A ilustradora que coloriu o Portugal do século XX
Laura Costa é autora de uma obra extensa, mas pouco conhecida, cuja diversidade e importância está a ser mostrada pelo Centro de Documentação Mário Cláudio, em Paredes de Coura.
Há um exercício que podemos fazer relativamente ao nome de Laura Costa (1910-1993): se procurarmos informação no Google, obteremos apenas um par de entradas relativas à sua actividade de ilustradora; mas se entrarmos pela janela das imagens, surge-nos então uma centena de reproduções de desenhos e figuras que quem nasceu por volta de meados do século passado facilmente associa à infância, e também ao país em que cresceu.
Laura Costa – diz o designer Jorge Silva no seu blogue AlmanakSilva – “é uma das mais prolíficas ilustradoras de livros para crianças e de costumes tradicionais portugueses da década de 1940”. Mas é também das figuras mais desconhecidas nesta área. Foi para mudar esta situação que o escritor Mário Cláudio, o investigador na área da infância Sérgio Costa Araújo e a Câmara Municipal de Paredes de Coura decidiram realizar uma primeira exposição para começar a dar a conhecer melhor a dimensão e a relevância do trabalho desta ilustradora que deu forma e cor a um certo imaginário português do século passado.
Laura Costa (1910-1993) – Primeira retrospectiva da ilustradora é o título desta mostra, inaugurada em Dezembro, e que pode ser visitada no Centro de Documentação Mário Cláudio, no lugar de Venade, em Paredes de Coura, até ao início de Março.
Numa visita guiada para o PÚBLICO, Sérgio Costa Araújo, comissário da exposição, explicou que ela “é ainda muito pequena e fragmentária”, e que foi montada a partir de algumas colecções privadas, sobretudo de familiares e amigos da ilustradora. E acrescenta que a obra de Laura Costa não se limita aos anos 40, começou antes e prolongou-se praticamente até ao fim da sua vida. E se a ilustração é a sua expressão mais popularizada, a artista cultivou também a pintura e até a publicidade – como pode verificar quem visite as duas salas que acolhem a exposição naquele concelho do Alto Minho.
Na pequena vitrina do espaço de recepção, surgem exemplares de edições que povoa(ra)m o imaginário de muitos leitores: História dum Soldadinho de Chumbo, A Gata Borralheira, a Colecção Pinto Calçudo, edições da Majora, mas também da Lello, da Figueirinhas e da Livrolândia, que deram sempre uma atenção especial à literatura para crianças.
Seguindo a cronobiografia da artista, vemos depois uma sua fotografia, aos oito anos, tendo ao lado os desenhos, ainda ingénuos mas já programáticos, com que registou as colegas e amigas da escola primária (e não deixa de ser curiosa a associação com o espaço, já que o Centro de Documentação Mário Cláudio resulta da adaptação de uma velha escola do tempo do Estado Novo). Já lá se encontram os traços essenciais daquilo que virá a ser a sua linha gráfica: uma estética muito feminina, um traço redondo, adocicado e colorido, tendo como fontes os contos tradicionais portugueses e europeus, e a iconografia do mundo rural.
Mário Cláudio vê nos trabalhos de Laura Costa a expressão da “importação do desenho europeu para a infância, como ele foi feito nomeadamente pela inglesa Kate Greenaway [1846-1901] e pelo francês Hansi [Jean-Jacques Waltz, 1873-1951]”. “É interessante ver a forma como ela infantiliza o mundo adulto, numa estética muito ‘português suave’ – a família rural portuguesa muito pobre, mas sempre muito arrumadinha”, comenta o escritor ao PÚBLICO, encontrando ainda afinidades com a manga japonesa mais rural, como Heidi.
Sérgio Costa Araújo realça, no entanto, que, mesmo que muitas vezes tenha sido usada ou lida como tal, Laura Costa não teve nenhuma ligação com o Estado Novo. “A ilustração era a sua vida” – acrescenta –, e um trabalho a que se dedicou em paralelo com a actividade de professora no Colégio do Rosário, uma instituição religiosa no Porto, mesmo se não era crente.
Ainda que a sua biografia não seja ainda conhecida em detalhe – era prima do crítico e historiador de cinema Henrique Alves Costa, madrinha do arquitecto Alexandre Alves Costa e amiga de Manoel de Oliveira –, sabe-se que estudou, e formou-se, na Escola de Belas-Artes do Porto, entre 1929 e o final da década de 30, tendo frequentado, pelo meio, também a Faculdade de Ciências.
