A epifania de uma mulher apartada
Em pacote com a reposição de títulos de Wim Wenders teve finalmente exibição comercial em Portugal A Mulher Canhota, de Peter Handke. Quase 30 anos depois permanece imaculado e magistral.
“Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem”
Ludwig Wittgenstein
Escritor, dramaturgo e cineasta austríaco, Peter Handke (n. 1942) é um autor e uma personalidade controversa. A mais célebre das polémicas, que de imediato ocorre, prende-se com as suas posições anti-NATO, pró-sérvias e pró-Milosevic, que em 2001, com enorme celeuma, levaram o então administrador da Comédie-Française, Marcel Bozonnet, a desprogramar uma peça sua, O Jogo das Perguntas, gesto considerado censório, e que acabou por lhe valer o cargo — mas não é esse traço político que agora importa.
Handke foi desde logo um autor polémico pelas suas provocadoras primeiras peças, como Insulto ao Público (o título é todo um programa!), Kaspar, O Aluno que Queria ser Mestre ou Cavalgada sobre o Lago Constança, e depois tornou-se polémico por uma viragem na escrita, que foi entendida como “clássica” e mesmo “neo-romântica”. Mas não é só isso…
Muitos consideram palavrosos e verborreias as suas peças, outros (por vezes os mesmos) entendem como pedantes pelo menos alguns dos seus “argumentos” cinematográficos, como o de O Céu sobre Berlim/As Asas do Desejo de Wim Wenders, realizador com o qual tem uma longa colaboração desde finais dos anos 60. Importa comentar estas apreciações.
Sem prejuízo do jogo das palavras, das frases e das falas em Handke poder por vezes ser/parecer repetitivo — mas é uma repetição inerente a uma das suas mais marcadas características, a de que a escrita é um mundo e um jogo de linguagem — não deixa de ser insólito que se tenha como “palavroso” um autor de quem uma das mais extraordinárias peças, A Hora em que não Sabíamos Nada Uns dos Outros (vista na Lisboa-94 numa produção vinda de Bochum e não, infelizmente, na genialíssima encenação de Luc Bondy para a Schaubühne), não ter uma única palavra pronunciada! E no tocante às Asas do Desejo é mais que óbvio que depois de ocorrer a Wenders a ideia de Berlim e dos anjos era necessária uma escrita literária para os diálogos daqueles e para os pensamentos que eles vão ouvindo em off aos humanos, pelo que é um equívoco total, e não perceber o objecto, supor que poderia antes haver um “argumento” no sentido mais usual do termo — para isso procurem antes noutros filmes, além de que, há a dizê-lo, não deixa de ser deveras curioso que essa objecção tantas vezes venha de parte de quem delira com a verborreia de citações e referências de um Godard…
A filmografia de Peter Handke tem duas vertentes, os filmes que Wenders fez com base em textos dele ou solicitando a sua colaboração, da adaptação de A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty (um título glosado como poucos) ao recente Os Belos Dias de Aranjuez, e as obras por ele realizadas, começando de modo fulgurante e magistral por A Mulher Canhota, para ter uma continuidade esparsa e estéril, com um muito frágil A Ausência, que remonta já a 1992 (e nada houve depois disso), pelo meio havendo um filme para a televisão que é um desastre, La Maladie de la mort, em que o que se potenciava como promissor, um cruzamento com a escrita de Marguerite Duras, redundou num equivoco total de incompreensão do texto abordado. É caso para dizer que o Handke cineasta permanece autor de uma única obra(-prima), A Mulher Canhota. Tanto mais urgente é revê-la após todos estes anos, ou mesmo descobri-la, já que teve algumas exibições mas não tinha sido estreada por cá.
Do ponto de vista factual há um reparo a fazer à crítica de Luís Miguel Oliveira no Ipsilon. Escreveu ele que “Wenders não assumiu, pelo menos oficialmente, qualquer papel em A Mulher Canhota”, o que não é correcto, pois é co-produtor do filme através da Wim Wenders FilmProduktion, da Road Films e, quanto à distribuição, da Reverse Angle, esta nome que aliás é também uma de sua sua bela curta-metragem, Reverse Angle — Uma Carta de Nova Iorque (do cinema de Wenders vêm directamente o director de fotografia Robby Müller, o montador Peter Przygoda e o até então actor-fétiche, Rüdiger Vogler — aliás no papel de um actor de cinema em crise).
