Trump e o México, ou os bárbaros às portas do império
Trump vê na ordem liberal um fardo criado pelo Partido Democrata e rejeita-a. O mundo herdado do pós-II Guerra Mundial pode ter chegado ao fim.
1. A fronteira Sul dos EUA com o México é uma fronteira política artificial: uma linha traçada em terras quase sempre áridas e sem limites geográficos óbvios. A excepção relativa é o rio Grande, ou rio Bravo, que separa o Texas do México. Resultou dos conflitos e relações de força entre estes dois Estados do Novo Mundo — ambos antigas colónias europeias —, ocorridos na primeira metade do século XIX. O desfecho dessa confrontação foi largamente favorável aos EUA. O conflito foi uma espécie de sequela pós-colonial da rivalidade anterior, entre a Grã-Bretanha e a Espanha nas Américas. Na época, não só o poder económico e militar como a dinâmica demográfica favoreciam significativamente os norte-americanos. Hoje, os EUA são a maior potência militar e económica global, sem comparação com o México nessas áreas. Mas, em termos demográficos, a questão adquire outros contornos. Entre os mais de 320 milhões de norte-americanos há uma crescente população hispânica, especialmente de origem mexicana, bem visível nas grandes metrópoles e nos Estados do Sudoeste.
2. Os fluxos migratórios são uma constante da humanidade ao longo da sua história. Por múltiplas razões — que vão desde a procura de melhores condições de vida, riqueza e de aventura, ou fuga à guerra, a perseguições políticas, ou a discriminações religiosas ou étnicas —, as deslocações de pessoas e grupos humanos ocorreram, com maior ou menor dimensão, em todas as épocas. No mundo actual globalizado, onde existe facilmente a percepção dos contrastes de riqueza e outros — e no qual a revolução tecnológica e nos transportes encurtou drasticamente as distâncias —, os fluxos migratórios adquiriram uma intensidade e dimensão até agora desconhecidas. Quando a proximidade geográfica é grande, as fronteiras políticas são mais ou menos artificiais, e as diferenças de riqueza e de bem-estar são muito significativas, intensificam-se, mais ainda mais. É exactamente isso que ocorre entre os EUA e o México. O país mais rico do mundo, em termos de produto nacional bruto, confronta-se com uma população relativamente pobre e em crescendo, mesmo às suas portas.
3. Movimentos migratórios em massa, independentemente dos seus impactos positivos, sempre levantaram questões culturais, económicas e políticas, de maior ou menor dimensão nos territórios de acolhimento. No caso de existirem rivalidades históricas e culturais-religiosas que impregnem as identidades de quem se desloca — e de quem recebe —, o potencial de mal-entendidos culturais, de atrito e/ou de conflitos é significativamente mais elevado. É, de alguma forma, o que ocorre entre os EUA e as populações oriundas da sua fronteira Sul — especialmente com o México. A situação poderá ser, grosso modo, comparável à da Europa com o Mediterrâneo Sul e Oriental: existem similitudes nas assimetrias de riqueza e demográficas e nas rivalidades históricas (naturalmente com contornos próprios em cada caso). Se a analogia é válida, a fase de turbulência das relações do México com os EUA tem paralelismos com a conturbada relação da Turquia com a União Europeia. Em termos geopolíticos, são zonas de transição. A Turquia é uma zona de transição da Europa para o Médio Oriente. O México é uma zona de transição da América do Norte para a América Latina. Em ambos os casos, as já referidas assimetrias de riqueza e demográficas associadas às rivalidades do passado, alimentam a desconfiança a Norte e o ressentimento a Sul.
