Toni Erdmann, uma comédia do desespero
Com Toni Erdmann, a alemã Maren Ade saiu de Cannes com o fenómeno do cinema europeu de 2016, que acaba de ser nomeado para um Óscar e chega agora a Portugal. A história de um pai e de uma filha que não sabem quem o outro é, contada em tom de comédia triste, explicada na primeira pessoa.
Pergunta: como é que um filme de autor alemão com quase três horas de duração, sobre a sabotagem (metódica e, não raras vezes, hilariante) que um pai desesperado faz à vida da filha para a salvar da (suposta) infelicidade, se torna num fenómeno de popularidade mundial e acaba nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro? Maren Ade, a realizadora de Toni Erdmann, o filme em questão, não tem uma resposta. “Quando começo um filme espero sempre que passe nos festivais, mas o êxito é uma coisa na qual não penso. Nunca pensámos que o sucesso atingisse estas dimensões!”
E, contudo, aqui está a realizadora alemã a falar ao Ípsilon por Skype de Roma, onde está a encerrar os seus deveres promocionais para o filme que a colocou nas bocas do mundo. Antes de Cannes 2016, onde Toni Erdmann esteve em competição, Maren Ade (n. 1976) tinha duas longas bem interessantes —Der Wald vor lauter Bäumen/The Forest for the Trees (03), que ganhou o IndieLisboa em 2005 mas nunca estreou entre nós, e Todos os Outros (09), Grande Prémio do júri em Berlim 2009. Mas era uma cineasta algo confidencial, com uma carreira paralela de produtora com a sua firma Komplizen Film (co-produtora do Tabu e das Mil e Uma Noites de Miguel Gomes). Toni Erdmann saiu do concurso de Cannes sem prémios, numa das decisões mais contestadas do júri presidido por George Miller —mas bastou uma quantidade invulgar de críticas arrebatadas, os relatos de audiências a rebolarem no chão de riso, para a terceira longa da alemã se tornar “o” filme unânime do festival, aquele momento capaz de dar o salto para fora do circuito de festivais. Mesmo com 2h45 de duração e falado em alemão.
Coisas da vida
A profecia cumpriu-se. Toni Erdmann tornou-se num fenómeno, foi o melhor filme do ano para revistas tão insuspeitas e incompatíveis como a britânica Sight & Sound ou a francesa Cahiers du Cinéma, venceu o Prémio Lux do Parlamento Europeu e foi nomeado para o Óscar de melhor filme estrangeiro. Chega agora a Portugal, no final de um surreal périplo que Maren Ade nunca pensou atravessar —“tenho a sensação de já ter dito tudo o que tinha para dizer”, ri-se, poucos dias antes de o filme confirmar a nomeação para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro (para o qual parece ser o grande favorito). “Falta-me mais um dia de promoção e depois vou parar uns tempos, já não tenho mais nada para dizer. Nas entrevistas, conheço montes de pessoas interessantes mas são elas que fazem as perguntas e só me ouço a mim a falar. Mas sou eu quem as quer entrevistar, porque sou cineasta, quero saber coisas sobre a vida.”
E é, precisamente, sobre a vida que Toni Erdmann fala: a vida de Winfried, professor primário numa cidadezinha alemã, e a vida de Ines, a filha que mal vê, mulher de negócios moderna, consultora de sucesso colocada em Bucareste. E o modo como as duas vidas se cruzam quando Winfried decide, de repente, ir visitar Ines. Não os soubéssemos pai e filha e não o adivinharíamos, tal é o desconforto que sentem na presença um do outro. “O que me interessa mais é que as personagens não se sintam completamente satisfeitas ou felizes,” admite a realizadora. “Não sei se é um tema recorrente nos meus filmes, mas em qualquer relação há sempre algo de complicado, de conflituoso. Emoções ocultas, necessidades escondidas, coisas que não se dizem ao outro. É isso que me interessa ao contar histórias. Nem sempre é bom que exista conflito, mas não sei de nenhum filme onde ele não exista!”
O conflito, no caso de Toni Erdmann, não é apenas entre pai e filha que parecem estranhos; é entre gerações e pontos de vista sobre o mundo. “Fiz muita pesquisa para este filme e interessei-me muito pelo mundo dos negócios, das consultoras, do outsourcing”, explica Ade, que escolheu rodar na Roménia, país no limiar das Europas Ocidental e de Leste, ainda a meio caminho entre passado e futuro. “É algo que transporta automaticamente uma carga política, e não sabia muito bem como lidar com isso, porque não sou o tipo de cineasta que quer fazer filmes políticos. Não acredito em dar respostas porque não acho que tenha uma resposta. Mas interessava-me contar uma história sobre o modo como o capitalismo e a globalização afectam as relações entre as pessoas, e por isso era importante que ambas as personagens estivessem de lados quase opostos.”
