O livro Tenho Cinco Minutos para Contar uma História é uma memória daquele jornalista, ou poeta, ou prosador, que faria 80 anos e que anda a gozar com toda a gente. É por gozo que nos manda estas crónicas repescadas em papéis, que as gravações são escassas, e que deram em voz de rádio entre 1977 e 1978, na RDP.
O homem, “coimbrinha de nascimento e alfacinha pelo local de trabalho”, ficou famoso pela participação num concurso de TV, a Cornélia, com um empreendimento familiar que fizera dele um pop star. “Aqui há quatro meses as mães aproximavam-se de mim e diziam aos meninos pequenos: ‘Vá, dá lá um beijinho ao senhor da Cornélia!’,”explica-nos ele, envergonhado por, depois de tanto beijo, ainda ter sido transformado em cromo da caderneta do concurso. O certo é que ficou famoso, mas o merecimento era maior do que a pilhéria de umas noites de TV.
Assis Pacheco vem de uma história de galeguices, de um avô que atravessou para Portugal para vender panos pelas feiras e que era pesado com o cajado nos lombos de quem lhe agourasse. Por cá instalados, os Pachecos arribaram a Coimbra e o Fernando à universidade. Fez tropa e rimas e deu em jornalista.
Como Dinis Machado, um escritor de que tanto gostava, ele dava em flanar. “Fica-se por aí, homem de poucas falas, desconfiado talvez de que a glória (ah, a glória...) não passa de um engodo das Parcas, as cabras das Parcas, dissimulando a tesoura na dobra véstia. Do que ele parece que gosta é de flanar, mais flanar do que falar, de flanar claro, diria eu.” Só que Assis Pacheco era mesmo de flanar, de falar e sobretudo de escrever.
As crónicas são o registo em papel daquelas falas. Nelas nos conta como viajou a cobrir jogos de futebol na Alemanha, ou a acompanhar um escritor, José, não se deite a adivinhar, era o Cardoso Pires, desembarcando ambos na Dinamarca para receberem toda a hospitalidade, incluindo “saborear um amável peixe de coloração encarnada, em português ‘rodovalho’, cozido na altura, como deve ser, cercado de batatas novas e, ó José, que bem me lembro, suicidado num molho branco e doce, com leite, açúcar, etc., que ia agonizando toda a história da Literatura Portuguesa dos últimos 40 anos.” O viajante gosta de Cesário Verde, vendedor de ferragens, dono de poesia ao balcão, que morreu tísico aos trinta e muito pouco, lembra o Joaquim Agostinho e antes dele o Alves Barbosa e os ciclistas perdidos por esse mundo, regista as conversas entre passageiros de eléctrico, manda recado ao Arnaut que entrou para o governo, para os assuntos sociais, é um rapaz da minha geração lá de Coimbra e dará conta do recado, conta matreiro como chegou à Conservatória para o casamento, na bicicleta do cabo enfermeiro Barra e com um grãozito na asa, para ser solenemente admoestado pelo chefe de balcão – este Assis Pacheco é uma torrente, qual flanar.
É saboroso: e não é que o oficial da censura continuou a insistir com o jornal, pela tarde de 25 de abril, que as provas estavam atrasadas, até o telefone ficar a tocar sozinho? É pícaro: revela a “sociedade aldrabófona nacional”, como aquele homem que lhe pediu duas vezes um contributo para o funeral da mesma esposa estimada com poucos anos de intervalo. É jornalista: “Sento-me na bancada, acendo um cigarro e vejo calmamente os 90 minutos de chuto na bola, divertindo-me imenso com a paranóia ambiente. No meu tempo dizíamos ‘fora o árbitro’ e a boca escaldava com tanta enormidade; hoje um estudioso poderia aproveitar os sábados e domingos para se por à la page com o calão mais recente e sofisticado, e sobrar-lhe-ia tempo para admirar como o português, esse brando de costumes, enriquece a língua por dá cá aquela finta.” Este Assis Pacheco era tudo.
Salve, Fernando.