Raul Brandão: a outra modernidade que a geração de Orpheu ensombrou
Apreciado no seu tempo, pouco lido nas gerações seguintes, agora a ser recuperado, o autor de Húmus prenunciou o expressionismo e, à sua estranha maneira, foi tão experimental como Álvaro de Campos.
Nascido há 150 anos na Foz do Douro, numa família de pescadores, Raul Brandão frequentou o Curso de Letras, mas acabou por enveredar por uma tranquila carreira na burocracia militar, da qual se reformou com o posto de capitão, e que nunca teve dificuldade em compatibilizar com uma presença assídua nos jornais e revistas da época. Escreveu ficção, teatro, livros de viagens, memórias, dialogou com os movimentos literários do seu tempo, conviveu na juventude, em Leça, com o grupo de António Nobre, foi depois íntimo de Teixeira de Pascoaes ou Aquilino Ribeiro, e ainda privou com admiradores bastante mais jovens, como Vitorino Nemésio ou José Rodrigues Miguéis. Casou-se aos trinta anos e adquiriu, logo depois, a sua muito amada Casa do Alto, uma quinta em Nespereira, Guimarães, onde se radicaria definitivamente a partir de 1912, ainda que continuando a passar temporadas regulares em Lisboa. Fez uma viagem a Itália com a mulher, em 1906, com regresso por Paris e Londres, e já para o final da vida, em 1924, passou dois ou três meses nos Açores e na Madeira, visita de que resultaria o livro de viagens As Ilhas Desconhecidas (1926). Morreu relativamente novo, aos 63 anos, de um aneurisma da aorta.
Foi desta pacata vida burguesa – um percurso profissional sem sobressaltos, uma reputação literária sólida, um casamento que parece ter sido bastante feliz – que emergiu um dos livros mais radicais e mais ferozes de toda a literatura portuguesa: Húmus, uma obra inclassificável, difícil de comparar com qualquer outra, uma experiência limite, um combate metafísico com o absurdo da existência, uma descida textual a esse abismo informe que a humanidade procura a todo o custo preencher com hábitos, rotinas, ninharias. “Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapá-la, escondê-la, esquecê-la”, escreve Raul Brandão em Húmus, que abre com uma frase depois retomada de várias formas ao longo do livro: “Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste...”.
Da geração que precedeu a de Orpheu – era 21 anos mais velho do que Fernando Pessoa –, Brandão fez parte desse grupo de autores finisseculares de forte influência simbolista a que pertenceram António Nobre ou Camilo Pessanha, nascidos, como ele, em 1867. E não seria muito difícil arrumá-lo como um autor do período se não se tivesse dado o caso de ter escrito Húmus, que ele próprio considerava a sua obra mais importante, e que reescreveu por duas vezes. Mas Húmus veio desarrumar tudo, sabotar todas as possibilidades de catalogação. “É uma experiência única, uma coisa totalmente experimental, tão experimental como o que estavam a fazer Álvaro de Campos ou Almada Negreiros”, diz o ensaísta Pedro Eiras, cuja tese de doutoramento relaciona Brandão com Pessoa, Herberto Helder e Maria Gabriela Llansol.
“Brandão vira as costas ao Orpheu, Pessoa finge que não o lê, e vice-versa, não há ali comunicação possível”, resume Eiras, observando que, no entanto, Húmus é publicado no mesmo ano em que Almada lança a revista Portugal Futurista”. Um acaso que lhe parece mais significativo do que o muitas vezes lembrado ano comum de nascimento que Brandão partilha com Nobre e Pessanha.
Se a história literária não fosse, como a outra, escrita pelos vencedores, talvez o autor de Húmus pudesse hoje ser visto como o pioneiro de uma outra via do modernismo português. Um caminho que o afastou de Orpheu e das vanguardas a cuja eclosão ainda pôde assistir, mas que o aproximou de um expressionismo, com a sua tónica na visão interior do artista, que estava a surgir na Alemanha e nos países nórdicos, e que provavelmente o autor português mal terá conhecido. Mas “se se ler uma página do Húmus ao lado de uma tela de Munch [o pintor expressionista norueguês de O Grito], é absolutamente nítido que uma permite comentar a outra”, argumenta Eiras.
