A honra perdida de John Flory

Retrato verrinoso dos últimos anos do colonialismo britânico no Oriente, a partir da experiência biográfica do autor, não deixa de ser um romance. Romanesco e tudo.

Foto
Escrito a partir da experiência biográfica do autor, não deixa de ser um romance. Romanesco e tudo. E até copioso

Num ensaio famoso intitulado Porque Escrevo (1946), e a propósito das suas motivações literárias juvenis, George Orwell recordava: “Queria escrever enormes romances naturalistas com fins tristes, cheios de descrições pormenorizadas e de imagens cativantes, e também cheios de passagens nas quais as palavras seriam em parte usadas pelo modo como soavam. E, de facto, o primeiro romance que terminei, Burmese Days, escrito aos trinta anos mas projetado muito antes, é em grande parte esse tipo de livro.” Justíssima autocrítica, ressalvado o facto de que, em Dias Birmaneses, não é só o fim que é triste, mas igualmente o meio e o princípio. Não faltam neste livro “imagens cativantes”. Por exemplo, a comparação de uma barulhenta e desordenada multidão a “uma cascata de missangas coloridas derramadas de um frasco”; ou a surpresa de um símile marinho convocado em plena selva: “Para onde quer que se olhasse, a vista era obstruída por inúmeras fileiras de árvores, com lianas e arbustos emaranhados em torno da base, debatendo-se como o mar em torno dos pilares de um cais.” (p. 159) Não faltam, sobretudo, “descrições pormenorizadas”, como aquela da mercadoria com aspecto “estrangeiro, estranho e pobre” num bazar birmanês: “Havia grandes toranjas penduradas em cordéis como luas verdes, bananas vermelhas, cestos de gambas da cor do heliotrópio e do tamanho de lagostas, peixe seco e quebradiço atado em maços, malaguetas escarlates, patos abertos ao meio e curados como presunto, cocos verdes, larvas de escaravelho do rinoceronte, porções de cana-de-açúcar […]”. A enumeração, estonteante, prossegue por mais umas boas linhas e só um instantâneo a detém numa extremidade do bazar: “[…] o sol brilhava, vermelho sangue, através do guarda-sol de um sacerdote, como que pulsando através da orelha de um gigante” (p.123). Não há, porém, exuberância descritiva que suavize o pessimismo “naturalista” que dirige a acção deste romance.

Quando ainda se chamava apenas Eric Arthur Blair (1903-1950), Orwell passou quase seis anos, entre o final de 1922 e o início de 1928, na Birmânia (actual Myanmar), como agente da Polícia Imperial Indiana. Depois de um ano a aprender o ofício em Mandalay, a antiga capital, o futuro escritor observou de perto o “trabalho sujo do império” em diversas localidades, nomeadamente em Katha, que aparece transfigurada em Dias Birmaneses como Kyauktada, uma “cidade relativamente típica da Alta Birmânia”, praticamente imutável desde os tempos de Marco Polo e que assim provavelmente permaneceria, não fora a chegada do “progresso” levado pelo Império Britânico, “que se traduziu na construção de um quarteirão de tribunais, com o seu exército de litigantes gordos mas famintos, além de um hospital, uma escola e um daqueles estabelecimentos prisionais enormes e eternos que os ingleses erigiram por toda a parte, entre Gibraltar e Hong Kong” (p. 23). A ligação do autor à Índia Britânica (na qual se integrava então a Birmânia) é, porém, anterior. Recorde-se que o escritor nasceu em Motihari, na Índia, onde o pai era funcionário colonial, e a mãe havia crescido em Moulmein, cidade da Baixa Birmânia onde Orwell esteve também colocado como polícia e que recordará mais tarde com um mal-estar e uma má-consciência muito semelhantes aos padecidos pelo protagonista de Dias Birmaneses, John Flory. Os primeiros esboços do romance datam desses anos de 1920 e na edição das obras completas feita por Peter Davison, entre vários fragmentos posteriormente rejeitados, surge um paródico epitáfio do infeliz Flory: “Here lies the bones of poor John Flory; / His story was the old, old story. / Money, women, cards & gin /Were the four things that did him in. / […] / O stranger, as you voyage here / And read this welcome, shed no tear; / But take the single gift I give, / And learn from me how not to live.” Bom resumo de um perdedor nato.

