Há juízes a exercer em Portugal sem curso de Direito

São militares, fazem julgamentos e ganham tanto como os seus pares civis, mas só três viram os bancos de uma faculdade de Direito. Preteridos com formação recorrem ao Constitucional.

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Dos 17 militares a exercerem funções de juízes, apenas três se licenciaram em Direito Pedro Cunha (arquivo)

A questão tem dado origem a várias disputas em tribunal: pode ser-se juiz sem nunca se ter visto a cor dos bancos de uma faculdade de Direito? Para obter uma resposta, basta ler o vasto currículo dos três juízes militares que integram o Supremo Tribunal de Justiça: estiveram embarcados em fragatas, passaram pela Academia Militar e pelo Estado-Maior General das Forças Armadas, foram medalhados.

Formação jurídica é que nenhum deles tem, situação em que não estão sozinhos: nem a hierarquia da GNR e dos três ramos das Forças Armadas nem o Conselho Superior da Magistratura (CSM) a consideram um requisito essencial, exerçam eles funções nos tribunais de primeira instância, nos de segunda ou no Supremo. Dos 17 militares neste momento a exercerem funções de juízes apenas três se licenciaram em Direito, dois na GNR e um no Exército.

Como a lei é dúbia sobre as circunstâncias em que se torna aceitável este tratamento excepcional, várias nomeações de altas patentes sem curso de Direito têm vindo a ser judicialmente impugnadas – umas vezes com sucesso, outras não. O Ministério da Administração Interna está neste momento na iminência de pagar a um coronel da GNR uma avultada indemnização por causa disso (ver caso de Vítor Martins). Mas dois oficiais do Exército e da Marinha que apresentam no seu currículo não só esse tipo de licenciatura como também, num dos casos, experiência em funções jurídicas viram há um mês e meio o Supremo Tribunal de Justiça negar-lhes as pretensões de virem a ser juízes. Inconformados, tencionam recorrer para o Tribunal Constitucional. Foram ultrapassados por colegas que, apesar de não terem frequentado Direito, ocupavam há mais tempo que eles as mesmas categorias militares.

Tribunais militares extintos em 2004

Depois da extinção dos tribunais militares, em 2004, a solução que se encontrou para julgar os crimes castrenses foi incluir um militar nos colectivos de juízes dos tribunais civis. São delitos que tanto podem assemelhar-se aos do mundo civil – é o caso da corrupção, por exemplo – como assumir contornos bizarros em tempos de paz. Por exemplo: quem, em tempo de paz e mesmo sem intenção de cometer traição, revelar a alguém não autorizado “o santo, senha, contra-senha, decisão ou ordem” de serviço pode ser punido com até um ano de prisão. Se houver guerra, a moldura penal sobe até aos quatro anos. De resto, até os civis podem cometer este tipo de crimes, explica a presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses, Manuela Paupério: "Quem atentar contra os interesses militares comete um crime militar."

Esta magistrada trabalhou vários anos com juízes militares e considera o seu contributo valioso: “Doutra forma não teríamos sensibilidade para julgar este tipo de crimes”, observa. “Não me parece que a formação em Direito seja essencial”, opina, explicando que a estes juízes, que nunca podem julgar sozinhos e estão sempre em minoria nos colectivos, está vedada a redacção de sentenças. No fundo, serão uma espécie de coadjuvantes: “Mal comparado, são como os juízes sociais”, professores, psicólogos e outros leigos que ajudam os verdadeiros magistrados em litígios relacionados com família e menores ou com questões laborais. Trabalham com os tribunais em part-time e de juízes só têm o nome. Manuela Paupério lembra-se do caso de um militar da GNR acusado de desobediência por ter insistido em trocar de botas entre uma operação de combate a incêndio e uma operação de desvio de trânsito. Puni-lo pareceu-lhe excessivo, até o colega militar lhe explicar que pôr em causa ordens superiores põe em causa a lógica em que assenta o funcionamento desta instituição - e o guarda foi condenado. 

