo de paz, mas por outro lado há o seu passado no IRA e o facto de nunca ter prestado contas às vítimas.” São quase duas vidas numa vida, duas personagens num percurso que só a História julgará.
O guerrilheiro
McGuinness não teria sido o que foi no IRA se não tivesse nascido em Bogside, bairro republicano junto às muralhas de Derry que era em 1950, o ano do seu nascimento, um reduto de pobreza, sobrelotado, onde a discriminação — no acesso aos empregos, à habitação — ajudava a alimentar o viveiro nacionalista. A mãe, oriunda de Donegal, na República da Irlanda, mudara-se para ali para trabalhar nas fábricas de vestuário que há gerações empregavam as mulheres da região, o pai trabalhava numa fundição. Católicos fervorosos, viviam com os sete filhos, numa casa de dois quartos “e a cozinha mais pequena que alguém pode imaginar”, contou em 2009 ao Guardian.
A família não tinha tradição nacionalista, mas com apenas 15 anos McGuinness recebeu a sua primeira lição sobre o que significava ser católico, republicano e pobre. Acabara de deixar a meio a escola técnica e candidatou-se a aprendiz de mecânico. A entrevista de emprego “consistiu em três frases: ‘Qual é o teu nome?’ ‘Em que escola andaste?’, ‘Põe-te fora daqui’”, recordou na mesma conversa. Acabaria por tornar-se aprendiz num talho, o que anos mais tarde levaria os tablóides britânicos, a apelidá-lo de “Carniceiro de Bogside”.
Mas a tempestade dos Troubles, o eufemismo britânico para o conflito que matou 3500 pessoas, aproximava-se, com o emergente movimento pelos direitos cívicos a esbarrar na dura repressão policial, inflamando ainda mais a contestação. Tinha 18 anos quando vários participantes numa marcha pacífica em Derry foram espancados pelas forças policiais—– o episódio que garante tê-lo convencido a aderir ao IRA Provisório.
Depressa a sua “visão estratégica” e capacidade de liderança saltaram à vista dentro do grupo armado. Reflexo disso, foi, mais outro jovem oriundo de Belfast, Gerry Adams, escolhido para integrar a delegação que em Julho de 1972 foi a Londres para conversações secretas — a missão não produziu resultados, “mas a viagem cimentou a amizade de uma vida e uma parceria política suficientemente forte para fazer avançar um processo de paz contra a oposição por vezes violenta da comunidade republicana”.
Por essa altura, McGuinness era já o segundo da hierarquia militar em Derry, uma posição que admitiu ter ocupado décadas mais tarde, na investigação aos acontecimentos do Bloody Sunday (Domingo Sangrento), em Janeiro de 1972, quando militares britânicos abriram fogo sobre uma manifestação em Derry, matando 14 pessoas. No mesmo inquérito, o então vice-primeiro-ministro da Irlanda do Norte assegurou que abandonou o IRA em 1974, trocando a metralhadora pelo Sinn Féin, o partido que os unionistas viam como o braço político do IRA, onde Adams ia ganhando influência.
A sua versão é desmentida por antigos paramilitares que garantem que se manteve como uma das figuras principais do grupo armado até meados dos anos 1980, durante os piores anos da violência na Irlanda do Norte. Acusam-no de ter autorizado o atentado que em 1979 matou Lord Montabatten, primo da rainha Isabel II, ou a explosão, cinco anos mais tarde, em Brighton, no hotel onde estava a primeira-ministra, Margaret Thatcher. Foi preso por duas vezes na Irlanda — incluindo por transportar explosivos e mais de 5000 munições no carro, em 1972 — mas nunca foi condenado a norte da fronteira.
Muitos dos familiares das vítimas do IRA não lhe perdoam, sobretudo pelo silêncio. “McGuinness presidiu a uma organização terrorista durante muitos anos. É lamentável que não tenha assumido as responsabilidades que devia”, reagiu Mary Travers, que viu a irmã ser assassinada quando saía da missa com o pai, um juiz católico que o IRA acusava de ser colaboracionista. “Sei que houve muito sofrimento em todos os sectores da nossa comunidade. Não há muito que possa fazer. Só pode tentar fazer com que o futuro seja melhor”, respondeu McGuinness no Guardian.
O homem da paz
A segunda vida de McGuinness começa em 1993. Sabe-se então que “o terrorista número 1” do Reino Unido, como foi tratado num documentário televisivo, está a negociar em segredo com Downing Street — um ano depois, o IRA anunciaria um cessar-fogo, que acabou por não se revelar duradouro. A paz, na qual ainda poucos acreditavam, só chegou em 1998, após um novo cessar-fogo e dois anos de intensas negociações em que McGuinness consolidou a sua reputação de líder e estratega. “Quando decidiu lutar pela paz, Martin foi calmo, corajoso e directo. Quando ele dava a sua palavra, ela valia ouro”, disse o ex-Presidente norte-americano, Bill Clinton, que apadrinhou as negociações. O então primeiro-ministro britânico Tony Blair vai mais longe: “Sabemos que nunca teríamos conseguido o acordo de paz sem a liderança, a coragem e a insistência calma de Martin e sabemos que o passado não pode definir o futuro”.
Uma caminhada que começou uma década antes, com Adams e McGuinness, então já aos comandos do Sinn Féin, a iniciarem aquela que ficaria conhecida como a “estratégia da Armalite [espingarda usada pelo IRA] e do voto”. Sem que o IRA renunciasse à violência, o Sinn Féin abandonou aos poucos o boicote às instituições políticas, ganhando nas urnas o apoio popular que começava a faltar à luta armada. Um trilho que encontrou resistência nas fileiras republicanas, mas que se foi tornando consensual, muito graças à reputação e capacidade de liderança do antigo comandante militar. “Ele tinha o respeito e a confiança dos voluntários, sem ele a ideia de um cessar-fogo não teria sido apoiada”, contou ao Irish Times um antigo paramilitar.
A transformação seria mais dramática depois de 2007, quando após anos de crise, o DUP e o Sinn Féin aceitaram partilhar o poder. Dez anos depois, o mundo ainda se espanta com as gargalhadas que McGuinness e Ian Pasley, o reverendo unionista que era a Némesis dos republicanos, trocaram em público, a relação afável no ano em que partilharam a governação. Em 2012 franqueou uma nova porta, com o aperto à rainha Isabel II, a chefe do Estado que os republicanos consideram invasor.
Mas nenhum outro gesto marcará tanto o corte radical de McGuinness com o passado como aquele dia, na Primavera de 2009, em que surgiu nas escadas do Parlamento a condenar a execução de um polícia católico por dissidentes do IRA. Perante o olhar incrédulo do então primeiro-ministro irlandês, Peter Robinson, McGuinness chamou “traidores” aos assassinos. O que distingue este homicídio dos que ele autorizou, perguntou-lhe o Guardian. A diferença, “é que naqueles dias havia um enorme apoio ao IRA”. “Agora as pessoas querem que estas actividades parem e que estes grupos reconheçam que não é possível recriar o passado.”