Presidenciais agravam crise política francesa
Fillon permanece em campanha. Mas com a direita ameaçada de implosão e a esquerda estilhaçada, com os dois grandes partidos em risco de ficar fora da segunda volta das presidenciais, é o sistema político que está em causa.
Um dos pilares da política francesa, a “direita tradicional”, está há semanas à beira da implosão, mas isso não se traduz num lucro da esquerda. Se a direita agoniza, a esquerda está estilhaçada. É uma situação extraordinária em que as duas grandes famílias políticas, a esquerda e a direita, podem ficar de fora da segunda volta das eleições presidenciais. As manobras anularam todo o debate político, inclusive contra Marine Le Pen.
Olhemos os últimos factos. Na segunda-feira, o comité político do partido Os Republicanos (LR, direita) cedeu a François Fillon, apelando à “unidade em torno da candidatura”. Depois de ter tentado forçar a sua desistência, o LR tenta encerrar uma “guerra civil interna”. Mas as fracturas do partido parecem consumadas.
A pressão para o afastamento de Fillon decorria dos erros cometidos na campanha, designadamente o ataque aos magistrados e uma derrapagem direitista. Mas sobretudo pela manifesta possibilidade de ser eliminado na primeira volta (23 de Abril). Fillon tinha contudo um pesado trunfo: sem a sua anuência o LR não pode mudar de candidato. O partido está refém. E, no domingo, Fillon desafiou os rivais no comício do Trocadero em Paris, em que foi manifesta a radicalização dos seus apoiantes.
De manhã, o antigo primeiro-ministro Alain Juppé, mais próximo do centro e com uma posição “vencedora” nas sondagens, anunciou a sua renúncia à candidatura presidencial. A declaração de Juppé foi um libelo contra Fillon, contra a sua “obstinação” e o ataque à justiça, falando num “assassínio político” e num “pretenso complot” no caso dos empregos fictícios de sua mulher: “Como mostrou a manifestação no Trocadéro, o núcleo dos militantes do LR radicalizou-se.”
Os apoiantes de Juppé atribuem a sua desistência a Nicolas Sarkozy. Comentou um deles: “Sarkozy prefere perder com Fillon a ganhar com Juppé.” A rivalidade entre eles vem de longe.
A erosão dos partidos
Escrevia há semanas o politólogo Pascal Perrineau: “Um vento de loucura parece soprar sobre a campanha da eleição presidencial. Cada dia traz mais um lote de informações, de revelações e também de ajustes de contas.” Acrescentou dias depois: “A eleição presidencial que se organizava desde há lustros em torno da clivagem esquerda-direita, parece hoje ter desertado das duas famílias bisseculares para ser habitada pelo conflito entre os ‘nacionais’ e os ‘cosmopolitas’, para usar o jargão de Marine le Pen.”
Esta nova clivagem atravessa a esquerda e a direita. Benôit Hamon, candidato do Partido Socialista, e o seu rival esquerdista, Jean-Luc Mélenchon, assumem os temas do proteccionismo e da anti-globalização contra o “cosmopolitismo” do primeiro-ministro Manuel Valls — derrotado nas primárias do PS — ou do independente Emmanuel Macron. Este define o seu combate como o dos “progressistas” contra os “conservadores” de esquerda e direita, e procura ocupar os espaços do centro-esquerda e do centro-direita. O LR defende posições económicas liberais. A Frente Nacional (FN, extrema-direita) de Marine Le Pen propõe a saída do euro, o proteccionismo e o nacionalismo económico que casou com o nacionalismo étnico.
Por trás das “anomalias” está a erosão dos grandes partidos e a dcrescente desconfiança dos cidadãos no sistema político, um fenómeno europeu que ultrapassa as fronteiras da França. O primeiro barómetro deste ano do Cevipof (centro de investigação de Sciences Po) reporta que 89% dos inquiridos dizem que os seus representantes não se preocupam com o que eles pensam. Esta desconfiança tende a ser capitalizada sobretudo pela FN.
Aos olhos dos franceses, o governo de François Hollande falhou. As primárias do PS foram ganhas pelos seus dissidentes de esquerda, que fizeram sistemática oposição ao governo do partido. Hollande é o primeiro Presidente da V República que desiste de se candidatar a um segundo mandato: é a constação do fracasso. E Sarkozy, o seu antecessor de direita, não so perdeu as presidenciais de 2012 como as próprias primárias do LR em Novembro passado.
A conjugação de todos estes factores “extraordinários” abriu uma avenida para a candidatura centrista de Emmanuel Macron. Primeiro, a incapacidade da esquerda se unir em volta de uma identidade comum, depois a derrapagem da campanha de Fillon, que em Novembro parecia já estar eleito.
Le Pen sorri
Em ambos os pólos se anunciam ajustes de contas. A hipótese de Hamon passar à segunda volta é cada vez mais longínqua e não será ajudado por Mélenchon, cujo objectivo estratégico é destruir o PS para se arvorar em líder da esquerda. Valls foi marginalizado, pelo partido e por Macron. Como se irá recompor o PS, ou a que novas formações dará lugar o estilhaçamento da esquerda?
E à direita? Marine aguarda a derrota de Fillon para recuperar a franja mais radical dos seus eleitores, no objectivo de fracturar a “direita tradicional” e criar uma “direita nacional” por ela hegemonizada. Se Fillon for eliminado na primeira volta, anuncia-se uma guerra fratricida entre chefes e clãs. “É muito preocupante”, observa Le Monde: “Marine Le Pen esfrega as mãos. O seu programa não tem sido questionado e o tempo do ‘são todos corruptos’ nunca foi tão explosivo.”