Núncio esteve ligado ao registo de cerca de 120 novas sociedades na Zona Franca da Madeira
Ex-secretário de Estado trabalhou para uma empresa que fez transferências não fiscalizadas pelo fisco. E esteve ligado, durante dez anos, à Zona Franca da Madeira. Os dados relativos à região autónoma foram os únicos que lhe levantaram dúvidas para não publicar estatísticas.
O novelo em torno das transferências para offshores que não passaram pelo crivo do fisco continua a adensar-se. E as ligações do ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio a paraísos fiscais podem desempenhar um papel importante para a clarificação da história. Na sexta-feira, o Jornal Económico e depois o Observador noticiaram que Núncio fez parte da equipa de advogados da Garrigues até entrar no Governo, uma sociedade internacional de advocacia, com sede em Espanha, que teve como cliente a petrolífera venezuelana PDVSA. Segundo o Jornal Económico, foi esta empresa que fez uma parte "significativa" das transferências de 7,8 mil milhões para o Panamá através do BES, entre 2012 e 2014, e que passaram ao largo da fiscalização da Autoridade Tributária.
Mas esta não é a única ligação do ex-governante a regiões com tributação privilegiada. Ao que o PÚBLICO apurou, Paulo Núncio criou empresas na Zona Franca da Madeira (ZFM), para a qual trabalhou durante dez anos, como fiscalista. Este dado é relevante uma vez que a publicação de dados sobre a Madeira foi a única dúvida oficial levantava por Núncio para não publicar dados sobre offshores.
A esquerda não deixou de notar a coincidência de as transferências do antigo cliente de Núncio estarem no lote das declarações ocultas no fisco. A líder do BE, Catarina Martins, apontou o dedo à “porta giratória entre o poder político e o poder económico no nosso país" e à "forma como é feito um assalto económico, um assalto à riqueza do nosso país de uns poucos contra a grande maioria". E o PS anunciou que vai chamar novamente ao Parlamento o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais para apurar responsabilidades políticas, perante "factos novos".
A ligação à Madeira
Paulo Núncio foi, entre 1997 e 2007, advogado fiscalista da MLGTS Madeira Management & Investment SA, uma empresa do universo da sociedade de advogados Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, que continua a operar no Funchal e que prestava serviços de assessoria jurídica às empresas sediadas no Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM). Nessa época, era o responsável pelo escritório local da MLGTS e, apurou o PÚBLICO junto de empresas do sector, esteve ligado ao registo de cerca de 120 novas sociedades, numa altura em que zona franca madeirense funcionava também como praça financeira.
Vigorava então o I Regime do CINM, que além da Zona Franca Industrial, do Registo Internacional de Navios e dos Serviços Internacionais (os três vectores que ainda se mantêm) oferecia também Serviços Financeiros, entretanto extintos. Foi o regime mais liberal do centro de negócios madeirense, que permitia aos bancos instalarem uma sucursal offshore na ilha, dificultando assim o rasto das transferências financeiras.
Acresce que quando tutelou a Autoridade Tributária, Núncio não deu ordem para que fossem publicados os dados referentes às transferências para offshores, mas nesses dados estavam também os benefícios fiscais concedidos a empresas do Centro Internacional de Negócios da Madeira). E a única justificação formal dada por Núncio ao ex-director do fisco Azevedo Pereira para não publicar os dados como acontecia até aí foi exactamente a Madeira, tal como o PÚBLICO avançou.
Esta justificação nunca foi mencionada por Núncio quando foi ouvido pelos deputados. Nessa altura apenas disse que tinha dúvidas se a publicação seria produtiva porque beneficiava o infractor.
O Centro Internacional de Negócios da Madeira voltou recentemente a ser falado, na sequência da investigação “Money Island” de um consórcio de jornalistas liderado pela estação alemã ARD e pela austríaca ORF, que retrata uma realidade de fuga ao fisco nos últimos 19 anos na Madeira e que alavancou um relatório bastante crítico da eurodeputada socialista Ana Gomes.
Quando Paulo Núncio saiu da Madeira, em 2007, para trabalhar nos escritórios em Lisboa da Garrigues, o CINM já se regia pelo II Regime, por imposição da OCDE. Foi à Garrigues (da qual era cliente a venezuelana PDVSA) que Paulo Portas foi buscá-lo para integrar o governo em 2011.