Grande Prémio EDP para a obra radical do artista luso-brasileiro Artur Barrio

O artista, que nasceu em Portugal mas foi ainda criança para o Rio de Janeiro, é autor de uma obra provocadora. Barrio questiona a noção de objecto artístico e usa materiais como carne, sangue, lixo e fezes.

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Artur Barrio é um artista multimédia, com um trabalho que vai do texto e do desenho à performance Jornal PÚBLICO

O artista plástico Artur Barrio, com uma carreira de mais de 50 anos e autor de uma obra radical, é o vencedor do Grande Prémio EDP Arte 2016, foi esta sexta-feira anunciado pela Fundação EDP numa conferência de imprensa no MAAT, em Lisboa. O prémio, atribuído pela fundação da empresa de energia desde 2000, destina-se a artistas já consagrados, tem o valor de 50 mil euros e completa-se com uma exposição retrospectiva e um ambicioso catálogo.

Tal como na última edição, o júri internacional não procurou um nome óbvio para o mais relevante prémio de artes plásticas nacional e a escolha do artista luso-brasileiro é uma surpresa. Foi feita por "unanimidade", explicou na conferência de imprensa António Mexia, presidente executivo da EDP, e justifica-se "pelo interesse e relevância histórica" da carreira do artista. Uma unanimidade, acrescentou, que "é simpática, foi bom e é importante". 

Artur Barrio nasceu no Porto em 1945, mas foi ainda criança, aos dez anos, viver para o Rio de Janeiro com a família. Ele próprio define-se como um “nómada”, vivendo actualmente entre o Rio de Janeiro, Gaia e Malta. Mas Artur Barrio, 72 anos, cuja obra tem vivido num contexto brasileiro, manteve sempre a nacionalidade portuguesa, o que permitiu ao júri distingui-lo com este prémio destinado a artistas portugueses ou a artistas estrangeiros a residir em Portugal.

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Trouxas Ensanguentadas, outro nome por que é conhecida Situação T/T1 dr/Colecção Inhotim

António Mexia, que fez parte do júri, disse ainda que o Grande Prémio EDP tem sido atribuído "independentemente do artista ser mais ou menos conhecido no mercado português", procurando quem "pelo seu percurso marcou a diferença". Apesar de Barrio ser menos conhecido em Portugal, "a escolha acentua que é um português indiscutível, com uma carreira internacional", afirmou o presidente da EDP, antes de passar a palavra a Artur Barrio.

"Detesto falar em público. É como ir ao quadro negro. Fico em pânico", começou por dizer num discurso, com um perfeito acento brasileiro, que logo terminou dizendo como se sentia honrado e que o prémio era um incentivo à continuação do seu trabalho. 

Completa surpresa

"Aqui sou brasileiro, lá sou português", afirmou ao PÚBLICO numa entrevista feita antes do anúncio do prémio, acrescentando que a questão da nacionalidade é completamente irrelevante para a sua prática artística. "O prémio é uma completa surpresa, como foi com todos os prémios. Completamente inesperado, nunca imaginei. Vai ser um bafafá, uma fofoca", ironizou. Barrio foi o vencedor do Prémio Velázquez de Artes Plásticas de 2011, concedido a artista ibero-americanos pelo Ministério da Cultura de Espanha.

Depois de Ana Jotta há três anos (o prémio é trienal), Artur Barrio é o sétimo artista a receber o Grande Prémio EDP, numa linhagem que inclui nomes como Lourdes Castro (2000), Mário Cesariny (2002), Álvaro Lapa (2004), Eduardo Batarda (2007) e Jorge Molder (2010). "É uma honra estar ao lado do grande Mário Cesariny".  

Artista multimédia, com um trabalho que vai do texto e do desenho à performance, as suas obras mais conhecidas, intituladas Situações, são resultado de acções do artista com uma forte componente política de luta contra a ditadura brasileira nos anos 1960 e 1970. Situação T/T1, concebida no contexto de uma exposição, passa pelo abandono de 14 enigmáticas trouxas ensanguentadas num parque municipal de Belo Horizonte. Já 4 Dias, 4 Noites é uma experiência-limite em que percorre as ruas do Rio de Janeiro sem se alimentar ou dormir durante quatro dias seguidos. 

Nenhuma destas acções, como explicou ao PÚBLICO, são repetidas. "Nunca refaço. São efémeras e não se perpetuam". Uma situação, como aconteceu com as Trouxas Ensanguentadas, outro nome por que é conhecida Situação T/T1, "pode ter um desdobramento, mas nunca monto e desmonto". A palavra "situação", esclareceu, não tem nenhuma filosofia especial por detrás, e alguns dos espectadores, como aconteceu em Belo Horizonte nos anos 70, podem nem perceber que estão perante uma obra de arte. Provocador, usa também a palavra "choque" para descrever uma situação que acabou com a intervenção da Polícia, uma vez que as trouxas pareciam corpos ensanguentados.

