A moda vai nua
Algures no coração do sistema, um agente provocador dispôs-se acabar de vez com o desfile, antes que a gloriosa história da moda se espalhe definitivamente ao comprido numa passerelle. Chama-se Olivier Saillard e estreia esta sexta-feira no Porto Couture Essentielle.
Blusão de cabedal com estofo para aguentar mais dez ou 20 Invernos, calças de ganga com bruta dobra lá em baixo, junto às botas preparadas para a chuva desgovernada dos últimos dias, Olivier Saillard tem as mãos na cauda de um vestido preto quando o encontramos numa galeria do Museu Bourdelle a poucos dias de ali inaugurar Balenciaga: L’Oeuvre au Noir. É só mais um corpo esculpido na floresta de corpos esculpidos — uns pela escultura, outros pela alta costura — que será a sua segunda exposição neste discreto museu de Paris, a uma galáxia de distância do tumulto à porta do Louvre ou debaixo da Torre Eiffel, onde a esta mesma hora da manhã se formam filas cada dia mais gigantescas e mais policiadas: “Quando tiramos a moda do museu de moda, a condensação diminui e tudo se vê melhor: as pessoas falam mais da obra e menos da moda. Este ambiente sinaliza imediatamente que uma peça de vestuário está muito próxima da escultura (mais do que da pintura, ou do que da fotografia): é preciso andar à volta dela, as costas de uma peça de vestuário são bonitas, são interessantes, têm técnica.”
Não é por causa desta exposição, nem sequer por causa do singular trabalho (“erudito e iconoclasta”, resume a L’Express) como historiador e curador que o levou em 2010 à direcção do Palais Galliera — Museu de Moda da Cidade de Paris, que andamos à volta do seu corpo alto e estreito esculpido por um blusão de cabedal e por umas calças Levi’s (falaremos deles daqui a minutos, a propósito, quando nos sentarmos para um café). Olivier Saillard tem uma vida dupla no território não exactamente inimigo mas ainda assim estrangeiro das artes performativas, e a convite de Tiago Guedes, o director do Teatro Municipal do Porto, fará a estreia mundial da sua nova performance de moda, género que praticamente inventou, no Salão Árabe do Palácio da Bolsa.
Couture Essentielle (sexta e sábado no Porto, de 21 a 23 no Centre National de la Danse, em Paris) retoma a sua colaboração com quatro corpos que fazem parte do património iconográfico da segunda metade do século XX, as ex-modelos Christine Bergstrom, Axelle Doué, Claudia Huidobro e Anne Rohart, mas sobretudo retoma a sua metódica campanha de denúncia do desfile enquanto dispositivo absolutamente esgotado onde já não se exibe nada a não ser a morte cerebral de uma indústria submetida à “histeria” das redes sociais”. Sim, temos aqui o D. Quixote: um director de museu que no mundo ideal abriria as portas apenas a um visitante por dia e para o inferno com os números de público (outra histeria); um encenador que se habituou a arriscar a pele a cada nova performance (“São a minha segunda casa: perco dinheiro com elas, mas dão-me imenso prazer, reinventaram a minha vida”); um activista no olho do furacão da mais capitalista das indústrias capitalistas. “Mas um activista não muito ouvido, parece-me. O grande público acompanha as minhas performances, o público especializado acompanha as minhas performances. E a seguir tudo continua igual.”
É uma batalha perdida a que se dedica há vários anos — entretanto, passou das pequenas soirées privadas, totalmente off, com que durante a primeira década dos anos 2000 se tornou uma espécie de comentador residente, mas nada alinhado, da Semana da Moda de Paris, a um dos mais cobiçados patamares do circuito europeu das artes performativas, o Festival de Outono, que definitivamente fez dele um autor.
Não são menos subversivas do que os seus primeiros serões activistas, as três performances com Tilda Swinton que o Festival de Outono lhe encomendou e que acabaram compiladas num volume luxuoso, Impossible Wardrobes (Rizzoli, 2015): na primeira, The Impossible Wardrobe (2012), Olivier Saillard depositou-lhe nos braços, “como belas adormecidas”, algumas das mais valiosas peças saídas das reservas do Palais Galliera, incluindo um uniforme de gala de Napoleão Bonaparte e uma estola de arminho de Sarah Bernhardt; na segunda, Eternity Dress (2013), produzia à frente dos espectadores um vestido à medida da figura esfíngica da actriz, resgatando do esquecimento saberes artesanais ameaçados de extinção num mundo de fast fashion; na última, Vestiaire Obligatoire (2014), pô-la a explorar livremente, até à última prega, até ao último bolso, as roupas e os acessórios deixados pelos espectadores no bengaleiro. É uma das suas fixações, dirá ao Ípsilon: “As pessoas cultivam uma verdadeira relação com as suas peças de roupa, uma relação bem mais íntima do que a moda quer dizer. Disso ninguém se ocupa: é um território infinito e não há um costureiro a cuidar dele. Justamente, o retorno que tenho destas performances é que as pessoas se sentem ao mesmo tempo indignadas com o estado do mundo, de que a moda é um dos arquétipos mais extremos, e confortadas com o grau de intimidade que ela lhes significa.”
