Uma colecção de arte que vai passar de casa para o Quartel

A colecção de arte contemporânea portuguesa de Fernando Figueiredo Ribeiro vai passar da esfera privada para a fruição pública. São cerca de 1800 obras que ficarão à guarda do Quartel, antiga sede dos bombeiros de Abrantes.

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Enric Vives-Rubio

Há 30 anos, quando ainda andava a estudar, Fernando Figueiredo Ribeiro desceu à cave da Livraria Barata, em Lisboa, para ver uma exposição. Ficou tão fascinado com um quadro que não resistiu — comprou-o com o dinheiro que tinha feito em investimentos na bolsa, quando a praça lisboeta vivia um período de “efervescência”. Não foi nessa altura que começou a comprar arte para coleccionar, mas foi a partir daí que percebeu que não pararia de admirar arte e, sobretudo, artistas portugueses. Ligado profissionalmente à área financeira (trabalha para uma gestora de activos pertencente ao grupo canadiano BMO), este economista, de 51 anos, confessa que só começou a coleccionar arte no momento em que percebeu que tinha comprado um lote de peças sem ter um espaço para as guardar. Foi na viragem do milénio, e desde então já juntou cerca de 1800 obras de arte contemporânea portuguesa, sobretudo dos últimos 30 anos, sempre segundo três critérios (que admitem excepções): gosto, técnica e tamanho (as peças tinham de ter uma escala “caseira”). Trabalhou em Londres durante onze anos e foi lá que concluiu que a arte que se faz em Portugal pode “ombrear com o que se faz internacionalmente”. Há quatro anos decidiu tornar pública a sua colecção. Mandou 24 cartas para localidades que distassem até um máximo de hora e meia de Lisboa. Negociou com várias, mas Abrantes ganhou a corrida. Em Junho de ano passado, na inauguração de uma exposição com obras da colecção, assinou um contrato de comodato de dez anos, para que o acervo, que inclui muitos dos nomes mais relevantes da arte portuguesa das últimas décadas (José Pedro Croft, Rui Chaves, Pedro Cabrita Reis, Ana Hatherly, Ana Jotta, António Júlio Duarte, Helena Almeida) e muitos artistas em início de carreira, possa ser instalado no Quartel, antiga sede dos bombeiros locais que passa a acrescentar ao seu nome Galeria de Arte Contemporânea de Abrantes/Colecção Figueiredo Ribeiro. No final deste ano fecha para obras de ampliação. Passará a ter 1100 metros quadrados de área útil e deverá reabrir no final de 2018.

Conversa numa manhã de domingo na Gulbenkian, no meio de participantes de um congresso e de uma multidão que se juntou para ver a exposição do Almada.

Gosta de conhecer pessoalmente os artistas?
Gosto muito. A minha actividade profissional envolve mais lógica, racionalidade e números. Com os artistas tenho um relacionamento mais emocional, embora os artistas, naquilo que fazem, também tenham lógicas racionais, mas são campos diferentes do meu. Foi também assim, a conhecer os artistas e aquilo que fazem, que me fui apaixonando pela arte.

E costuma visitá-los no atelier?
Sim. Ir a um atelier é ter a oportunidade de conhecer melhor a obra de um artista. É ir até ao núcleo, ao sítio onde o artista dá conteúdo à sua criatividade, onde tudo acontece. É muito diferente falar com um artista fora ou dentro do seu atelier.

O facto de ter ido para Londres levou a que começasse a olhar de outra maneira para a arte portuguesa?
Em Londres, sempre que podia ia ver exposições. Esse tempo deu para concluir que entre a arte internacional e a arte portuguesa não havia grande diferença, antes pelo contrário, a arte portuguesa ombreia com o que se faz internacionalmente. Mas, tal como em muitas outras áreas, os artistas portugueses têm de lidar com o problema da dimensão do mercado. Sou defensor do que é feito em Portugal e pelos portugueses. Pensei que podia começar a construir algo que envolvesse esta paixão pela arte e por Portugal.

Lembra-se da primeira peça que comprou com o pensamento de começar a colecção?
Sim, mas talvez valha a pena caracterizar primeiro a minha colecção, que é baseada em três princípios, todos com excepções.

Ia perguntar-lhe isso mais à frente.
Então digo-lhe já que o primeiro momento em que pensei organizar uma colecção foi quando me apercebi de que já não tinha espaço em casa para as peças que comprava. O momento em que se compra para se pendurar nas paredes, para colocar em cima de um móvel ou de um plinto, é talvez uma fase decorativa, não se é bem um coleccionar. Mas quando se começa a armazenar arte, talvez isso já seja um sinal de alguma coisa. Esse momento para mim começou na viragem do milénio. Nessa altura comprei várias peças sem ter destino para elas, sem saber onde iria pô-las.