O ensaísta Luís Mourão, autor de Um Romance de Impoder. A Paragem da História na Ficção Portuguesa Contemporânea – e especialista na obra daquele que é talvez o romancista com uma mais assumida dívida a Raul Brandão, Vergílio Ferreira –, vai ainda mais longe do que Eiras no modo como distingue Húmus de toda a restante produção do autor. “Acho que há dois Raul Brandão: um é o autor de Húmus, que é uma obra ímpar, o outro escreveu as memórias, os livros de viagens, tudo o resto”.
Poderá então considerar-se que, não obstante a sua extensa obra, Brandão partilha paradoxalmente com Nobre e Pessanha a circunstância de ser autor de um livro único? A diferença, diz Mourão, é que o Só e a Clepsidra são, respectivamente, Nobre e Pessanha, ao passo que “Húmus é maior do que Raul Brandão”. É “aquele tipo de obra que constitui um ponto-limite de alguém, um combate com todos os fantasmas, uma coisa que só se faz uma vez na vida e que pode destruir uma pessoa”. E “nada do que vem depois pode ir mais longe, só resta recuar, e Brandão até recua bem”.
Tanto Mourão como Eiras assinalam a influência do autor de Os Possessos, mas ambos acham redutor ver em Brandão uma espécie de Dostoievski português. E o primeiro também se revê pouco nos que querem fazer do escritor português um antecessor do nouveau roman. “É uma coisa que se diz para mostrar que Húmus sobrevive muito bem na contemporaneidade, mas que acho que passa ao lado do essencial”.
Outra perplexidade nunca resolvida é a de saber se Húmus é um romance. O grande biógrafo de Brandão, Guilherme de Castilho, sugere que a evolução do romance moderno, com Joyce ou Proust, veio permitir, a posteriori, que Húmus pudesse ser visto com naturalidade como um romance, um reconhecimento a que os seus primeiros leitores não tinham acesso. Mesmo assim, Eiras resiste a chamar-lhe romance, e sugere que o que Brandão faz em prosa só estava então a ser feito na poesia, “que começava a prescindir de contar uma história”. E se há algumas breves peripécias em Húmus, “elas só lá estão para serem avariadas”, defende ainda o ensaísta. “Ao fim de duas ou três páginas, suspendem-se no momento em que o leitor esperaria um desenlace”.
Brandão aprendeu bastante com Eça de Queirós, mas ao contrário dos Maias, onde no final se trata de saber se Carlos “dorme com a irmã ou não dorme, e sabemos que se dormir é a catástrofe”, em Húmus “não há nada que decida coisíssima nenhuma”, observa Eiras: “Os mortos ressuscitam? Não importa. O inferno é cancelado? Tanto faz. E quem são os vivos e quem são os mortos? E quem é o sujeito? E o tu a quem o narrador se dirige continuamente? Não fazemos a menor ideia”. O que mais interessa o ensaísta é justamente esta “avaria do discurso”, “uma coisa totalmente nova, que ninguém tinha feito desta forma”.
“Não creio que Raul Brandão fosse um romancista, como o Aquilino, e acho que até podíamos olhar para o Húmus como um longo poema em prosa”, diz Mourão. Eiras concorda: “Até em termos rítmicos, há ali um trabalho formal que o aproxima da poesia”. E se Mourão evoca o Húmus de Herberto Helder, o livro de 1967 em que este parte dos materiais de Brandão para construir o seu próprio poema, como “prova definitiva de que há dois Raul Brandão”, já que “seria impossível fazer o mesmo com qualquer outra obra do autor”, Eiras acrescenta que Herberto demonstrou também na prática que Húmus era poesia.
Teríamos assim um último paradoxo: um autor que mais ou menos escreveu tudo menos poesia – ou que apenas compôs alguns negligenciáveis poemas versificados –, talvez tenha sido afinal, mais do que qualquer outra coisa, um grande poeta.