A morte em directo
É um actor a fundir-se com a personagem, que vive os últimos dias, tristes e silenciosos, e numa progressiva imobilidade: Jean-Pierre Léaud como Luís XIV, a performance repetitiva da morte. Eis o novo filme do catalão Albert Serra.
Quarta longa-metragem do catalão Albert Serra a estrear-se em Portugal, e parcialmente rodado aqui (no Palácio de Queluz), A Morte de Luís XIV encena os últimos quinze dias do monarca francês, acamado com uma ferida gangrenada na perna que lhe foi fatal. O monarca é o lendário Jean-Pierre Léaud, rosto mítico da nouvelle vague (e rosto “fundador”, filmado adolescente por Truffaut em Os 400 Golpes) e o filme praticamente não sai dos aposentos dele, tal como as câmaras quase não abandonam o rosto dele, numa longa despedida da vida. Albert Serra diz que foi isso que ele e Léaud encontraram no rosto do actor: “a banalidade repetitiva da morte e o mistério da morte”.
A Morte de Luís XIV é possivelmente o mais minimalista dos seus filmes…
Ou o menos excêntrico… Mas talvez, sim. Há como nos outros um acontecimento do passado, a morte do rei, mas que é vivido como um momento presente. Há uma unidade de espaço, de tempo e de acção, que convida muito a uma ideia de performance.
Que foi um pouco a origem do projecto, não é?
Sim, foi uma encomenda do Museu Pompidou, tínhamos que fazer uma performance com o Jean-Pierre [Léaud] no espaço do museu. Todos os dias, durante quinze dias, ele a morrer live no museu. Claro que a rodagem foi diferente mas o espírito foi semelhante. Fechamo-nos primeiro em Bordéus e depois aqui [no Palácio de Queluz], e mantivemos o princípio de filmar como se registássemos uma morte a acontecer em directo. E se possível conservando algum mistério, alguma expectativa, que eu penso que a intensidade do Jean-Pierre consegue muito bem.
Todos os seus filmes têm alguma relação com a História. De onde veio o interesse por este episódio específico?
Bom, à partida a ideia implicava uma relação com a cultura francesa. Lembrei-me de Saint-Simon [1675-1755], de que gosto muito como escritor, sobretudo a parte das memórias que se relaciona com Luís XIV e com a morte dele, os quinze dias finais. Que era o apropriado para fazer no museu. Claro que depois era preciso esquecer Saint-Simon, porque as virtudes da escrita dele não servem para um filme assim. Era preciso inventar, criar. Mas o ponto de partida foi este amor por Saint-Simon. E claro, pela cultura francesa, pela história de França.
E viu em Léaud, imediatamente, Luís XIV?
Há nele, fisicamente, que por instinto vejo como um tipo muito francês, para mim era muito adequado.
E foi fácil?
Muito fácil. Gostei imediatamente dele. Como pessoa, independentemente dos méritos de actor. E isto foi determinante.
Até porque é a primeira vez que trabalha com um actor profissional…
Exacto, e gostei do Jean-Pierre pelo mesmo motivo que gosto de não-profissionais: nada a ver com o talento de actor, mas porque a cara é interessante, ou a presença, ou a personalidade. E com ele foi o mesmo.
Uma coisa curiosa é que, sendo ele um actor mítico, essa dimensão é apagada no filme. Não se constrói como referência. Pelo contrário, se a imagem que temos dele nos filmes do Godard e do Truffaut, entre outros, é a de alguém muito irrequieto e muito falador, aqui é o oposto, está imóvel e quase sempre silencioso…
Isso é um equilíbrio sempre difícil de conseguir, se o filmasse como “mito” diriam que era repetitivo, se o desligasse da sua história diriam que o estava a trair… Mas aqui é Luís XIV, não é Jean-Pierre Léaud. É um actor a fundir-se com a personagem, que vive os últimos dias, tristes e silenciosos, e numa progressiva imobilidade. Ele preparou-se muito, por si mesmo. Eu nunca lhe disse nada, nem ensaiámos, começámos a trabalhar só no primeiro de rodagem. Como uma performance, mesmo. Para ele era um grande desafio, há muito que não fazia um filme com o papel principal. E ele, que era famoso por ter uma relação com a câmara mais do que com os outros actores, percebeu logo no primeiro dia que não podia funcionar assim. Porque o modo de trabalhar a rodagem era imersivo, em continuidade, havia três câmaras em simultâneo, e ele não podia estar a pensar só num ângulo ou num enquadramento. Tinha que se concentrar nele mesmo, fechar-se em si próprio. E então a concentração e a precisão dele tornaram-se muito introspectivas. De algum modo a impotência do actor, incapaz de dominar a câmara e o enquadramento, transmitiu-se à impotência de Luis XIV, doente, acamado, a ver o seu poder desvanecer-se.
A sensação que tenho é que toda a acção do filme está concentrada no rosto dele, é o que acontece no rosto dele…
Sim, absolutamente… O rosto dele está sempre a recolher o fora de campo, a absorvê-lo. Todas as questões políticas da corte, ou as despedidas dos familiares, aparecem pelo reflexo que têm nele. Claro, não de uma maneira narrativa ou discursiva. A ideia era que ele fosse uma esponja a absorver tudo. O mistério do filme vem daí. É repetitivo, e tal, sobretudo os últimos quarenta minutos…
… mas a morte é repetitiva, isso é justíssimo…
…claro, mas ao mesmo tempo é misteriosa, é uma caminhada para o desconhecido, e eu acho que o Jean-Pierre transmite isso muito bem, a banalidade repetitiva da morte e o mistério da morte.
Quando se fala de Luís XIV, há um filme inevitável: o de Rossellini A Tomada do Poder por Luís XIV, que também é muito centrado nos rituais e nos cerimoniais. Tomou-o em consideração?
Conheço-o, claro, e revi-o. Mas esqueci-me logo. Talvez haja alguns pontos de contacto, nas cenas de conjunto em que aparecem os conselheiros e os cortesãos, mas nem sequer é um filme do Rossellini de que goste muito. Ao contrário do Santo dos Pobrezinhos, por exemplo, que foi a uma referência importante quando rodei O Canto dos Pássaros (2010).
Em História da Minha Morte dizia que o confronto entre Casanova e Drácula exprimia um confronto entre racionalismo e romantismo. Alguma coisa disso se manifesta aqui, sobretudo nas cenas com os médicos e com o charlatão…
Sim, são posições diferentes perante a morte. Os médicos e os cientistas tentam racionalizar a morte, como forma de ter sobre ela algum poder, mas ela escapa-se sempre. Mas História da Minha Morte (2013) tratava de uma morte simbólica, aqui é uma morte real, é a morte de um corpo.