Não deixa de ser surpreendente que A Mulher Canhota tenha sido uma narrativa (pouco) antes de ser um filme, já que texto e escrita cinematográfica são no caso inseparáveis, com os silêncios e por exemplo as pontuações exteriores dos ruídos dos comboios, a incrível mestria dos planos quase sempre fixos e a construção do espaço, as alternâncias de interiores e exteriores ou o correr do tempo — mas é possível que quando escreveu o texto Handke já tivesse um filme em vista.
A rarefacção minimalista, vertente tão marcante nalgum cinema europeu dos anos 70, tem aqui um verdadeiro exemplo apoteótico — pensa-se por exemplo em Chantal Akerman, e se à posteriori logo pode ocorrer Jeanne Dielman, o “irmã inseparável de A Mulher Canhota, para quem viu à época, é sim Les Rendez-vous d’Anna — são ambos de 1978. Mas há no filme de Handke uma deriva zen, em nada sendo casual a dupla referência a Ozu, com a visão de um filme seu, Nasci, mas, e depois a fotografia do mestre nipónico que Marianne, a mulher, tem na parede. Contudo que não haja equívoco nessa referência: os enquadramentos e a cena a eles interna nada têm a ver com um estilo Ozu embora por outro lado a atmosfera seja de tal modo apreendida que este é um “fim do Inverno” (com epílogo já na Primavera) lembrando as recorrentes alusões às estações tão frequentes nos títulos do mestre admirado.
Contudo, mais do que de um “momento zen” há antes que falar de uma “epifania”, noção impregnante do filme. Quando ao fim de 15m a mulher fala é para dizer ao companheiro “tive uma ideia, mais uma epifania que uma ideia”, dizendo para ele a deixar. O carácter lacunar do filme é afinal o da própria mulher, que será canhota, mas sobretudo silencioso ou calada, só no espaço mesmo que vivendo com o filho (e a este respeito é de facto extraordinária a arquitectura dos enquadramentos), vivendo numa casa grande demais, como lhe é lembrado, na sucessão milimétrica dos gestos quotidianos, mas ao mesmo tempo tão ciosa dos sentimentos, dos estados de espíritos, do silêncio e das palavras, dos estados de espírito — e assim afinal o filme é eminentemente uma epifania handkiana, do autor de textos como Breve Carta para um Longo Adeus ou A Hora da Sensação Verdadeira, sempre focado nos sentimentos, as percepções e o tempo, em perfeita consciência que o seu modus operandi é a linguagem e os seus limites, como no enunciado de Wittgenstein, uma referência maior de Handke — aliás a tarefa a que a mulher volta é da ordem da linguagem, a tradução. E o texto que trabalha, passando-o de francês para alemão, de Flaubert, acaba mesmo por a impregnar.
E dando corpos e falas a esta busca das sensações verdadeiras e à sua enunciação há um fabuloso conjunto de actores. Poderão alguns cinéfilos supor que Handke foi buscar o par protagonista de Edith Clever e Bruno Ganz a A Marquesa d’O de Rohmer. De facto um e o outro foram sim colhê-los na mais importante trupe teatral alemã, a da Schaubuhne, onde já eram vedetas. Daí vem também Angela Winkler, se bem que esta também já fosse um conhecido rosto cinematográfico, de Duras vêm Michel Lonsdale e, numa “aparição” tanto mais fulgurante quanto breve e muda, Gérard Dépardieu, então grande actor de opções “autorais” (Duras, Ferreri ou Resnais), de Wenders vem Vogler, e enfim há duas veteranas glórias, Bernhard Wicki e Bernard Minetti.
Na sua análise de A Angústia do Guarda-Redes, em A Descrição da Infelicidade, escreveu Sebald que “o texto de Peter Handke não segue pelo beco sem saída da identificação patética, antes explora a via sóbria, a frio, das formas específicas de fuga esquizofrénica da realidade”. Substitua-se “esquizofrénica”, termo da patologia psiquiátrica, por “ensimesmada”, e a caracterização é pertinente para A Mulher Canhota.
Este filme é mesmo uma solitária obra-prima.