O grau zero da moda
Vem a propósito do blusão de cabedal, a conversa favorita de Olivier Saillard: “Nem sei há quantos anos o tenho, mas não me imagino a deixar de o usar. Mesmo as pessoas que compram muita roupa têm dificuldade em desprender-se de certas peças. Só que a indústria não quer admitir que as pessoas normais não compram roupa todos os dias, que há peças que guardamos para sempre. Há a máquina comercial por trás e parece que se exultarmos a ideia de as pessoas se ligarem ao que têm deixa de ser possível vender — mentira, mas enfim, este síndroma da novidade precipitou um enorme desamor na indústria…”.
As pessoas normais que não se desprendem dos seus blusões de cabedal (e que nunca comprarão umas calças de ganga Prada “a 3600 euros” enquanto for possível encontrar “na H&M umas a 20 que servem perfeitamente”) é outro assunto que ele domina. Filho mais novo (o sexto) de pais taxistas, cresceu no fim do mundo, em Pontarlier, uma pequena cidade da Borgonha, colada à fronteira suíça e infamemente conhecida como “a pequena Sibéria”. Não teve um quarto só dele mas teve um sótão, onde passou anos e anos entrincheirado nas roupas velhas dos oito elementos da prole que a mãe ali empilhava para irem morrer longe (“como numa instalação de Boltanski”). Daí até Paris foi um salto quântico, embora haja uma apreciável coincidência entre o miúdo que aos 12 anos produziu sozinho a sua revista de moda, Le Grand Couturier, o rapaz de 18 que quis cumprir o seu serviço cívico como objector de consciência no Museu da Moda e do Têxtil de Paris, um anexo do grande Museu das Artes Decorativas, e o adulto que viria a ser director do Museu da Moda de Marselha (1995-2000), conservador responsável pela programação de moda das mesmas Artes Decorativas por onde tinha passado como voluntário, e director do Palais Galliera.
Hoje, 40 anos depois dessas experiências no sótão, diz que se divide “mal” entre a sua dupla vocação de historiador-curador-director de museu e artista-encenador, embora as operações de organizar uma exposição e imaginar uma performance não sejam “assim tão diferentes”. Tanto em Models Never Talk (2014), a sua primeira produção com as quatro modelos que estarão no Porto (a que então se juntavam Charlotte Flossaut, Amalia Vairelli e Violeta Sanchez) como em Couture Essentielle, trata-se de activar a história da moda através de associações mais ou menos inusitadas, como nas várias exposições que foi produzindo. “A diferença é que o suporte são mulheres vivas em vez de manequins, paredes ou pedestais, o que é muito mais encorajador”, diz. Essas mulheres vivas são quatro encarnações da história da moda, do seu património de carne e osso; podiam, deviam, estar num museu, ri-se, “se não falassem demasiado”: “A Claudia foi a musa de Jean-Paul Gaultier; a Axelle foi a musa de Claude Montana e de Thierry Mugler, mas trabalhou com todos os grandes, desde a Madame Grès; a Anne Rohart trabalhou imenso com a Sonia Rykiel e fez fotografias míticas para a Dominique Issermann; a Christine foi o braço direito do Jean-Paul Gaultier no estúdio, uma prática que se perdeu e que nenhuma modelo tem actualmente”.
É com elas que Olivier Saillard pretende aventurar-se no lugar do crime, o dispositivo em que vê concentradas todas as insuficiências e todas as impotências da indústria da moda: “Em todas as performances anteriores tentámos contornar o espaço do desfile para fazer outras coisas, para ir aos interditos. Agora vamos fazer um verdadeiro desfile de moda, ou a fantasia de um desfile de moda, porque as peças que vamos mostrar não se aguentam sobre o corpo se não as segurarmos com as mãos. Trabalharemos sobre os caracteres mais efémeros de uma peça de roupa, mas seguindo o protocolo de encenação de um desfile.”