E que tipo de obras compra?
Nunca tive ninguém a aconselhar-me, embora fale com muita gente. Mas olhando para o que reuni ao longo dos anos, percebe-se que a colecção começa por ser construída por obras com base no gosto, com uma ou outra excepção. Em relação às técnicas, comecei no desenho e na pintura, e depois evoluí para a escultura e para a fotografia. Tenho alguma videoarte, mas não sou um apreciador. O terceiro critério para a colecção é só ter obras que caibam em casa. Reconheço, obviamente, o valor de obras de grande dimensão, mas prefiro ter obras que possam viver comigo. Mas há excepções que confirmam a regra.

É um colecionar que compra com o fito de fruição pessoal?
Sim, meu e da minha família.

E não pensa na colecção como um investimento?
Nunca pensei na arte como um investimento, embora reconheça que possa ter esse lado. Não digo isto por dizer ou para parecer bem, mas se pensasse só nisso comprava meia dúzia de autores portugueses e o resto era tudo autores internacionais. Obviamente não me é indiferente ver artistas da colecção subirem em valor. Isso dá-me satisfação, não só porque significa que os artistas estão a progredir nas suas carreiras, mas também porque isso me dá uma validação das minhas escolhas. Tem de haver sempre algum tipo de validação e não há maior validação do que a do mercado.

Mas há outras validações, como a da crítica…
Claro. Mas não existe outra tão independente como a do mercado. Estando ligado à área financeira, olho obviamente para o mercado, mas nunca comprei baseado em valor. Tenho aliás muitos artistas jovens na colecção, a quem atribuo grande potencial, mas só o tempo dirá se é ou não uma aposta acertada. O que é importante é a consistência das obras e o cumprimento dos critérios da colecção: o meu gosto, as técnicas que prefiro e dentro das dimensões que estipulei.

A sua colecção centra-se sobretudo na arte portuguesa dos últimos 30/40 anos.
Sim. Embora tenha algumas obras anteriores, mas a grande maioria é dos últimos 30/40 anos. Mas há uma aposta em artistas jovens. A produção dos últimos 15/20 anos está muito representada. Não tenho ainda essa estatística feita, mas posso dizer que na altura da assinatura do protocolo com Abrantes a obra mais antiga era de 1970 e a mais recente de 2015.

Isso significa que compra peças que ainda estão muito frescas…
Sim.

Nestes casos o grau de risco é maior.
Claro. É muito fácil comprar uma obra com 20 anos já validada pela crítica.

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Economista de 51 anos, começou a coleccionar arte na viragem do milénio, e já juntou cerca de 1800 obras de arte contemporânea portuguesa, sobretudo dos últimos 30 anos Enric Vives-rubio

O que é que as obras de arte têm de lhe transmitir para sentir o impulso de as ter?
Há uma coisa que não sei se consigo descrever bem: as peças têm de mexer comigo, de me provocar alguma sensação, de bem-estar, de prazer. E isto não passa necessariamente por critérios de beleza. O gosto pode evoluir e pode ser educado. O meu foi educado a ver muita arte. E a perceber por que razão há obras admiradas por muita gente que não me dizem nada e outras que ninguém gosta e de que eu gosto imenso. Não consigo descrever o gosto para além disto — é algo que me causa sensações positivas.

Para além do gosto, procura obras que tentam fazer reflexões sobre o que está a acontecer à nossa volta?
Eu não procuro, mas gosto de ver quando isso acontece. Independentemente das concepções políticas que na maior parte dos casos estão envolvidas nesse tipo de obras, acho estimulante ver a abordagem dos artistas que escolhem esses caminhos. Não faço disso um tema da colecção, mas tem acontecido ter obras influenciadas por questões sócios-culturais ou mesmo questões políticas.

Começou com o desenho e a pintura e só depois passou para escultura e fotografia...
No início tinha alguma desconfiança em relação à fotografia, menos em relação à escultura, mas fui reconhecendo que a fotografia passou a fazer parte da arte contemporânea. A escultura faz parte desde sempre, claro. Mas se hoje não se tiver fotografia numa colecção de arte contemporânea, ela fica incompleta. O mesmo se pode dizer em relação ao vídeo, mas aí tenho mais dificuldade. A partir de determinada altura, achei que a fotografia era um meio tão válido como a pintura ou o desenho. A forma como os artistas ligados à fotografia trabalham é essencial para dar esse âmbito global a uma colecção.

