Os investigadores científicos não existem
O ministro Manuel Heitor merece, pelo seu historial, a confiança da larga maioria dos seus colegas, nas universidades.Mas, conforme todos sabemos, a confiança tem de ser mantida, merecida e reatualizada.
A vida reserva-nos, por vezes, surpresas destas. Ao ler o relatório governamental acerca das situações de precariedade na administração pública (Levantamento dos Instrumentos de Contratação de Natureza Temporária na Administração Pública, de 31 de Janeiro de 2017), descobri que não existo.
Pelo menos, lendo tudo o que é dito acerca de contratos a termo na ciência e ensino superior, nunca encontro qualquer referência aos chamados “Investigadores Laboratório Associado” (iLAB), nem aos mais recentes Investigadores FCT (iFCT). Acontece que estes são, na área científica, os casos mais evidentes de contratos precários que estão desajustados das funções exercidas.
Os iLAB são contratados, através de concurso internacional, ao abrigo do financiamento estratégico que é atribuído aos centros de investigação mais cotados. Esse financiamento está associado a um plano de trabalho plurianual que a instituição se compromete a realizar, sendo a contratação destes investigadores incluída no financiamento, precisamente, por ser considerada imprescindível à concretização desse plano.
Não obstante, depois de até 2009 terem estado contratados a prazo e se ter então verificado que isso era ilegal, estes cientistas assinam um contrato a termo incerto, que poderá ser rescindido a qualquer momento. Tal não tem acontecido, exatamente, porque desempenham funções que constituem necessidades permanentes e porque contribuem, com o seu trabalho, para que as suas instituições continuem a obter excelentes avaliações e o financiamento a isso associado. Os primeiros de entre eles já o fazem há 13 anos.
Os iFCT têm contratos a prazo de cinco anos, indo os dos primeiros 200 contratados acabar em breve. Quando se candidataram aos seletivos concursos internacionais nos quais foram selecionados, tiveram que apresentar um projeto de investigação. No entanto, um item importante da sua avaliação era a adequação dos seus projetos aos planos estratégicos dos centros de investigação onde queriam trabalhar. Ou, por outras palavras, o seu programa de trabalho não é meramente pessoal, mas também ele uma contribuição necessária ao trabalho corrente da instituição onde investigam. Instituição essa que, por sua vez, tinha que declarar a sua intenção de vir a contratar em definitivo esse cientista, caso tivesse possibilidade.
Em ambos os casos estamos, assim, perante contratos a termo que cumprem as três condições apontadas pelo Governo para a sua integração no processo de regularização da precariedade na administração pública: têm subordinação hierárquica e horário completo, o que aliás é explicitado nos seus contratos, para além de desempenharem funções que correspondem a necessidades permanentes.
Ora, como essas pessoas existem às largas centenas e não estão no relatório, ou alguém por lapso se esqueceu delas, ou alguém tentou deliberadamente ocultar a sua existência.
De facto, o texto governativo parece sugerir que os casos de contratos a termo na ciência e no ensino superior se restringem aos professores convidados, mas os números apresentados não correspondem àqueles que já eram oficialmente conhecidos. Parece também sugerir (num parágrafo ambíguo e que tanto pode incluí-los como não, consoante a interpretação) que os restantes são pessoas contratadas como mão-de-obra para os habituais projetos de investigação de três anos. Mas nunca são mencionados, nem nunca é explicitada a sua situação, bem diferente dessa.
Este silêncio ensurdecedor não terá sequer a ver com questões de deficit, ou de volume do Orçamento do Estado. De facto, a regularização dos contratos destes trabalhadores científicos e a sua integração definitiva na administração pública não apresenta custos suplementares, já que recebem o mesmo que os seus colegas do quadro. A única diferença será, talvez, a via através da qual chega o dinheiro para o seu salário e a rúbrica orçamental onde é lançado.
Posto isto, em termos pragmáticos, acaba por ser pouco importante se a omissão destas largas centenas de investigadores científicos se deveu a um grande lapso ou a uma tentativa deliberada de ocultação.
Importa, sim, que essa invisibilidade cesse quando começar, em cada ministério e com representação sindical, o processo de regularização da precariedade na administração pública. Porque esse é um direito destes cientistas e porque a precariedade científica é má para eles, é má para as suas instituições e é má para a ciência que se produz.
O ministro Manuel Heitor merece, pelo seu historial, a confiança da larga maioria dos seus colegas, nas universidades. Esse é, sem dúvida, um importante capital político e governativo. Mas, conforme todos sabemos, a confiança tem de ser mantida, merecida e reatualizada. Que esta seja uma ocasião para tal.
Também o ministro Vieira da Silva, a quem cabe coordenar este processo de regularização da precariedade na administração pública, tem uma sólida reputação de seriedade. É bom que esteja atento a este e outros casos, para que este processo não se transforme numa mera caricatura dos louváveis objetivos para os quais foi lançado.
Antropólogo e investigador “Laboratório Associado” do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa