“Dá mais trabalho ensinar um miúdo a comer do que dar-lhe um tablet

Com as birras das crianças, as refeições à mesa nem sempre são um momento de paz. No entanto, Filipa Sommerfeldt Fernandes garante que há truques simples para conseguir que as crianças apreciem a comida "sem fazer um circo".

Foto
Birras à mesa? Filipa Sommerfeldt Fernandes tem algumas ideias sobre como acabar com elas Enric Vives Rubio

Chega a hora da refeição e começam os problemas e o choro. Colheres que entram à força na boca das crianças ou apenas com a ajuda de um repertório infinito de músicas, coreografias ou vídeos num tablet. O cenário parece-lhe familiar? “Comer deve ser um momento natural. Não é preciso fazer disso uma festa nem um cavalo de batalha”, diz Filipa Sommerfeldt Fernandes que é especialista em ritmos de sono. Nos últimos tempos, dedicou-se, contudo, a outro tema: como acabar com as guerras à mesa e incentivar as crianças a terem uma alimentação mais saudável e variada.

Nas várias consultas com os pais, a criadora da página “Sleepy Time — Especialista do Sono” foi-se apercebendo de que as birras à mesa — mais tarde ou mais cedo — são também um problema comum e começou a estudar o assunto para conseguir dar respostas com mais fundamento, sem ser apenas baseada na experiência com os dois filhos, de quatro anos e de um ano.

As suas ideias acabam de ser publicadas no livro Comer sem Birras (editora Manuscrito). Filipa Sommerfeldt Fernandes, de 35 anos, salvaguarda que não é médica nem nutricionista e, por isso, o manual não pretende dar sugestões de menus, mas sim explicar como tornar os momentos à mesa “num momento sem ansiedade”.

Há estratégias para várias idades, “desde a introdução da alimentação complementar, aos seis meses, até aos oito anos”.

“Normalmente as grandes questões de ficarem esquisitos dão-se a partir do ano e meio a dois anos, em que rejeitam mais as novidades”, explica ao PÚBLICO a autora, lembrando que, “no primeiro ano de vida, os bebés quase quadruplicam de peso e depois a necessidade calórica também abranda”.

O primeiro conselho passa por “descomplicar”. Filipa Sommerfeldt Fernandes, cuja formação de base é em comunicação, tendo após o nascimento do primeiro filho feito formações na área do sono e alimentação, considera que, por vezes, o problema está do lado da expectativa dos pais, que acreditam que “as crianças precisam de comer quantidades enormes e de deixar o prato vazio”.

Quanto tempo à mesa?

“É preciso avaliar o dia todo. Há miúdos que petiscam o dia inteiro bolachas, fruta, queijo e na hora da refeição não comem. Mas olhando para as 24 horas até comeram uma boa quantidade”, prossegue. Para quem está a começar a introdução da alimentação, recomenda que evitem a tentação de “fazer grandes circos” e que estabeleçam rotinas, apresentando desde cedo vários alimentos que toda a família come. Da mesma forma, alerta que também o tempo que se exige que uma criança fique sentada à mesa deve ser ajustado à idade. “Há pais que acham que as crianças devem aguentar mais de uma hora sentadas.”

O ideal, defende a autora, é que o momento da refeição seja vivido em família e de forma natural: não é preciso festejar porque a criança comeu tudo, mas também não vale a pena forçar nos dias em que não quer. “Mas se não quer comer então devemos esperar pela próxima refeição, para os miúdos perceberem que se não comerem naquele momento também não vão comer bolachinhas entretanto.”

Lembra, contudo, que os casos sistemáticos de rejeição a novas texturas devem ser conversados com os médicos de família, pediatras ou terapeutas da fala, para excluir alguns casos de doenças que podem reflectir-se numa “hipersensibilidade oral” da criança.

Quanto aos principais erros dos pais, considera que dão até demasiado tarde purés de legumes e de frutas às crianças, que acabam por não ter contacto com outras formas e texturas dos alimentos. “É normal que em algumas fases os miúdos sejam esquisitos em experimentar coisas novas, mas isso não significa que os pais devem deixar de apresentar novos alimentos. Quanto mais familiar um alimento for, mais facilmente será aceite pela criança.”