4. As relações entre os EUA e o México são complexas e configuram uma espécie de amor-ódio. Nos estereótipos mexicanos, os EUA são terra de yankees/“gringos” ricos e poderosos, que historicamente prosperaram à custa do México. Os territórios do Sudoeste dos EUA, da Califórnia ao Texas, eram mexicanos até meados do século XIX. Foram conquistados pela guerra e pressão política. Se tivessem ficado no México, este seria bem maior e mais rico. Seria um Estado poderoso e respeitado no mundo. As populações mexicanas que emigram para Norte fixam-se nesses mesmos territórios. Aí a língua espanhola com tonalidades latino-americanas, especialmente mexicanas, disputa a supremacia com o inglês/americano. Para além da história, os dois Estados estão ligados pelo Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), feito nos anos 1990, e que incluí, ainda, o Canadá. Está envolto em controvérsia desde o início. Com este, intensificou-se o investimento dos EUA no México. Impulsionou aí uma economia orientada para a exportação (fundamentalmente para o mercado dos EUA), e oportunidades de mercado para muitas empresas norte-americanas. Mas, para os críticos, levou também à deslocalização de empresas, à perda de empregos bem remunerados na indústria e ao dumping social e ambiental.
5. Make America Great Again. O slogan é originalmente da era Reagan nos anos 1980. Trump apropriou-se dele e usou-o até à exaustão na sua campanha eleitoral de 2016. A partir de 20/1 saberemos como será a sua prática política. Até agora, lembra um imperador romano chegado ao poder após o apogeu do império. Vê-o em declínio e decadente nos costumes e propõe-se regenerá-lo. Para Trump, os EUA estão desgastados pelo excesso de alianças e moralmente corroídos pelo vírus politicamente correcto. Vai restaurar a sua grandiosidade acabando com os maus hábitos da ordem liberal internacional. A NATO é obsoleta e os aliados empurraram o fardo da sua defesa para os EUA. Pôr os aliados a pagar mais e construir boas relações com a Rússia de Putin vai aliviar o fardo. Quanto aos aliados e amigos, como o Japão e a Alemanha, exportam agressivamente os seus produtos — especialmente automóveis —, dando muito pouco em troca. Não investem para criar fábricas e empregos nos EUA. Isso vai acabar. A maior ameaça vem da China, o grande rival e inimigo, político e comercial. Pretende ser a maior potência naval da Ásia-Pacífico e disputar a supremacia global. Manipula a taxa de câmbio para aumentar a competitividade das suas exportações. A China será posta no seu lugar. A questão de Taiwan é útil para a pressionar. No hemisfério ocidental, os bárbaros estão às portas. Alguns já se infiltraram no interior do território. A inviolabilidade da fronteira Sul será garantida ao longo de mais de três mil quilómetros. Será um limes mexicanus pago pelos próprios.
6. No México, tudo que se passa no seu poderoso vizinho do Norte tem grandes repercussões — e nesta altura passa-se muita coisa. A apreensão é elevada. O Tratado NAFTA era uma expressão da ordem liberal. Agora, Trump quer as empresas norte-americanas de regresso e devolver em massa os migrantes ilegais mexicanos. Tal como a maioria dos líderes europeus, Enrique Peña Nieto, o Presidente mexicano, não sabe como lidar com esta viragem. A reentrada de Luis Videgaray no seu governo, agora como Ministro dos Negócios Estrangeiros, espelha a confusão. (Tinha sido afastado do governo em Agosto de 2016, onde ocupava o cargo de Ministro das Finanças. Não resistiu à polémica de ter facilitado o encontro entre Trump e o Presidente mexicano.) O México é um dos casos onde a ordem liberal internacional, no sentido económico e político do termo, está a ser posta em causa. Aliados, amigos e inimigos dos EUA estavam habituados a essa ordem liberal e à estratégia que lhe está subjacente há setenta anos — funcionou genericamente desde o Presidente Truman, no pós-II Guerra Mundial, até Obama no passado recente. Combinava o soft power (o poder de sedução das instituições e ideias liberais e democráticas), com o hard power (um enorme poder militar global), para projectar influência no mundo. Trump vê na ordem liberal um fardo criado pelo Partido Democrata e rejeita-a. Aliados, amigos e inimigos dos EUA estão perplexos. O mundo herdado do pós-II Guerra Mundial pode ter chegado ao fim.