Nos primeiros três anos nas Belas-Artes, integrou o grupo Mais Além (com Augusto Gomes, Dominguez Alvarez, Guilherme Camarinha, Ventura Porfírio e Reis Teixeira), que “questionava o ensino académico e naturalista da Escola, apontando já para o modernismo”, diz o curador.
Alguns catálogos documentam a sua participação (com apenas 13 anos) no I Salão de Humoristas da Cidade do Porto, e depois em mostras na Galeria Silva Porto (1929) e no Ateneu Comercial (1931). Mas os seus trabalhos de pintura estão pouco representados na exposição.
“Decidimos optar por documentar a biografia e mostrar o seu processo criativo como ilustradora”, justifica Sérgio Costa Araújo, apontando para os cadernos de desenho, carimbos, estudos detalhados de rendas, inclusive com a utilização da fotografia, e para instrumentos como lápis, pincéis, goivas… E novamente os livros – Varinha Mágica e Ali Babá e os 40 Ladrões, a Colecção Princesinha e a Série Prata, mas também as icónicas capas para Uma Família Inglesa e A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Diniz (Colecção Ontem e Hoje, da Lello) –, os calendários com trajes regionais (para o Banco Português do Atlântico), cadernos escolares, catecismos, almanaques, e os jogos de madeira e as caixas Gata Borralheira da Majora…
Na segunda sala, uma prova tipográfica e uma selecção de primeiras páginas da edição de Natal do jornal O Primeiro de Janeiro, entre 1954 e 1976, mostram não só a evolução do seu desenho gráfico como a do lugar que a própria ilustração foi tendo na economia editorial do diário portuense: enquanto, até ao 25 de Abril de 1974, as capas eram integralmente preenchidas pelo desenho – sempre acompanhado por um poema da autora de literatura infantil Martha de Mesquita da Câmara (1895-1980) –, a primeira página do Natal de 1976 já inclui também notícias: o Conselho da Revolução a apresentar cumprimentos ao Presidente da República; o encontro de Sá Carneiro com o Presidente Ramalho Eanes a propósito da formação do novo Governo; a compra de novos autocarros para os STCP…
“Lembro-me de estar sempre ansiosamente à espera d'O Primeiro de Janeiro no Natal e no São João, por causa das ilustrações da Laura Costa”, recorda Mário Cláudio, que associa ainda a sua estética à das duas irmãs Roque Gameiro.
Na parte final da sua vida, nos anos 80, “Laura Costa foca-se mais no trabalho da pintura e nas aulas particulares que dava na sua casa no Porto”, arrisca Sérgio Costa Araújo, salvaguardando, contudo, estar ainda a estudar a biografia da artista, uma tarefa dificultada pela grande dispersão da sua obra. Apesar disso, o investigador e professor no ensino superior diz ter já identificado, no levantamento que realizou no espólio da família, “centenas de obras, que foram fotografadas e registadas”, e aponta para “trabalhos editados e impressos na casa dos milhares”.
O seu objectivo é continuar a resgatar a obra da artista da “nuvem de invisibilidade” em que tem permanecido envolta, mesmo nos trabalhos conhecidos sobre a área da ilustração e do design em Portugal.
Assim, ainda este ano, se tal se mostrar possível, Sérgio Costa Araújo pretende organizar uma grande exposição no Porto, já abarcando a vasta amplitude da obra. Até lá, os interessados em fazer esta (ainda) pequena viagem pelas criações de Laura Costa deverão contactar o Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Paredes de Coura, que égere o Centro de Documentação Mário Cláudio.
A par do acolhimento de visitas de escolas da região, o centro vai promover algumas iniciativas associadas à exposição de Laura Costa: no dia 28 de Janeiro, haverá uma degustação de gastronomia inspirada no conto infantil português, com o chef Hélio Loureiro; a 4 de Março, um encontro de ilustradores, para o qual já estão confirmadas as presenças de Manuela Bacelar, Evelina Oliveira e José Emídio. E, em Maio, o centro apresenta uma exposição de fotografia de Rafael Farias, que no ano passado realizou uma residência artística fotografando as últimas crianças a nascer nas diferentes freguesias do concelho de Paredes de Coura.