Morreu Nicolai Gedda, um cantor para todas as estações

Intérprete sueco poliglota teve uma carreira invulgarmente longa, e foi especialmente adulado em França. Actuou por três ocasiões em Portugal.

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Nicolai Gedda DR
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O tenor Nicolai Gedda LUSA/JANERIK HENRIKSSON

Depois de uma notícia da sua morte, em Maio de 2015, que se mostrou “manifestamente exagerada” – e que chegou mesmo a ser registada na Wikipedia –, agora sabe-se que o tenor sueco Nicolai Gedda morreu mesmo, aos 91 anos. A informação foi difundida pela família esta quinta-feira, mas o desaparecimento deste que foi um dos grandes nomes do canto lírico do século XX acontecera já um mês antes, a 8 de Janeiro, em Lausanne, na Suíça.

O crítico do PÚBLICO Augusto M. Seabra classifica Nicolai Gedda como “um milagre do canto”, e destaca a versatilidade e longevidade da sua carreira, que passou pelos grandes palcos da cena musical mundial, e em que, por três ocasiões, actuou também em Portugal.

Na necrologia que lhe dedica no jornal Le Monde, Marie-Aude Roux sustenta também que Nicolai Gedda protagonizou “uma das carreiras mais fascinantes do século XX”, que, de resto, está registada numa das mais extensas discografias da história da música erudita, com mais de 200 gravações e de sete dezenas de personagens interpretadas ao longo de mais de meio século.

Outra marca da carreira de Nicolai Gedda é ter dado voz a um reportório ecléctico e universal, que vai desde a ópera barroca de Jean-Philippe Rameau, Platée (1745), que interpretou em 1957 no Festival de Aix-en-Provence, até à ópera contemporânea de Samuel Barber, Vanessa, que estreou no mesmo ano na Metropolitan Opera de Nova Iorque, sob a direcção do maestro Dimitri Mitropoulos e com encenação de Cecil Beaton.

Entre estes dois pólos, Gedda deu voz a personagens das grandes criações líricas mundiais – Don Giovanni, O Rapto no Serralho e Flauta Mágica, de Mozart; A Traviata e Rigoletto, de Verdi; Boris Godounov, de Mussorgski; A Danação de Fausto, de Berlioz; Oberon, de Weber, Fausto, de Gounod; Carmen, de Bizet… –, foi dirigido pelos maiores maestros – Herbert Karajan, um dos primeiros a reparar nele no início dos anos 50, Leonard Bernstein, ou Colin Davis –, e contracenou com figuras como Maria Callas, Elizabeth Schwarzkopf ou Victoria de Los Angeles.

Curiosamente, Richard Wagner é um compositor praticamente ausente da sua carteira de intérprete – segundo o Le Monde, limitou-se a uma experiência solitária, em 1966, em Estocolmo, com Lohengrin

Descoberto por Karajan

A capital sueca foi, de resto, a cidade onde Harry Gustaf Nikolai Gädda nasceu no dia 11 de Julho de 1925, filho de imigrantes russos. Acabou entregue aos cuidados de uma tia, Olga Gädda (filha sueca também de um russo imigrado), e do seu marido Mikhail Ustinov (parente distante do actor Peter Ustinov), fugido da Revolução de 1917.

Com os pais adoptivos, e com apenas quatro anos de idade, radica-se em Leipzig, onde acrescenta o alemão às suas duas línguas maternas, o russo e o sueco. Em 1935, com a ascensão de Hitler ao poder, a família Ustinov vê-se uma vez mais na contingência de emigrar, e regressa à Suécia.

A formação musical, Nicolai iniciou-a ao lado do pai adoptivo nos coros da igreja ortodoxa russa, e depois com um professor “wagneriano”, Carl Martin Oehmann.

Obrigado a comparticipar para a economia de uma família de fracos recursos, emprega-se como caixa num banco, enquanto continua a cantar na igreja. A conquista de um prémio com o nome de uma famosa soprano sueca, Kristina Nilsson, dá-lhe acesso a uma bolsa de formação na Academia Real de Música de Estocolmo.

A carreira começa verdadeiramente quando, aos 26 anos, sobe ao palco da Ópera da capital sueca no elenco de Le Postillon de Longjumeau (1836), do compositor francês Adolph Adam. A sua actuação chama a atenção do maestro Herbert von Karajan e do produtor discográfico britânico Walter Legge. Karajan convence-o a viajar até Itália, onde grava para a RAI Édipo Rei, de Stravinsky, e, no ano seguinte, sobe ao palco do La Scala de Milão para ser Don Octávio no Don Giovanni, de Mozart. Legge acena-lhe com um contrato para gravar para a EMI Boris Godounov, de Mussorgski.

A carreira estava lançada. Sucedem-se as produções e actuações nos principais palcos do mundo: Ópera de Paris, Covent Garden (Londres), Festival de Aix-en-Provence (França), Ópera de Viena e Festival de Salzburgo (Áustria), Metropolitan de Nova Iorque (EUA)… Mas também Portugal, onde cantou por três ocasiões: duas no Teatro São Carlos, a 1 e 3 de Maio de 1959, com a ópera Fausto, de Gounod; e a 27 de Março de 1993, num recital com Victoria de Los Angeles, acompanhados pelo pianista australiano Geoffrey Parsons; e outra nos Coliseus do Porto e de Lisboa, respectivamente a 29 e 30 de Junho de 1961, no âmbito do V Festival Gulbenkian de Música, num concerto coral-sinfónico com a Missa de Requiem, de Verdi, com o Orfeão Donostiarra e a Orquestra Sinfónica da Rádio de Hamburgo, dirigidos pelo maestro Hans Schmidt-Isserstedt.     .

No total, conta a jornalista do Le Monde, foram 367 récitas de 28 produções operáticas, entre 1952 e 1983. Mas Nicolai Gedda cultivou também as operetas, o Lied, as canções. “Além da facilidade nos agudos, o tenor sueco possuía uma dicção notável em todas os idiomas, um fraseio de uma grande elegância e um grande domínio dos cambiantes do colorido vocal”, escreve Marie-Aude Roux, salientando ainda a relação "amorosa" que o tenor mantinha com as palavras, “dotado de uma técnica irrepreensível, que sempre soube conservar a subtileza e a leveza”.

Depois de em 2001 e 2003 ter ainda feito gravações de Turandot, de Puccini, e de Idomeneo, de Mozart, fiel às suas raízes e ao começo da sua carreira Gedda despediu-se dos palcos, quando tinha já 80 anos, integrando um modesto coro russo ortodoxo.

Em 2010, o Presidente Nicolas Sarkozy atribuiu-lhe em Paris a Legião de Honra, a mais alta condecoração francesa.

Notícia actualizada às 20h12, com a referência a uma terceira visita a Portugal, aos coliseus do Porto e de Lisboa, em 1961.

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