Seguindo-o para o sabotar, claro, antes que a moda se estampe definitivamente ao comprido num dos 500 desfiles (perfazendo um impressionante total de 13.800 coordenados) que a cada estação se realizam só nas semanas da moda de Paris, Londres, Milão e Nova Iorque: são números reais, Olivier Saillard pediu ao seu assistente para os contabilizar na manhã em que o encontramos, e agora ei-lo à nossa frente em estado de choque. “Nos anos 50, os desfiles duravam duas horas; hoje duram sete minutos, são desfiles iPad. Vês os fotógrafos a chegarem, depois as estrelas, toda a gente se fotografa alarvemente, a coisa arrasta-se por uma boa hora e não é de todo interessante, à parte esse teatro um pouco estúpido e excludente… e de repente, em sete minutos, acabou. As pessoas já nem sequer aplaudem: têm as mãos ocupadas com os seus telemóveis.” É, diz, “um protocolo à beira de se tornar patético”, e a inércia incomoda-o: “Uma casa com poder poderia decidir fazer um desfile de 20 minutos, não seria um escândalo. Mas o que mais me surpreende é que nos últimos 15 anos — desde as últimas tentativas de Martin Margiela, Hussein Chalayan, Viktor&Rolf… — não houve um jovem criador a querer reinventar o dispositivo, a querer partir o que quer que seja. Toda a gente é muito dócil com o sistema.”
Não há violência gratuita nas palavras nem nos actos de Olivier Saillard: “Falo de tudo isto porque o que estamos a fazer põe a nu, espero, o carácter aberrante deste mundo viciado num excesso de abundância que não serve a criação. Nos grandes criadores — Comme des Garçons, Yohji Yamamoto, Azzedine Alaïa… — nunca é o dinheiro que está no coração da motivação. Interessa-me mostrar um estado da moda que não tenha nada a ver com a indústria nem com o dinheiro; um estado que corresponda a zero economia.”
Couture Essentielle será esse grau zero: quatro modelos no fim da sua própria história enquanto corpos de moda, alguns pedaços de tecido, não muito texto, bastante silêncio. “Quando comecei a fazer as minhas performances, tinha muito mais na cabeça o Martin Margiela do que qualquer coreógrafo. Ele fazia desaparecer toda a comunicação para fazer aparecer a roupa, eu quero fazer desaparecer a roupa para fazer aparecer o pensamento.” É dessa história, uma história da moda, que Olivier Saillard descende, não das artes visuais ou performativas. Claro que lhe interessam, responde-nos, “todos os artistas que trabalharam sobre o vestuário”, como Christian Boltanski nas funéreas esculturas em que “evidencia as formas de desaparecimento de uma peça de roupa com incrível eloquência”, Jérôme Bel em Shirtologie (1997) ou Trisha Brown em Floor of the Forest (1970); mas sempre teve “o cuidado” de não inscrever o seu trabalho nessas disciplinas: “Não quero que isto se torne dança nem teatro, não quero que as modelos façam outra coisa que não o seu papel de modelos; quero que isto permaneça dentro do território da moda, que é verdadeiramente aquilo que eu amo, ou pelo menos no território do vestuário e da sua memória.”
Também vem daí o seu fétiche pelas “modelos envelhecidas” e pela memória que os seus corpos encerram, mais do que por actrizes — “à parte a Tilda Swinton e a Charlotte Rampling [juntou-as em Sur-Exposition (2016)], ou a Isabelle Huppert”, com quem gostaria de trabalhar, a partir de vestidos da colecção permanente do Palais Galliera, numa visita encenada à memória das míticas Soeurs Callot, de que é descendente directa. “Acho que fazemos o nosso trabalho de museu quando fazemos estas coisas. Mais do que quando mostramos as peças em manequins por trás de vitrinas”, sublinha. O seu museu ideal, aliás, é parecido com o Museu Efémero da Moda que vai inaugurar em Julho no Palácio Pitti, em Florença, onde as peças estarão expostas com o mínimo de aparato (“sobre as costas de uma cadeira, espalhadas pelo chão, penduradas num cabide…”), o mesmo mínimo aparato que levaria para um desfile convencional, se o convidassem. “Adoraria fazer, no final de uma semana da moda, um desfile com todas as modelos que tivessem desfilado, mas nas suas roupas normais, como se passassem na rua, sem maquilhagem, sem penteados. Nalguma altura terei de defrontar o inimigo no seu próprio terreno.”
O Ípsilon viajou a convite do Teatro Municipal do Porto