Lefèbvristas perderam “possibilidade de afirmação” com este Papa
Com Bento XVI, fraternidade teve um protagonismo que não se deverá repetir. Mas há sinais contraditórios.
Juan Fernández Krohn tinha sido ordenado padre por Marcel Lefèbvre poucos anos antes de ter tentado apunhalar o Papa João Paulo II. Mas, por essa altura, o espanhol já estaria em ruptura com a fraternidade fundada em 1970 por aquele bispo, em protesto contra as reformas aprovadas pelo Concílio Vaticano II.
Aparentemente, Krohn consideraria que a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) e o próprio Lefèbvre eram demasiado brandos na resistência à modernização da Igreja, apesar de, então como agora, os seus seguidores se oporem feroz e declaradamente ao uso da linguagem corrente na missa (preferem o latim), à liberdade religiosa e ao ecumenismo. Não obstante tudo aquilo que os separa, em Abril de 2016, o papa Francisco recebeu Bernard Fellay, o actual superior da fraternidade. O encontro privado foi entendido pela maioria como “mais um gesto de aproximação às periferias” tão presentes na acção de Bergoglio. Não foi um gesto isolado. Em Setembro de 2015, Francisco tinha já determinado que todos os católicos se podiam confessar de forma válida aos sacerdotes da FSSPX, tendo feito então votos para que fosse possível, num futuro próximo, “encontrar soluções para recuperar a plena comunhão com os sacerdotes e os superiores da fraternidade”.
Tudo somado, há quem admita que os movimentos integristas como o fundado por Lefèbvre, que comungam de uma postura ultraconservadora, poderão ganhar força durante o actual pontificado. Não obrigatoriamente por via do apoio directo do Papa, mas porque o posicionamento de Francisco à esquerda das sensibilidades mais conservadoras, por um lado, e o actual fenómeno de rarefacção religiosa, por outro, podem suscitar uma reacção mais enfática entre os que defendem posturas mais tradicionalistas.
“Agora há jovens que gostam que lhes definam tudo. Que precisam de GPS para tudo…”, aponta a teóloga Teresa Toldy. O sociólogo Alfredo Teixeira, do Centro de Estudo de Religiões da Universidade Católica Portuguesa, concede que “o encontro na religião de uma mensagem vista como forte, clara, assertiva, que transmite uma certa segurança e uma visão mais rígida, torna-se atractivo, nomeadamente para as pessoas mais vulneráveis, porque a modernidade em que vivemos em muitos casos não cumpriu as suas promessas e fragilizou a suas vidas”. Porém, discorda que estes movimentos integristas possam recuperar o protagonismo perdido. Pelo contrário, considera que, com Francisco, “viram bastante diminuída a sua possibilidade de afirmação ou de protagonismo”.
Recuemos alguns anos. Em 1984, o Papa João Paulo II iniciou as negociações, lideradas pelo então cardeal Joseph Ratzinger, que previam a regularização canónica da FSSPX. O acordo, porém, tardava. Velho e ameaçado por um cancro, Lefèbvre fartou-se de esperar e, para garantir a sua sucessão, ordenou, em Julho de 1988, quatro novos bispos para a FSSPX. A desobediência a João Paulo II leva à excomunhão automática de Lefèbvre e dos quatro bispos por ele ordenados, entre os quais o actual líder da fraternidade. É o chamado cisma de 1988.
Em 2009, Ratzinger, já na qualidade de Papa Bento XVI, volta a tentar reintegrar os lefèbvristas e anula a excomunhão dos bispos. Na altura, Bento XVI não estaria ciente de que um desses bispos, o britânico Richard Williamson, negara o holocausto, numa entrevista a uma televisão sueca. E que outro membro da fraternidade, o italiano Floriano Abrahamowicz, sustentara que as câmaras de gás nos campos de concentração nazis serviam apenas para “desinfectar” os judeus. Tanto o Vaticano como Bernard Falley distanciaram-se destas afirmações. Foi, porém, o suficiente para que Bento XVI fosse acusado de estar a ressuscitar um movimento anti-semita, que, segundo o seu próprio site, soma cerca de 600 sacerdotes e quase meio milhão de fiéis em 60 países.
“Com Bento XVI, que cultivou um certo diálogo com a fraternidade num espírito de reconciliação eclesial que não chegou a ter os frutos que ele próprio esperaria, os lefèbvristas ganharam um certo protagonismo, um certo espaço na ecclesiosfera católica. Não que Bento XVI pretendesse isso, mas ele próprio tinha uma certa sensibilidade litúrgica e cultivava muito as dimensões de uma maior sacralidade da ritualidade católica”, interpreta Alfredo Teixeira. Para o sociólogo, “o facto de Francisco privilegiar no seu discurso público outras dimensões da experiência cristã e da vida católica retirou claramente do cenário um contexto favorável à afirmação deste movimento”.