De boas comissões está o inferno cheio: das “acusações infamantes” ao mistério de Camarate
Há várias comissões de inquérito marcantes. Umas foram mais caricatas e curtas, como a que se abriu por causa de uma vírgula, outras mais longas e complexas, como a que investigou as circunstâncias em que morreu Sá Carneiro.
“Quando estou mal disposta/ (e estou-o muitas vezes…)/ mudo o sentido às frases,/ complico tudo…” Os versos de Alexandre O'Neill encaixam na perfeição na insólita comissão parlamentar de inquérito (CPI), aberta em 1993, para apurar se houve ou não um ministro que alegadamente teria alterado uma vírgula numa lei, o que lhe teria valido 120 mil contos, à época. Mas o mistério em redor do valioso sinal de pontuação não foi esclarecido e o caso da vírgula continua com um sinal de interrogação à frente: quando chegou à breve comissão, a jornalista que fez a denúncia, Helena Sanches Osório (1942-2003) recusou-se a revelar a identidade do governante em causa.
No Parlamento, o então deputado social-democrata Pacheco Pereira usou da palavra, para explicar o que pretendia o seu grupo parlamentar: “Trata-se de esclarecer a denúncia de um crime de corrupção, feita por uma jornalista especializada nestas matérias e produzida num programa popular de televisão, perante centenas de milhar de espectadores. Queremos que este crime não fique impune.”
O universo dos temas das CPI parece infinito: as comissões averiguaram, ou tentaram averiguar, muito mais do que preço de uma vírgula. Tentaram desvendar os mistérios sobre Camarate; explicar os colapsos de bancos ou do túnel do metro em frente ao Terreiro do Paço; a apurar a relação do Estado com comunicação social (mais concretamente, a “actuação do Governo na compra da TVI”), entre muitos, muitos outros casos.
A primeira comissão (1978) nasce para "averiguar da veracidade das acusações infamantes formuladas pelo jornal estatizado Comércio do Porto contra o deputado António Macedo", do PS. As acusações foram formuladas num artigo intitulado Café Negócio Amargo, no Comércio do Porto, e referidas noutros órgãos de comunicação social. Se esta marcou o início, dezenas de outras lhe seguiram. No meio de tantas, uma destaca-se quanto mais não seja por uma questão numérica: o caso Camarate foi alvo de dez comissões de inquérito. A primeira foi em 1982, dois anos depois da queda do avião que vitimou o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, o rosto emblemático do PPD-PSD.
O objectivo foi sempre apurar se foi acidente ou atentado o que aconteceu naquela noite, em que morreram também Snu Abecassis, o ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, a esposa deste, o chefe de gabinete do primeiro-ministro e piloto e co-piloto, quando Sá Carneiro ia para o Porto participar num comício do candidato presidencial apoiado pela AD, o general Soares Carneiro.
Só a título de exemplo, no fim da segunda comissão (de 1984) – que realizou 51 reuniões, inquiriu 57 depoentes, alguns mais do que uma vez, visitou o local do acidente, examinou os destroços do avião, viu as reportagens da RTP – foi sugerida… uma nova comissão. Nas declarações de voto, houve deputados que mantiveram dúvidas: “Consideramos também indiciariamente provado que algo de anormal se terá passado a bordo do avião pouco depois da saída de terra, já que se nos mostra incompreensível um silêncio absoluto dos dois pilotos, através da rádio e com a torre de controlo do aeroporto durante todo o tempo que durou o voo até à sua queda.” As perguntas continuaram em 1986, 1988, 1993, 1996, 2001, 2002, 2011, 2012. A última comissão foi uma das que sustentaram a tese de atentado.
Já nos tempos recentes, uma das mais mediáticas comissões (2014) foi a que se propôs apurar o que aconteceu no grupo e banco Espírito Santo. O nome da comissão era comprido e incluía a gestão e posteriores opções sobre o agora Novo Banco. Houve transmissões em directo, o país assistiu às audições daquele que era conhecido como o Dono Disto Tudo, o banqueiro Ricardo Salgado, membro de uma das famílias mais ricas e poderosas do país, tragicamente dividida diante das câmaras. Mas esta comissão, da qual saiu um documento que aponta falhas à supervisão do Banco de Portugal e da CMVM, acabou com uma salva de palmas e foi considerada um êxito pelos deputados.