Regressado à Europa, Orwell publica o primeiro livro em 1933, Na Penúria em Paris e em Londres (edição portuguesa na Antígona), relato das suas vagabundagens nos três anos anteriores. Dias Birmaneses sairá no ano seguinte e, tal como o primeiro, teve de vencer algumas reticências. O editor inglês terá hesitado diante do retrato virulento dos “trabalhos do Império” dado no romance e Orwell acabou por ver o livro publicado primeiro nos Estados Unidos. Não sem antes ter aceitado mudar, por exemplo, a profissão de algumas das personagens, que deixaram os quadros da administração colonial e se tornaram comerciantes madeireiros… Curiosamente, a personagem que no romance exerce o cargo mais elevado da administração britânica em Kyauktada (o comissário-adjunto Macgregor), é retratada como “bondosa” e bonacheirona, surgindo quase a uma luz positiva se comparada com a intolerância e o preconceito racista das restantes (menos Flory).

A acção de Dias Birmaneses — centrada num desses “clubezinhos assombrados por Kipling”, um desses clubes reservados a europeus e que, como “em qualquer cidade da Índia”, são “o baluarte espiritual, a verdadeira sede do poder britânico” — decorre em meados dos anos 20 do século passado. A cidade fictícia, numa das margens do rio Irauádi, tinha “cerca de quatro mil habitantes, incluindo duas centenas de indianos, uma quantas dezenas de chineses e sete europeus”. O quotidiano é sufocante — literal e metaforicamente –, mesquinho, venenoso, e não há, praticamente, nenhuma personagem desenhada para nos inspirar empatia, nem do lado dos colonizadores nem do lado dos colonizados. Aliás, uma das personagens memoráveis do romance (a outra sendo Flory) chama-se U Po Kyin, um magistrado local que é o epítome de um vilão maquiavélico e corrupto. A sua amoral e perversa ambição é tão exacerbada que chega a parecer caricatural, mas é decisiva para propulsar a acção e o seu desenlace. Nascido para perder, Flory, o protagonista, é ambivalente, podendo até suscitar a nossa compaixão. O “bem-apessoado” e autocondescendente Flory detesta a medíocre companhia dos outros ingleses: “Vemos ignorantes recém-saídos da escola darem pontapés a criados de cabelo grisalho. A dada altura sentimos um ódio ardente pelos nossos próprios compatriotas e ansiamos por uma revolta nativa que afogue o Império em sangue.” Tem como único amigo um médico indiano, coisa que os restantes europeus toleram mal. As conversas entre ambos são peculiarmente cómicas, pois o médico é remetido ao papel de elogiar e defender convictamente as virtudes imperiais contra os sarcasmos de Flory. Este acaba de descobrir que dissipou quinze anos de vida solitária na Birmânia em álcool (o “cimento do Império”), prostitutas e discussões medíocres no clube. E descobre também que já não conseguiria voltar a viver em Inglaterra. Duplamente desenraizado, põe todas as esperanças na chegada de uma jovem inglesa ida de Paris. Mas o clube britânico de Kyauktada é finalmente obrigado (conveniências que o Império tece) a admitir um “nativo”. E tudo se precipita.

Retrato verrinoso, e eventualmente tendencioso, dos últimos anos do colonialismo britânico no Oriente, escrito a partir da experiência biográfica do autor, Dias Birmaneses não deixa de ser um romance. Romanesco e tudo. E até copioso.

Sugerir correcção
Comentar