Ao incluir materiais como sangue, fezes ou carne, Artur Barrio concede-lhes um estatuto de material artístico, questionando as categorias tradicionais da arte, as condições de produção e o seu consumo pelo público. Se a primeira obra em Belo Horizonte foi cuidadosamente registada em vários momentos, já a segunda resultou num caderno-livro de 400 páginas que permanece em branco e selado.

Os cadernos-livros são outro dos media fundamentais para perceber a sua obra, num artista que recusa a prática de atelier. "Não tenho atelier. Tive um, há muitos anos, quando estava em Aix [-en-Provence, em França], e correu muito mal", disse ao PÚBLICO. Artur Barrio viveu largas temporadas fora do Brasil a partir dos anos 70 - passou por Portugal em 1974 durante a Revolução de Abril -, tendo regressado ao Rio de Janeiro em 1994, já depois do sucesso crítico internacional, que começou, na sua opinião, com a exposição Out of Actions: Between Performance and the Object, 1949–1979, no MOCA em Los Angeles.

Um júri poderoso

O júri deste ano é formado por Hans Ulrich Obrist, ensaísta e director artístico da Serpentine Gallery em Londres (considerado o homem mais poderoso do mundo da arte pela ArtReview), Suzanne Cotter, directora do Museu de Serralves, Chus Martínez, directora do Instituto de Arte de Basileia, Emília Tavares, curadora do Museu do Chiado, e Nuno Crespo, curador e crítico de arte (do PÚBLICO). Mais da casa, além de Mexia, o júri inclui também Pedro Gadanho, director do MAAT (o novo museu da EDP), e João Pinharanda, antigo programador artístico da EDP e actual adido cultural em Paris.

O director do MAAT definiu-o como "um espírito acutilante em permanente questionamento do quotidiano". A exposição retrospectiva, que também faz parte do prémio, deverá acontecer, segundo Pedro Gadanho, em finais de 2019. Poder ser no novo edifício do MAAT ou na Central Tejo, onde decorreu a conferência de imprensa: "Dependendo da forma como o trabalho evoluir, será discutido qual o contexto mais adequado." Pedro Gadanho espera que o MAAT possa apresentar não só uma retrospectiva, mas também trabalhos novos.

A rir, Barrio disse que sofre de "preguiça criativa" e que é avesso a muito planeamento. "Só trabalho no momento. Eu parto do zero. Chego aqui e faço o trabalho." Em contexto institucional, o trabalho de Barrio tem passado por intervenções directas nas paredes das galerias, a que chama Experiências, e que são numeradas pelo artista tal como as Situações.

Embora a actividade artística de Artur Barrio se desenvolva no Brasil nas últimas décadas, também tem sido possível ver o seu trabalho em Portugal, mais recentemente no Museu de Serralves, no Porto, onde a última exposição aconteceu em 2012. E se em 2011 foi o nome que o Brasil levou à Bienal de Veneza, Barrio não deixou de ser contabilizado como um dos sete artistas portugueses presentes na Bienal de São Paulo de 2010 pela DGArtes (Chus Martínez era uma das curadoras), o organismo do Ministério da Cultura que apoia a internacionalização dos artistas portugueses. 

João Fernandes, subdirector do Museu Rainha Sofia em Madrid, que comissariou a última exposição de Barrio em Serralves e estava na assistência da conferência de imprensa, ficou muito contente com a atribução do prémio. "A radicalidade de Artur Barrio situa-o sempre fora das convenções que os prémios geralmente reconhecem. É bom que essa radicalidade possa ser reconhecida num espaço mais institucionalizado." O subdirector do Museu Rainha Sofia vai também mostrar a obra de Barrio numa retrospectiva do museu espanhol já no próximo ano, uma exposição, tal como no caso português, resultado do Prémio Velázquez atribuído por Espanha.

"A obra de Artur Barrio constitui, na sua singularidade radical, um caso muito particular do modo como a arte pode renunciar à sua objectualidade, numa crítica particular das suas condições de produção, circulação e consumo na sociedade contemporânea. Barrio não produz 'obras de arte'", escreveu João Fernandes para a exposição de 2012 no Porto. "Os seus projectos são constituídos por situações em que o artista utiliza materiais precários e perecíveis, muitas vezes orgânicos, que impossibilitam a sua reapropriação por parte de um sistema da arte ainda comprometido com a circulação fetichista do objecto ou do documento".

Notícia actualizada às 14h44 com conferência de imprensa de anúncio do prémio

 

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