Autarca denuncia "trabalho escravo" no Alqueva
“É uma vergonha para o Alentejo e para Portugal a forma como continuamos a receber os trabalhadores imigrantes vindos de países pobres”, protesta o autarca da Vidigueira.
São dezenas — chegam à centena — de homens e mulheres imigrantes a dormir todos juntos num barracão sem condições sanitárias. A denúncia é do presidente da câmara da Vidigueira, revoltado com o que tem visto no seu concelho nestes tempos da apanha da azeitona. A situação repete-se, ao ritmo das colheitas sazonais, à volta do Alqueva, um empreendimento que exige muito mais mão-de-obra do que o Alentejo consegue fornecer. Para Carlos Graça, inspector da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), não há dúvidas: estamos a falar de novos escravos.
O problema da falta de mão-de-obra necessária às novas culturas em Alqueva não apanhou ninguém desprevenido. Sabia-se que existia, mas nada foi feito atempadamente para garantir os trabalhadores necessários e os empresários agrícolas viram-se forçados a recorrer às empresas de contratação. Esta necessidade de mão-de-obra e a falta de mecanismos adequados para a sua contratação “potencia a criação de redes mafiosas que alimentam novas formas de escravatura”, assinala ao PÚBLICO Manuel Narra, presidente da câmara da Vidigueira.
O autarca foi recentemente confrontado com o alojamento de entre 80 e 100 pessoas “dentro de uma oficina e outras 30 pessoas dentro de um apartamento, com homens e mulheres misturados, dispondo apenas de um chuveiro e de uma sanita”. O que é revelador dos maus tratos a que têm sido sujeitos, sublinha. “Só nos pode causar revolta e indignação”, assume o autarca, incomodado com o que tem visto no seu concelho.
Carlos Graça, que coordena uma equipa nacional de combate ao trabalho não declarado no seio da ACT, disse ao PÚBLICO que o caso da Vidigueira “infelizmente não é único”. E aponta uma outra situação que foi detectada em Serpa onde 55 pessoas estavam alojadas num T3 e “alguém” recebia pelo aluguer da casa 1530 euros por mês.
“Estamos a falar de pessoas que estão a ser escravizadas”, salienta o inspector da ACT, vincando o peso da palavra “escravizadas” porque, diz, essa é a definição que deve ter, recordando que já são vários os indivíduos condenados em tribunais portugueses por sujeitarem outros a trabalho escravo.
É que apesar deste trabalho ser remunerado — parcamente — as condições a que os trabalhadores estão sujeitos são desumanas. Para além de que dos seus salários é ainda descontado o preço do alojamento e da alimentação. A maioria vem de países asiáticos (Bangladesh, Índia, Nepal e Paquistão).
“Vai piorar”
Reportando-se à realidade presente, Carlos Graça diz que a actuação das empresas de contratação de mão-de-obra estrangeira, nas condições “degradantes” em que é feita, “é um fenómeno que está longe, mesmo muito longe de ser controlado”. É um processo evolutivo, em que os intervenientes (as empresas de contratação de mão-de-obra) se vão adequando às alterações que vão sendo introduzidas pelas autoridades portuguesas no controle e fiscalização na contratação de imigrantes. “Estamos perante indivíduos que estão bem assessorados”, facto que já levou à prisão de um advogado em Beja por estar envolvido neste tipo de expedientes.
Carlos Graça alerta para as consequências resultantes da actuação das empresas de contratação, lembrando que muitas das culturas em Alqueva “ainda se encontram numa fase embrionária e que a capacidade produtiva do empreendimento agrícola ainda vai crescer mais 35% nos próximos anos”. Ainda vai ser necessária mais mão-de-obra, reforça o inspector da ACT.
Manuel Narra, que realizou na segunda-feira uma reunião com várias instituições para debater este problema, deixou claro que o que está a acontecer, neste momento, “é mau, mas vai piorar nos próximos tempos”. O problema social que a mão-de-obra imigrante está a suscitar “é consequência dos efeitos colaterais do empreendimento do Alqueva que levou a intensificação das culturas que requerem muita gente”, analisa o autarca.
As empresas são as primeiras a reconhecer que há falta de pessoas para trabalhar o regadio. Um agricultor contactado pelo PÚBLICO, mas que pediu para não ser identificado, reconhece a “má imagem” que fica para o sector agrícola alentejano. “Não podemos deixar a azeitona na árvore, pois não temos alternativa.” Os maus tratos aos imigrantes não os deixam indiferentes, mas reconhece que para alguns, “o problema passa ao lado”.
As entidades empresariais “também têm de ter preocupações neste sentido”, critica Manuel Narra, lembrando que “não basta dizer que cumprem os contratos com as entidades empregadoras” ou então, como dizem, que “não têm que se meter nestas coisas”.
Num outro patamar de intervenção encontra-se a Cáritas Diocesana de Beja. O seu presidente Florival António Silva diz que a instituição continua a apoiar os imigrantes que chegam ao Alentejo para trabalhos sazonais e a quem “é dada roupa e alimento” quando dele necessitam. Também têm pago a viagem de regresso ao país de origem aos que não tem dinheiro para cobrir esse custo. No final de cada campanha de azeitona, tornou-se recorrente observar a presença de imigrantes abandonados à sua sorte.
Enquanto a ACT forma uma equipa de intervenção com 10 inspectores que vai actuar a nível de todo o país, Manuel Narra reclama do Governo legislação adequada às exigências e a atribuição de novos compromissos às autarquias, por exemplo no sector do alojamento, para que estas não estejam “sujeitas a constatar as situações degradantes que se têm observado”.