Esses “lados opostos” são reflexo da própria experiência alemã no pós-Segunda Guerra Mundial, como explica Ade ao descrever as personagens que criou: “Winfried, o pai, é para mim alguém de muito alemão, um homem da geração do pós-guerra, que criou a filha segundo valores humanistas e que acredita num mundo sem fronteiras, e que é agora confrontado com uma mulher que não vê as coisas da mesma maneira. Ines acha que ele é muito ingénuo, face à complexidade do mundo, e está convencida de que está a fazer algo de bom. Para salvar toda uma companhia ela não se pode dar ao luxo de ser emocional a propósito de uma ou duas ou mil pessoas.”
Embora o conflito seja, também, político, o centro do filme é nitidamente um conflito geracional. “Há quem diga que o filme não é suficientemente político, sim... Mas não tenho uma resposta; quis apenas pegar nestas personagens e opô-las.” E como é que as opõe? Pelo humor. Winfried é um daqueles colegas alegres e brincalhões que está sempre a pregar partidas, desde enganar o carteiro fazendo-se passar por um parente em liberdade condicional ou apresentando-se numa festa social como embaixador. Quando percebe que Ines se resigna a pequenas humilhações quotidianas para poder avançar na carreira e obter a promoção que deseja, ele cria, com a ajuda de uma peruca e de uma dentadura falsa, uma personagem fictícia: Toni Erdmann, life coach, que se torna numa espécie de stalker com boas intenções, espécie de “pauzinho” caótico e burlesco na engrenagem séria e bem oleada da vida profissional de Ines. “Ele está a representar uma comédia para ela,” explica Maren Ade, “mas é uma comédia nascida do desespero. Fá-lo por amor à filha. É por isso que, honestamente, não acho que o filme seja uma comédia.” Mesmo que seja definido por muito boa gente como tal? “Ainda bem, deixe-os falar, é melhor para o filme!” ri-se. “As pessoas gostam mais de comédias do que dramas...”
Melancólico mas universal
Em parte, o humor de Toni Erdmann vem também do modo como se desenvolve organicamente, como se tudo fosse improvisado frente à câmara —e aí as 2h45 de duração, montadas numa série de “cenas” ou “quadros” que se desenrolam quase em tempo real, é importante, bem como a ideia de um humor nascido do desconforto (que, por exemplo, foi inspirada no lendário cómico americano Andy Kaufman). Ade, no entanto, desengana-nos e esclarece rapidamente que “95% do filme é construído”. “Claro que deixo os actores fazer mais takes, experimentar coisas. Gosto sempre que me tragam prendas e estou sempre aberta. Mas praticamente tudo está planificado. Porque mesmo o improviso exige muito trabalho: o ritmo certo, o movimento de câmara certo, a interpretação certa nem sempre estão no mesmo sítio ao mesmo tempo.” Confirma, ainda assim, a preocupação de deixar o filme “respirar”: “Há coisas nas quais não penso muito; acontecem naturalmente se eu seguir os meus instintos e se for atrás do que me parece certo. É importante que o ritmo da cena ou da situação, o timing, seja realista, credível. É importante que eu acredite que seja possível as pessoas chegarem àquele ponto, que as coisas possam acontecer daquela maneira. Por isso, é importante mostrar tanto os momentos em que as personagens tomam decisões como o que acontece antes ou o que acontece depois: criar uma margem de manobra para o espectador poder pensar no que se está a passar e ver a questão de vários lados.”
Nada disto seria possível se não houvesse dois actores perfeitamente entrosados com o método de Ade. Quase parece que o filme foi pensado para Peter Simonischek, no papel do pai, e Sandra Hüller, no papel da filha —mas também não. “O casting foi um processo muito longo, e é sempre algo que preciso de descobrir por mim própria, que preciso de ver em acção. Nunca teria pensado em juntar o Peter e a Sandra, e além do mais era preciso que o Winfried certo fosse igualmente o Toni certo. Cada Winfried implicaria um Toni diferente, e por isso nas audições tínhamos imensos acessórios, perucas, dentes falsos. (risos) O Peter acertou desde o princípio no Toni, e a Sandra é capaz de mostrar esta fachada da mulher de negócios sem cair no lugar-comum, o que não é nada fácil.”
Pormenor nada dispiciendo: o filme pode chamar-se Toni Erdmann, mas é Sandra Hüller, uma das mais notáveis actrizes alemãs contemporâneas, quem leva o filme aos ombros. Até porque ela é o verdadeiro centro desta história, é à sua volta e para ela que tudo acontece —coisa que Maren Ade confirma por inteiro. “Tive muito medo de chamar ao filme Toni Erdmann, porque é muito mais a história da Ines, e a Sandra toma conta do filme a partir de certa altura. E é também muito divertida. A cena da festa nua é das coisas mais divertidas e o Toni nem sequer lá está fisicamente —mas ele é, no fundo, o guia espiritual de todo o filme, e o título justifica-se plenamente.” Pelo final, perguntamo-nos se Ines aprendeu a lição que o pai, disfarçado de Toni Erdmann, lhe quis ensinar.
“Podemos mudar muita coisa em nós próprios, mas não podemos mudar de onde vimos e porque somos assim,” diz Ade. “É por isso que o filme tem ressoado desta maneira em todo o mundo. Quando falo com gente de países muito diferentes, é a questão da família que as toca. É um tema melancólico, mas universal.”