Se é só para poupar não vale a pena mandar os presos para casa, dizem especialistas
Especialistas criticam critério economicista. Faz 15 anos que foi colocada a primeira pulseira electrónica a um recluso: uma adolescente grávida, que apanhou um grande susto. Hoje discute-se o cumprimento de penas no domicílio.
Fez nesta quarta-feira 15 anos que Magda, que morava numa casa muito pequenina no bairro lisboeta de Alfama, apanhou um dos grandes sustos da sua vida. Com 19 anos de idade e uma filha na barriga, tinha deixado de sentir o feto horas depois de lhe colocarem aquela que foi a primeira pulseira electrónica aplicada em Portugal a um recluso.
Relacionou as duas coisas e chamou uma ambulância. Afinal era só ansiedade, concluíram na maternidade. E o caso acabou por ter um final feliz: a criança nasceu saudável e Magda, que tinha estado na cadeia de Tires em prisão preventiva antes de se tornar cobaia do novo sistema de prisão domiciliária, acabou por nem ter de cumprir cadeia: a burla informática e o furto de que estava acusada valeram-lhe apenas uma pena suspensa.
Década e meia depois da implantação de um sistema cujo sucesso poucos se atrevem a negar, e quando esta tecnologia já serve também para afastar os suspeitos de violência doméstica das suas vítimas, discute-se um novo passo em frente: permitir que as penas de cadeia mais leves, até três ou quatro anos, sejam substituídas pela permanência em casa com pulseira, sendo o condenado autorizado a deixar a residência para ir trabalhar.
Juízes e procuradores criticam
Representantes de juízes e procuradores franzem o nariz à ideia, que está a ser alvo de reflexão num grupo de trabalho criado pelo Ministério da Justiça (ver caixa) e que é cara aos especialistas na vigilância electrónica. Num dos vários textos que integram uma monografia sobre o tema lançada esta quarta-feira, Nuno Caiado, o homem que esteve 13 anos à frente do sistema das pulseiras na Direcção Geral dos Serviços Prisionais, enumera as múltiplas vantagens de os delinquentes pouco perigosos cumprirem a pena em casa: evita-se o contacto com o meio prisional a quem ainda não enveredou definitivamente pelo mundo do crime e não se quebram os laços familiares. “Mas a racionalidade económica não pode ser a única nem a decisiva razão” para alterar a política criminal nesta matéria, avisa. “Devemos pugnar para que não surja, nem na lei nem encapotada na prática dos serviços, a tentação de uma mera substituição do cárcere público pelo cárcere privado e domiciliário”. Entregar o criminoso a si mesmo e à sua família, com escassa intervenção dos serviços prisionais e com reduzido investimento no condicionamento do seu comportamento criminal não resolve quase nada, defende Nuno Caiado.
Não é o único a pensar que mandar as pessoas para casa sem acompanhamento nem programas que lhes permitam afastarem-se da delinquência não é solução. Na apresentação que fez daquela obra, o antigo ministro da Justiça Vera Jardim citou um dos grandes especialistas mundiais na matéria, o britânico Mike Nellis, que de resto também tem um texto no livro lançado nesta quarta-feira no Centro de Estudos Judiciários, em Lisboa. Depois de explicar que existem provas, dadas pelos próprios condenados, que sugerem que eles consideram a vigilância electrónica realmente punitiva, mentalmente exigente e stressante, tanto para si como para os seus familiares que com eles moram – ao ponto de alguns preferirem ficar na cadeia –, este professor de justiça penal defende que a vigilância electrónica se tornou politicamente irresistível, pelos ganhos que proporciona ao nível da redução da despesa pública e do descongestionamento das cadeias. O desafio é se se consegue usar as pulseiras como instrumentos de ressocialização. “Porque o investimento político nas tecnologias digitais é tão grande que, a menos que o uso da vigilância electrónica seja imaginado e concretizado de forma penalmente progressista, é quase certo que será usado em formas penalmente retrógadas”, sublinha.
Foi no final dos anos 90 que Vera Jardim, enquanto ministro, lançou o sistema que deixou Magda em pânico. Confrontado com uma sobrelotação das cadeias muito superior à actual, o antigo governante confidenciou que também ele teve medo na altura: que alguém suscitasse a inconstitucionalidade da aplicação das pulseiras electrónicas, por estarem na altura a ser usadas apenas nalgumas partes do país, a título experimental. Mas isso acabou por não suceder, apesar da polémica que a medida gerou. Dizia-se que havia reclusos que conseguiam tirá-las e acoplá-las a familiares idosos ou mesmo a animais domésticos, para ficarem em liberdade sem que os serviços prisionais dessem por isso. Nuno Caiado nega: diz que essas histórias nunca passaram de mitos.
Estudo só fica pronto na Páscoa
O grupo de trabalho que a ministra da Justiça incumbiu de apresentar até ao final do ano passado propostas de alteração ao Código Penal capazes de maximizar o recurso à pulseira electrónica ainda não entregou os resultados da sua reflexão – nem o deverá fazer senão antes da Páscoa. Contactado repetidamente pelo PÚBLICO para explicar as razões do atraso, o Ministério da Justiça remeteu-se ao silêncio. Fonte do grupo adianta, porém, que o prazo anunciado por Francisca van Dunem em Outubro era irrealista, uma vez que nessa altura a sua composição não estava sequer concluída. Além de eminentes juristas – entre os quais se contam Figueiredo Dias e o ex-procurador-geral da República Cunha Rodrigues –, o grupo inclui o vice-director-geral dos serviços prisionais. Serviços esses que, de resto, formaram o seu próprio grupo de trabalho para estudar as implicações práticas de uma medida deste género, que se estima que possa libertar das cadeias cerca de 11% dos reclusos.
Mas enquanto Figueiredo Dias e os colegas se debruçarão sobre uma medida que tentará não beliscar a autonomia dos juízes, que deverão poder continuar a decidir quem terá de cumprir pena na cadeia e quem poderá ir para casa, o grupo multidisciplinar formado no âmbito dos serviços prisionais tem como missão avaliar a evolução do sistema de vigilância electrónica e reflectir sobre os novos desafios que se colocam neste domínio, devendo pronunciar-se sobre os recursos humanos, materiais e financeiros necessários para a alteração ao regime vigente.