Depois, considera que há problemas transversais à sociedade e que acabam por ter repercussões em casa. “Somos pais com menos tempo e temos demasiadas solicitações externas. Acabamos por ter menos paciência e queremos apressar as crianças, porque queremos que comam bem e durmam cedo. Apressamos demasiado os nossos filhos e não lhes damos tempo. Dá muito mais trabalho ensinar um miúdo a comer do que dar-lhe um tablet para a mão para garantir que ele abre a boca”.

Explorar com as mãos

Entre algumas das sugestões, Filipa recomenda que desde cedo as crianças possam explorar alimentos com as próprias mãos. “Devemos colocá-los num prato e ter talheres por perto, porque eles aprendem por mímica. A hora da refeição é o único momento em que as crianças sentem que podem controlar e fechar a boca. Se os deixarmos também participar na escolha do que comem isso torna o momento mais natural."

É também importante que os alimentos sejam oferecidos como se fossem iguais, sem haver a tentação dos pais dizerem que uma bolacha é melhor ou mais saborosa do que brócolos “ou que se comerem tudo têm direito a sobremesa”.

Para quem já vai tarde e está em fase de plenas birras, o passo número um sugerido passa por aquilo a que Filipa chama de “limpar o ar”. Ou seja, num período de aproximadamente uma semana não pressionar para comer e oferecer apenas o que as crianças gostam. Progressivamente, a ideia é oferecer o que elas gostam mas com formas de preparação diferentes e, então, começar a juntar aos poucos ingredientes novos ou menos amados.

O ideal, defende a especialista, é não dar demasiada atenção à reacção da criança nem estar sempre a perguntar se gostou ou não de algo. “O paladar educa-se. Antes, os miúdos comiam o que os crescidos comiam, que era o que havia em casa e tornava as coisas mais fáceis e naturais”, insiste, apesar de lembrar que é importante nas refeições em família ter cuidado com o sal e açúcar para os mais novos.

As oito principais dicas:

— Comece por “limpar o ar” e retirar pressão do momento da refeição. Isto significa que não se deve enervar ou mostrar que se enerva com a forma como corre a refeição;

— Dê um período de tréguas, em que oferece apenas o que a criança mais gosta de comer, variando na apresentação e texturas;

— Continue a oferecer o que a criança gosta, mas misturando pouco a pouco alimentos novos e aqueles que sabe que antes rejeitava. Uma vez mais, não pressione e evite disfarçar os alimentos.

— Dê o exemplo. Se comer pizzas, doces e refrigerantes ao pé dos seus filhos dificilmente eles vão querer peixe cozido com legumes;

— Inclua as crianças na escolha e confecção das refeições;

— Estabeleça rotinas e horários, assegurando-se de que a criança não está demasiado cansada quando come;

—  Não force a comer tudo o que está no prato nem pergunte a toda a hora se gostou;

—  Não use a comida como moeda de troca.

O que diz a Sociedade Portuguesa de Pediatria?

A pediatra Henedina Antunes, da Comissão de Nutrição e da Sociedade Portuguesa de Pediatria e da Sociedade Portuguesa de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição Pediátrica, não conhece o livro de Filipa Fernandes. Mas não tem dúvidas: as crianças devem explorar os alimentos com as mãos desde cedo. “Os pais têm a oportunidade de tocar nos alimentos quando os preparam. Já as crianças, quando comem, é natural que queiram ter contacto com a textura e não só com o sabor”, explica ao PÚBLICO esta especialista.

A também responsável do Serviço de Pediatria do Hospital de Braga alerta, contudo, que “devem sempre ser oferecidas todas as gamas de alimentos”.

“Uma criança precisa de ter pelo menos 12 vezes contacto com um sabor para se habituar", diz, "e o maior risco de obesidade surge nas crianças a quem só é apresentado o que gostam”.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários