"Erguermo-nos pela liberdade de expressão"
Em vésperas de tomada de posse e numa semana marcada pelo debate em torno da liberdade de expressão e o papel dos média na era Trump, escritores e artistas americanos manifestam-se por todo o país. Eles são a face mais visível da oposição ao futuro Presidente dos Estados Unidos.
No dia 14 de Novembro, menos de uma semana após a eleição de Donald J. Trump para a presidência dos Estados Unidos, a poeta Erin Belieu escrevia na sua página de Facebook: “Não nos vamos entregar ao desespero. Juntemo-nos e activamente ajudemos a criar o mundo em que queremos viver.” Estas palavras originaram um movimento de protesto nacional e internacional que teve o seu ponto alto na escadaria da Biblioteca Pública de Nova Iorque. Ontem, dia do aniversário de Martin Luther King Jr., sol e muito frio a dar o ambiente, nomes ligados às artes e à literatura como Jeffrey Eugenides, Michael Cunningham, Laurie Anderson, A. M. Homes, Marry Karr ou Robert Pinsky juntaram-se a centenas de outros em 90 cidades de mais de 40 estados e de cinco países para reclamar o respeito pelos valores da democracia nos Estados Unidos sob o mote Writers Resist. “É vital erguermo-nos pela liberdade de expressão, pela livre assembleia, diversidade de vozes, pelas causas da nossa democracia que neste momento estão em risco”, disse ao PÚBLICO James Tager, director do programa de liberdade de expressão do PEN America, uma das mais prestigiadas associações de escritores e editores, que apoiou o protesto em Nova Iorque.
É a segunda vez em menos de dois anos que aquela escadaria serve de palco à defesa da liberdade de expressão. Em 2015, um grupo de escritores reuniu-se ali com o objectivo de chamar a atenção da opinião pública internacional para a censura na China. “Não imaginávamos que o nosso próximo protesto literário acontecesse perante ameaças à expressão livre e aberta aqui, nos Estados Unidos”, acrescentou James Tager, justificando o apoio do PEN ao Writers Resist, a plataforma nacional que nasceu das palavras de Erin Belieu e se reclama independente e pela defesa de uma sociedade livre, justa e democrática.
Em Nova Iorque, como em Chicago, Seattle, Portland, Boston e também em Londres, Zurique ou Hong Kong leram-se textos fundadores da democracia americana. Excertos da Constituição, sermões de Martin Luther King, alguns artigos e ensaios de The Federalist Papers, da autoria de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay - que promoveram a ratificação da Constituição publicados entre 1787 e 1788 - discursos de tomada de posse de presidentes anteriores, a poesia de Walt Whitman ou o soneto de Emma Lazzarus, The New Colossus, inscrito na estátua da Liberdade. “Os dias que se seguiram à eleição presidencial deixaram muitas interrogações sobre como poderíamos agir e dar voz à verdade e à justiça”, disse ao PÚBLICO a poeta Erin Hooper da plataforma Writers Resist para justificar a rápida resposta de muitos escritores à chamada de Erin Belieu.
Os tweets e a defesa da primeira emenda
Antes da eleição, durante as primárias e ao longo da campanha foram muitos os intelectuais, artistas, escritores que se manifestaram contra as posições políticas de Donald Trump. Eles encabeçavam a face mais visível da oposição ao candidato que saiu vencedor do Congresso de Cleveland, em Julho, mesmo contra a vontade de muitos republicanos, entre os quais intelectuais conservadores como Jonah Goldberg, Yuval Levin, Bill Kristol ou Peter Wehner. Alguns integraram a plataforma NeverTrump que reunia nomes republicanos, democratas e independentes apostados em fazer frente a uma possível eleição de Donald Trump que ao longo da sua campanha ia questionando o respeito à primeira emenda da Constituição, aquela que se refere à liberdade religiosa, de expressão e de imprensa, antes do que se revelaria uma sucessão de atropelos que tiveram alguns pontos altos nesta semana que antecedeu a tomada de posse e lhe valeu uma oposição ainda mais forte por parte da classe artística. “Temos visto o Presidente eleito Trump e os seus representantes ultrapassam permanentemente as críticas legítimas à imprensa, entrando no domínio da demonização dos media. Muito recentemente vimos o Presidente eleito insultar publicamente um repórter e a sua organização, e depois o seu porta-voz afirmar que se o repórter tivesse feito outra pergunta seria expulso. Antes os americanos estava preocupados com a ética no acesso ao jornalismo. Com a Administração Trump aparece uma politica de intimidação ao jornalismo”, afirma James Tager, acrescentando que o papel do PEN é tentar impedir que isso aconteça.
Resumindo os acontecimentos que levaram até este “basta”: em Julho, num comício na Carolina do Sul, Trump foi acusado de ridicularizar o jornalista Serge Kovalesk do New York Times que sofre de uma doença congénita caracterizada pela rigidez das articulações. Em Setembro, sugeria que a liberdade de expressão estava a dificultar o combate ao terrorismo e nos dias imediatos à sua vitória foram sobretudo os escritores a dar voz à perplexidade e à preocupação de ter alguém que questionava os limites da liberdade de expressão como 45.º Presidente dos Estados Unidos. Toni Morrison, Junot Díaz, Rebecca Solnit, Roxane Gay, Richard Ford assinavam textos em jornais, revistas, nas redes sociais mas o tom crítico subiu quando, uma semana depois de eleito, Trump criticou no Twitter o elenco de Hamilton, o musical que está na Broadway baseado na vida de Alexander Hamilton, um dos fundadores da América, simbolicamente interpretado por actores de origem latina e afro-americanos. Mike Pence, o homem que escolheu para seu vice-presidente, fora vaiado pela plateia quando assistia ao espectáculo e no final um dos actores dirigiu-lhe uma mensagem: “Nós, sir, [somos] a América diversificada, que está alarmada e ansiosa [com a possibilidade] de a nova Administração não nos proteger.” No dia seguinte, o futuro presidente exigia no Twitter um pedido de desculpas a Pence. "O nosso maravilhoso futuro vice-presidente foi assediado ontem à noite no teatro, pelo elenco de Hamilton, com as câmaras a disparar. Isto não devia acontecer!" E voltaria à carga com novo tweet: “Peçam desculpa!”
Hollywood veio quase em peso solidarizar-se com a Broadway e ainda não acontecera o discurso de Meryl Streep nos Globos de Ouro. No domingo, dia 8, a actriz, sem nunca nomear Trump, teceu-lhe duras críticas lembrando a “actuação” do futuro presidente nesse comício da Carolina do Sul e declarando: “desrespeito convida ao desrespeito”. Pedia ainda à imprensa que fosse mais atenta do que nunca e a Hollywood que se unisse na defesa dos valores da diversidade, liberdade e democracia. Trump reagiu com novo tweet, criticando a actriz e Hollywood respondeu maioritariamente a apoiar Streep. Faltava a conferência de imprensa de dia 11, com Trump a mandar calar o jornalista da CNN, acusando-o de pertencer a uma organização que fabrica “falsas notícias” na sequência de um relatório “comprometedor” para o futuro Presidente. Estava aberto novo debate sobre a relação dos media com a Casa Branca onde as palavras mais repetidas eram liberdade de informação e de expressão.
Estímulo à criatividade
O PEN já pusera a circular uma petição pública em defesa da primeira emenda da constituição. “Os Estados Unidos são globalmente reconhecidos por terem as protecções mais amplas e poderosas do mundo à liberdade de expressão. Mas essas protecções estão em risco”, lê-se um email enviado aos associados onde se apela à união em defesa dessas liberdades, incluindo a de informação. “Escritores, artistas e intelectuais estão na linha da frente em qualquer batalha pela liberdade de expressão (...) A liberdade de escrever e de falar é o que protege todos os nossos outros direitos, como é que se pode defender uma mudança social quando se é remetido ao silêncio?”, refere James Tager na véspera do protesto e no mesmo dia em que o escritor Malcolm Gladwell afirmou ao The Guardian que vai pedir de volta o seu emprego de jornalista no Washington Post. “Este é o tipo de situação para a qual se vive enquanto escritor, momentos de revolta e de confusão”, disse. No mesmo artigo, onde o jornal britânico ouve seis influentes escritores americanos sobre América de Trump, Marilynne Robinson, conhecida pela sua amizade com Barack Obama, confessa-se galvanizada enquanto escritora com a era Trump. “Estou francamente a viver uma espécie alegria por esta coisa bizarra ter acontecido (...) Trump trouxe-nos a um estado em que temos de produzir muito pensamento básico acerca de como a nossa sociedade pode continuar a partir deste ponto.”
Erin Hoover, do Writers Resist, diz isso ao PÚBLICO de outra forma e acrescenta um tópico: “As crises podem tornar a criatividade mais urgente para um escritor, mas também abrem os ouvidos aos leitores.” Na apresentação do seu último romance em Brooklyn, Zadie Smith, escritora inglesa que vive entre Londres e Nova Iorque, também falou desse estímulo e sublinhou a necessidade de escrever para produzir um pensamento que ajude a entender o actual momento. Mas ainda no Guardian outra escritora, Lionel Shriver, ironizava salientado o grau de entretenimento de que Trump é protagonista. “Isto pode não ser uma coisa boa, mas eu vou divertir-me de uma forma doentia. É um grande espectáculo.” E acrescenta: “O sentido de humor vai ajudar-nos mais a ultrapassar isto do que a nossa indignação.”
É a isto que alguns chamam já Trumpismo? Um pensador de direita, apoiante de Trump, que assina num blogue com o pseudónimo Publius Decius Mus definiu-o, muito resumidamente, como “fronteiras seguras, nacionalismo económico e uma política externa baseada em interesses internos. Coloca-o mais perto de uma alternativa de direita próxima dos valores nacionalistas de partidos de extrema-direita europeus do que dos republicanos que ao contrário de Trump, advogam por exemplo, o liberalismo económico.
Mas isso são teóricos a teorizar um pensamento que Trump parece não ter esquematizado e que leva alguns a perguntar, como o próprio Decius, se Trump é um trumpista. O teórico do Trumpismo, arrisca o jornalista e crítico Kaleffa Sanneh num artigo onde entrevista Decius, será Samuel Francis - “um auto-denominado paleoconservador que achava que a América precisava de um Presidente que fizesse frente à ‘globalização da economia americana’”.
Quando Plubius Decius se interroga se Trump é Trumpista quer destacar rebeldia face a uma ortodoxia de pensamento. O que, por outras palavras nos leva à “indisciplina” destacada por Malcolm Gladwell num sentido menos respeitoso do que aquele referido por Decius e limitativo do modo como poderá exercer o poder. “Ele é provavelmente demasiado preguiçoso e indisciplinado para usurpar o poder”, diz, sublinhado que um dos seus grandes erros de partida foi marginalizar as minorias. Esse é um campo onde o PEN volta a entrar em acção, com Tager a afirmar que Trump ofendeu muita gente pelo caminho até Washington. “Nós, no PEN America, estamos preocupados com o encorajamento do discurso do ódio e da intolerância e que isso resulte no silêncio das pessoas em muitas comunidades por todo o país. Gente de comunidades marginalizadas, especialmente muçulmano-americanas, mexicano-americanas, elementos da comunidade LGBT, que eles possam escolher não escrever ou expressarem-se por causa do medo de serem apontados.”
Este domingo, na escadaria da Biblioteca Pública de Nova Iorque, em muitos outros lugares do país e em cinco cidades do mundo, quando se leram textos “fundadores” da democracia, os seus protagonistas estavam animados por aquilo que James Tager classifica de “defesa dos valores mais queridos” da América.