Quem não tem mãe caça olhos
Se David Lynch e Takashi Miike rodassem a meias um gótico americano rural ao som de Amália, o resultado não andaria longe de Os Olhos de Minha Mãe. A primeira longa do americano Nicolas Pesce, com a portuguesa Kika Magalhães, criou sensação em Sundance e chega agora às salas portuguesas.
Portugal não é país do qual o cinema americano se lembre muito. Logo na primeira vez que um filme americano recente tem uma personagem de ascendência portuguesa no centro da acção, é uma órfã psicótica que mora isolada do mundo numa casinha escondida na província, que aprendeu com a mãe a dissecar olhos de vaca ao som de Amália Rodrigues.
Por Skype de Nova Iorque, Nicolas Pesce, argumentista e realizador em estreia na longa-metragem com Os Olhos de Minha Mãe, ri-se e explica que a ideia era usar uma língua da Europa ocidental mediterrânica que tivesse algo ao mesmo tempo de ancestral e exótico para os ouvidos americanos. “Queria que o filme falasse de uma família que vinha de outro sítio, e que não encaixava no sítio onde vivia por uma série de motivos,” explica Pesce, cujos pais são sicilianos. “Queria que o filme tivesse uma qualidade bilingue, e, pelo menos na América, o português de Portugal é muito menos conhecido que o português do Brasil, é completamente diferente, e tem uma sonoridade belíssima.” E, claro, há o pormenor, nada dispiciendo, da actriz principal ser portuguesa – Kika Magalhães, que Pesce já conhecia de telediscos que tinha dirigido. “Ela existia antes do guião, eu sabia que ia escrever o guião a pensar nela e que ela era a actriz certa para o papel. Ser portuguesa era uma questão secundária, mas tornou-se muito interessante integrar essa herança portuguesa da Kika no filme. Foi ela quem me apresentou a música de Amália, que eu nunca tinha ouvido antes...”
Agora que já picámos o apetite, larguemos a bomba: Os Olhos de Minha Mãe, revelado em Sundance 2016 acompanhado por uma série de críticas embasbacadas e que chega às salas com lançamento quase simultâneo nos video-clubes, em DVD e nos serviços de streaming, é o mais singular filme de terror que vimos em muito tempo. É uma conjugação incatalogável de slasher movie, cinema de autor, surrealismo Lynchiano e extreme horror asiático, rodado em écrã panorâmico a preto e branco ao som de Amália e blip-hop, e produzido por António Campos (After School), Sean Durkin (Martha Marcy May Marlene) e Josh Mond (James White), o trio da Borderline Films nova-iorquina – Pesce (n. 1990) foi assistente de Mond na rodagem de James White e a amizade que daí nasceu levou o trio a apadrinhar Os Olhos de Minha Mãe, “tal como eles próprios foram apadrinhados por outros”.
Ao longo desta conversa, Nicolas Pesce invoca os nomes de Takashi Miike, Park Chan-wook, William Castle ou David Lynch como influências, e explica que a atmosfera é a chave da concepção desta primeira longa-metragem.
É o tipo de filme que nos velhos tempos apareceria com o proverbial aviso “este filme contém cenas que podem chocar os espectadores mais sensíveis” – e o mais perturbante é que o filme se inspira, em parte, na própria mãe de Pesce, que era cirurgiã oftalmologista. Ninguém diria, face ao entusiasmo muito juvenil com que o realizador fala com o Ipsilon.
A personagem principal tem uma obsessão por olhos e dissecações. E o olho é uma presença regular no cinema e na arte surrealista. Como é que tudo isto se conjuga?
A resposta é muito simples! A minha mãe era oftalmologista, e a dissecação do olho da vaca que se vê no princípio do filme vem da minha própria vida. Ela fê-lo comigo quando eu era miúdo, para me explicar coisas sobre a cirurgia, a anatomia… Talvez por isso eu tenha crescido com uma postura muito clínica perante o sangue e as vísceras no cinema de género. As pessoas não se dão conta que as operações são algo de muito sanguinolento. Quis jogar com a sobreposição de alguém que tem essa postura muito natural perante o sangue mas que é extremamente violenta enquanto pessoa, e com a tensão que isso cria. E o olho foi uma escoha natural. É uma parte muito sensível do nosso corpo, e, para um cineasta, perder os olhos é um dos maiores medos que existe. Tirar os olhos a alguém é um acto extremamente brutal.
