“É uma das grandes descobertas paleoantropológicas em território português”
Para Eugénia Cunha, que não integra a equipa da descoberta, o crânio humano da gruta da Aroeira, cuja existência foi agora revelada, vem mostrar a diversidade morfológica dos humanos há 400 mil anos.
A antropóloga Eugénia Cunha é professora catedrática da Universidade de Coimbra e a evolução humana tem sido uma das suas áreas de investigação.
Qual a importância da descoberta deste crânio de 400 mil anos tanto para a ciência em geral como para Portugal?
É, inequivocamente, uma das grandes descobertas paleoantropológicas feitas em território português. As grandes descobertas no nosso território, apesar de expectáveis, têm tardado. O crânio da Aroeira confirma a expectativa e o potencial de alguns locais e prova que os hominíneos andaram obviamente por aqui ao mesmo tempo que andavam no resto da Península Ibérica. É o fóssil humano mais antigo alguma vez descoberto em Portugal.
E é o fóssil do Plistocénico Médio mais ocidental da Europa e um dos poucos directamente associado a indústria acheulense [um tipo de utensílios bífaces de pedra do Paleolítico Inferior]. A datação é muito sólida, ao contrário da grande maioria dos fósseis europeus deste período, que são caracterizados, geralmente, por datações e contextos pouco precisos. Para além de estar também associado a restos faunísticos abundantes, está também ligado a ossos queimados, o que deixa supor que pudesse utilizar o fogo. Com esta descoberta, pode-se afirmar que a expansão dos homíneos, da indústria lítica e do fogo para o extremo mais ocidental da Europa aconteceu rapidamente.
Este crânio é da altura em que se pensa que surgiram os Neandertais, na Europa. Já é de um dos primeiros Neandertais?
Não é um Neandertal típico. O artigo [científico agora publicado] analisa detalhadamente as porções cranianas que estão preservadas e faz comparações com outros fósseis. O crânio é incompleto, tem alterações post mortem e foi sujeito a um processo de reconstrução. Está bem datado e é de um período que é muito provavelmente o da divergência: uma linha terá dado origem aos Neandertais e a outra aos homens modernos, ou seja, data de um período-chave. Mas este crânio não pode responder a questões-chave como esta, isto é, não se pode dizer taxativamente se estava na origem do Neandertal. De onde vêm os Neandertais continua a ser uma questão não resolvida.
São conhecidos vários fósseis europeus com uma datação próxima da do Aroeira 3, o que permite fazer comparações morfológicas. Tudo indica que nesta altura, há cerca de 400 mil anos, havia alguma diversidade morfológica e que a evolução era em mosaico, isto é, nem todas as características evoluíam ao mesmo ritmo. Havia, pelo menos, três tipos de morfologias cranianas, o que não significa necessariamente que fossem três espécies diferentes.
Na Alemanha (em Bilzingsleben e Steinheim), em Espanha (em Sima de los Huesos, na serra de Atapuerca), na Grécia (Petralona) ou em Itália (Ceprano) há crânios ou porções cranianas coevas. Talvez o mais próximo de Aroeira 3 seja o fóssil B1 de Bilzingsleben, mas o crânio agora descoberto tem uma combinação morfológica que parece única. Na minha opinião, o facto de estar incompleto não permite saber se efectivamente essa combinação era assim tão única.
O que é que este fóssil da gruta da Aroeira nos pode dizer sobre a origem dos Neandertais?
A datação deste achado é muito relevante porque remete para a problemática da origem dos Neandertais, que nasceram na Europa. No entanto, ainda não se sabe quem foram exactamente os seus ancestrais directos. As análises paleogenéticas têm lançado novos dados sobre este debate, apontando para uma origem mais recuada dos Neandertais, provavelmente há cerca de 350-400 mil anos. Nesse caso, fósseis como os de Sima de los Huesos, em Atapuerca [perto de Burgos], o maior tesouro fóssil do mundo do Plistocénico Médio, podem até ser considerados como membros deste clado [grupo]. Acho que é uma questão de tempo para que a equipa de Atapuerca proponha uma nova espécie para os fósseis de Sima de Los Huesos [que têm sido considerados os primeiros antepassados directos do Neandertais].
Até agora, que vestígios havia em Portugal de Neandertais? E, além dos Neandertais, que outros fósseis humanos importantes há no país, incluindo a criança do Lapedo?
O esqueleto infantil do Lagar Velho 1, de 1998, do Vale do Lapedo [perto de Leiria], datado de há pouco menos de 30 mil anos, do Paleolítico Superior, continua a ser o fóssil mais completo alguma vez descoberto no nosso território. É um Homo sapiens [ou homem moderno, a nossa espécie] e é interpretado como fruto de miscigenação entre Neandertal e homem moderno.
Quanto aos fósseis Neandertais até hoje descobertos em Portugal, são muito fragmentados, reduzidos e recentes. Infelizmente, há muito pouco a reportar: na gruta da Oliveira (no Almonda), um fragmento de Neandertal; na gruta Nova da Columbeira, um dente de Neandertal, aproximadamente com 37 mil anos; na gruta da Figueira Brava, um dente de Neandertal com cerca de 30 mil anos. Este cenário contrasta bem com o dos Neandertais “espanhóis”, onde só na gruta de El Sidrón [em Piloña, nas Astúrias] se encontraram 1900 restos humanos pertencentes, pelo menos, a 12 indivíduos.