Militares no MP são assessores

Mas então porque não dar antes a estes juízes o estatuto  de meros consultores? “Foi uma opção legislativa”, responde a dirigente sindical.  Foi esse o caminho escolhido para os militares que integram o Ministério Público: têm o estatuto de assessores, e não de procuradores. Já os 17 juízes militares em funções beneficiam todos de um regime salarial equiparado ao dos juízes, das mesmas regalias e dos mesmos deveres. Para acederem ao mundo das togas e das becas, onde continuam a envergar os seus uniformes condecorados, é-lhe exigida determinada patente, consoante o tribunal a que querem aceder, e ainda que não tenham antecedentes criminais.

“É quase um prémio de carreira, um reconhecimento” cobiçado por mais do que aqueles que conseguem lá chegar, observa um jurista conhecedor da questão, que acrescenta um detalhe: “Neste momento o estatuto remuneratório dos juízes é mais simpático que o dos militares.”

O fundo da questão reside em duas palavras inseridas na redacção da lei que diz que a sua nomeação deve recair, “de preferência”, em licenciados em Direito. Indicados pela hierarquia militar em número superior ao necessário, são depois escolhidos pelo órgão de disciplina dos juízes, o Conselho Superior da Magistratura. Que entende ter o poder discricionário de, como alegou no Supremo, “preterir candidatos licenciados em Direito em benefício de outros candidatos que não tenham tal grau académico, sempre que considere que estes últimos apresentam qualidades que melhor asseguram o desempenho do cargo.”

Foi o que sucedeu no processo dos dois oficiais que vão agora recorrer para o Constitucional , um coronel do Exército  e um capitão-de-mar-e-guerra. “O caso tem sido comentado nos meios militares, e as opiniões não são unânimes”, conta o mesmo jurista, admitindo que este tratamento de excepção pode parecer chocante. “Trata-se de uma norma escrita há nove anos, e que cada vez irá fazer menos sentido”, à medida que forem ingressando nas Forças Armadas mais pessoas com formação jurídica. Mas foi a “solução de compromisso” que se arranjou para que deixasse de existir uma justiça à parte, a dos tribunais militares, explica, frisando que estes juízes são todos licenciados pela Academia Militar e parte deles passaram ainda pelo Instituto de Altos Estudos Militares (hoje Instituto Universitário Militar), que dá equivalência a mestrado.

Na Marinha desde 1976, de nada valeu ao capitão-de-mar-e-guerra Xavier da Cunha ter integrado, durante dois anos, um grupo de trabalho no Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa onde esclarecia as dúvidas dos procuradores que lidam com os crimes militares. Ou ter dirigido, por duas vezes, os serviços jurídicos da Marinha. Igualmente licenciado em Direito e ao serviço do Exército há quatro décadas, o coronel Neves Marinheiro chegou a ser felicitado por antecipação para o cargo que nunca conseguiu ocupar. Também ele não se conforma com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça – segundo a qual a margem de discricionariedade do CSM na selecção dos militares permite de facto aos seus membros escolherem quem melhor entendam. A deliberação do Supremo contou com um voto de vencido entre os sete juízes que analisaram a questão.

Que a falta de formação jurídica não é uma questão pacífica mesmo dentro da instituição militar, mostra-o o livro A Justiça Militar e a Defesa Nacional, escrito por um coronel do Exército licenciado em Direito que foi juiz militar durante sete anos, Gil Prata. “Consideramos importante que os juízes militares disponham de formação jurídica (…). Seria desejável que a condição preferencial da posse de licenciatura em Direito passasse a condição necessária”, defende sugerindo que os magistrados civis que julgam este tipo de crimes tenham igualmente formação suplementar. Sem essa qualificação, os militares nos tribunais vêem “diminuída a sua capacidade, perante os seus pares, para conhecer em matéria de direito”.

Embora entenda que ninguém melhor que os militares para aquilatar dos crimes nas Forças Armadas, Gil Prata considera excessivo que na primeira instância estejam em funções oito juízes: o volume de trabalho não o justifica. 

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