Quanto ao surrealismo, é engraçado que faça essa referência, porque tenho um cartaz na parede de Abraham Lincoln pintado por Dali, e tenho no braço uma tatuagem da Audrey Horne do Twin Peaks… David Lynch é um dos meus realizadores preferidos de sempre e tem a capacidade de tornar o banal e o vulgar absoutamente assustadores. A lição dele que quis pôr em prática em Os Olhos de Minha Mãe tem a ver com isso. Muitas histórias sobre assassinos em série mostram as cenas violentas, que podem ser assustadoras ou perturbantes. Mas se soubermos aquilo de que alguém é capaz, observar essa pessoa a ver televisão, a fazer o jantar ou lavar a louça torna-se ainda mais aterrorizante. Aprendi isso com Lynch.
Os Olhos de Minha Mãe não é bem um filme de terror.
Não.
Mas ao mesmo tempo é de facto um filme de terror.
Completamente, e foi sempre pensado assim. Os filmes de terror de que gosto são filmes de autor, como Audition (Anjo ou Demónio, 99) de Takashi Miike, que foi uma influência enorme, e muito do seu trabalho e de outros cineastas japoneses está precisamente nessa terra de ninguém entre géneros. Como os filmes do Park Chan-wook, que são thrillers, dramas, romances, filmes de terror, não sabemos nunca muito bem o que são… Mas também cresci a ver o cinema de terror gótico dos anos 1950 e 1960, William Castle, Alfred Hitchcock, aqueles filmes com a Bette Davis ou o Vincent Price. Claro que gosto do Massacre no Texas e afins, mas existe uma elegância no modo como Hitchcock fazia um filme de terror que tentei emular. Sou um cinéfilo antes de ser cineasta, e isso vê-se, não escondo as minhas influências.
Como Jacques Tourneur e a maneira como ele usava o preto e branco?
Exacto. Fiz a escola de cinema, sei os truques que eles usavam para filmar, adoro essas coisas, e parte do gozo de rodar Os Olhos de Minha Mãe a preto e branco vem daí. Pegue nas cenas de exteriores. As cenas que decorrem de dia foram rodadas à noite com muita iluminação para fingir que é dia, e as cenas de noite foram rodadas de dia com um filtro vermelho e iluminação muito específica. É algo que só podíamos fazer rodando a preto e branco, e dá aos exteriores uma qualidade surreal, alienígena, que joga bem com a estética do filme.
O filme tem um tom extremamente pacato, uma quietude que tanto está presente na performance da Kika Magalhães como no próprio desenrolar da acção.
Isso tem tudo a ver com a atmosfera, porque é importante que não seja só a história a afectar o espectador mas também a atmosfera, e de um modo que não se consegue verdadeiramente explicar. É outra coisa que aprendi com o David Lynch. Há muitas cenas nas quais, se formos a olhar para elas com olhos de ver, não encontramos verdadeiramente uma razão para nos sentirmos inquietos, mas sentimo-nos assim na mesma e não há nenhuma razão especial para isso. Isso é uma das coisas mais fantásticas do cinema: poder criar estas experiências emocionais que as pessoas não compreendem bem. Os filmes fazem-nos sentir coisas que nunca sentimos antes, e quero que seja o espectador a juntar as peças, a encontrar a atmosfera, o tom do filme, ao mergulhar neste mundo. E como é um filme curto, só tem 1h15, posso ir devagarinho que as pessoas não se chateiam!
Ou seja, a lógica onírica do filme, do pesadelo que não se percebe por inteiro onde nem tudo bate certo, é deliberada?
Não tem piada nenhuma explicar tudo! Muitas vezes, saber para onde o filme vai deixa o espectador sossegado, e eu não quero nada disso. Gosto da ideia de um filme como um quebra-cabeças, e como cineasta quero deixar “buracos” para o espectador preencher. A cena que ele imaginar será provavelmente melhor do que a que eu escreveria!