Desde há quanto tempo passou a integrar fotografia?
Há uns dez anos.

Começou com que autores?
Não gosto muito de nomear autores. Mas vou citar alguns que tenho na colecção: João Penalva, António Júlio Duarte, José Pedro Cortes, André Príncipe, Duarte Amaral Neto, Tito Mouraz, Brígida Mendes, Helena Almeida, Jorge Molder e vários outros artistas que para além da fotografia trabalham com outros suportes, como o Pedro Cabrita Reis ou a Ana Jotta.

Como vê a arte portuguesa actualmente?
Nos últimos dois ou três anos, noto um grande dinamismo. Meço isso pelo número de exposições que há no país. Tento ir a muitas. Há dias em que há cinco ou seis inaugurações de artistas bons. Se calhar não são as seis de topo, mas é possível que as outras quatro sejam. Acho fantástico haver tanta produção artística. E às vezes até me pergunto como há dinheiro para se produzir tanto em Portugal. Noto ainda que, apesar de sermos um país pequeno, o mercado é mais aberto do que era há uns anos. Então se falarmos de há 40 anos, o círculo era dominado por duas ou três galerias, que faziam a história e o mercado. Hoje em dia não é assim. Há muitos espaços independentes, onde se mostra boa arte. Estou bastante optimista.

Esse lado mais poroso e alternativo do mercado é bom para um colecionador?
É bom para toda a gente, sobretudo para os artistas, que têm hoje mais vias por onde canalizar o seu trabalho. Por outro lado, também noto que há cada vez mais artistas a olhar para o mundo como o mercado para o seu trabalho, sobretudo os mais jovens. Têm uma grande vontade de se darem a conhecer internacionalmente. Conheço artistas que nunca ou raramente fizeram exposições em Portugal mas que já fizeram várias no estrangeiro. Isso é fantástico porque estão a ajudar a abrir novos caminhos para a arte contemporânea portuguesa. Funcionam como embaixadores da cultura portuguesa. E é bom ver representações diplomáticas portuguesas a apoiarem exposições de artistas nacionais, como é o caso da embaixada de Portugal em Berlim. Um país também se afirma pela arte.

Segue o trabalho de algum artista em particular?
Como disse, não gosto muito de citar nomes, mas não posso deixar de referir duas artistas de quem tenho núcleos relevantes: a Ana Jotta, que é uma das artistas mais representadas na colecção, e a Luísa Cunha. Mas também posso citar uma artista mais jovem, como a Sara Bichão.

Quando decidiu tornar a sua colecção pública?
Sempre achei que a arte devia ser vivida. Daí ter optado por comprar quase só obras de dimensão caseira, para um espaço doméstico. A dada altura achei que tinha reunido um conjunto de peças que podiam despertar interesse de outros. A arte deve ser partilhada. Há uns quatro anos embarquei neste projecto de tornar a colecção pública. Já tinha visto outros projectos semelhantes em Portugal, com o pioneirismo de António Cachola, em Elvas, e já tinha visto outros projectos internacionais. Depois, conheci a Adelaide Duarte, que é doutorada em Museologia e Coleccionimo Privado, que me foi ajudando a inventariar a colecção e com quem fui trocando ideias. Foi ela que me ajudou a tornar a colecção pública. Para isso acontecer, defini dois critérios: não podia ser em Lisboa, porque a cidade já tem muitas coisas; e teria de estar até uma hora e meia de Lisboa. É uma distância fácil. Falei com 24 câmaras municipais. Mandei cartas a todas e, à excepção de duas, todas responderam. Muitos gostariam de ter a colecção, vários não tinham condições. Até que surgiu Abrantes, que gostaria e teria condições para acolher a colecção.

Mas porque o fez? Acha a sua colecção representativa da história da arte contemporânea portuguesa?
Sim, mas não sou pioneiro nisso. Simplesmente concluí que fazia todo o sentido torná-la pública. Não faz sentido ter as coisas armazenadas, até porque no limite as peças estragam-se, mesmo quando estão bem armazenadas. Os artistas vão matar-me por estar a dizer isto, mas a arte é como os automóveis, se não andam estragam-se. A arte se não é mostrada, estraga-se. Tenho muitas obras que ao longo dos anos foram sendo emprestadas. Percebi que era o momento de ter um poiso certo para a colecção. Ao partilhá-la, eu e a minha mulher, cumprimos uma quota-parte na área da responsabilidade social. Fiquei muito contente por poder festejar a assinatura do protocolo com a primeira exposição da colecção, e logo no ano em que Abrantes comemorou os cem anos da sua elevação a cidade. Dá imenso prazer ver as obras em diálogo, ver os artistas divulgados.

Qual é a dimensão da colecção? Está toda inventariada?
Está quase toda inventariada e são cerca de 1800 obras.

E como espera conseguir tornar esta colecção viva?
O grande objectivo de tornar a colecção pública foi o de contribuir para a divulgação da arte e dos artistas portugueses. O que tenho acertado com Abrantes é que teremos exposições da colecção, exposições que dialogam com ela e exposições individuais de outros artistas, como esta agora de António júlio Duarte. Acho que isso vai tornar a programação viva e variada. E tornará o município mais vivo. E espero também poder continuar a acrescentar obras à colecção, talvez não com a força com que o fiz nos últimos anos, porque os recursos não dão para tudo.

Porque escolheu o trabalho White Noise para a abrir a programação do Quartel, onde vai ficar a sua colecção?
Conheço a obra do António Júlio Duarte. Não só a conheço como a admiro, e admiro-o enquanto artista. Na minha opinião, o trabalho dele não tem tido a divulgação e o reconhecimento que deveriam ter. Decidi com o município que devíamos ter uma exposição de fotografia para o arranque e pensei em White Noise, um trabalho que não tinha sido ainda mostrado na sua totalidade, e que é fantástico.

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António Júlio Duarte, cortesia Galeria Pedro Alfacinha, Lisboa
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António Júlio Duarte, cortesia Galeria Pedro Alfacinha, Lisboa

Esta exposição marcará uma transição deste espaço que até aqui tinha uma programação municipal, é isso?
A galeria já existia, mas mudou de nome para Quartel – Galeria de Arte Contemporânea de Abrantes/Colecção Figueiredo Ribeiro. Esta é a primeira exposição no Quartel com esta nova designação e local de residência da colecção. Vamos ter mais duas exposições este ano e depois aquele espaço será remodelado e ampliado para receber a colecção. As obras devem terminar no final de 2018. Tenho muita esperança que este Quartel, que é um nome feliz porque tem a palavra “arte” no meio, possa vir a ser um espaço de arte contemporânea de visita regular.

O projecto de ampliação já está definido?
Está a ser desenvolvido pela câmara em articulação comigo e está em fase final de projecto.

E já sabe que área expositiva terá?
A ideia é passar de 300 metros quadrados para 1100, espaço onde será incluído o acervo e outras valências. É a área média para um centro cultural, que na verdade é um quartel de bombeiros. Sinceramente fiquei muito contente que Abrantes tivesse mantido este nome. É uma decisão que não tem nada a ver comigo.

Não teme que as possíveis alterações políticas no município e o surgimento de outras visões para a estratégia na cultura de Abrantes possam prejudicar a colecção?
Não há dúvidas de que a aposta de um município ou de um governo central em áreas como a cultura tem muito a ver com o perfil das pessoas que estão na liderança. O actual elenco governativo municipal ainda vai no segundo mandato. Tem mais um. Mas há esse risco. As pessoas mudam, e as presidências de câmara também podem mudar. O que não muda, em princípio, sou eu. Mas é um risco, faz parte da vida, como em tudo o que envolve a vida pública.

Já deu para perceber que preferiu assumir esse risco a ter as obras guardadas…
Claramente. Estou optimista e penso que este elenco governativo autárquico vai continuar. Mas quando mudar, haverá com certeza outras pessoas com o mesmo empenho pela área da cultura. De qualquer maneira, os contratos assinados são para serem cumpridos pelas partes. Mas isso não é uma coisa que me tire o sono.

Qual foi a última obra que comprou?
Foi ontem, um desenho de Albuquerque Mendes num leilão em Paris. É uma obra de 1982 alusiva ao 25 de Abril, é um desenho com colagens.

Prepara-se muito antes de comprar?
Já conheço muitos artistas, mas ainda me preparo quando estou perante artistas jovens e que representam novas incorporações na colecção. Tento conhecer o artista, e antes disso, para não criar expectativas, tento informar-me o melhor possível na Internet. E tento falar com duas ou três pessoas, que vão variando. Nada me dá mais satisfação do que incorporar um artista, mas não posso ter tudo. Gosto de muita coisa e não posso ter tudo o que gosto. Tenho de fazer escolhas.

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