Sónia e Hugo educam Lucas, um cão para ajudar quem precisa
Chamar o elevador, apanhar um objecto que cai ao chão, trazer o telemóvel são algumas das tarefas que Sónia Silva e Hugo Roby ensinam a Lucas. O labrador está a ser treinado pelo casal de educadores caninos para ser o cão de assistência de uma jovem com uma doença neuromuscular.
Tartarugas grandes e pequenas, galinhas, belugas, abelhas e cães — Hugo Roby já perdeu a conta a quantos animais treinou. Viaja por todo o mundo para lhes ensinar comportamentos que os podem ajudar. “O treino não tem que ser associado ao circo — nem deve. Deve, isso sim, ser visto como uma necessidade do animal”, começa por esclarecer o treinador, na sala de estar da casa onde vive, em Vila Nova de Gaia. Nas paredes há mais fotografias de animais do que de pessoas e as almofadas e camas para os quatro cães são, também, em maior quantidade. A casa, o trabalho e a vida de Hugo são os animais, incluindo um que não lhe pertence. Lucas, um labrador preto de dois anos, está a ser treinado, em regime de voluntariado, para a associação Ânimas, para ser entregue à jovem Ana Isabel Gonçalves. A vice-presidente da Associação Portuguesa de Neuromusculares (APN), que se desloca numa cadeira de rodas, tem uma doença neuromuscular e, em breve, Lucas será o seu cão de assistência.
Para isso acontecer, Lucas tem que aprender todo o tipo de comportamentos e comandos, num treino diário sem hora ou lugar marcados. Pode ser na rua, em transportes públicos ou em museus: o importante é que o cão se saiba comportar em qualquer ambiente, sempre com o bem-estar e a assistência ao dono em mente. “O Lucas vai ajudá-la em tudo o que puder”, garante Hugo. Chamar o elevador, apanhar um objecto que cai ao chão, trazer o telemóvel, abrir gavetas ou pôr e retirar a roupa na máquina de lavar são algumas das tarefas que Lucas sabe executar. Só na Ânimas, mais de 100 pessoas estão em lista de espera para receberem um cão de assistência.
Quando chega ao Museu de Serralves, Lucas veste um colete azul identificativo da associação e a trela está presa numa cadeira de rodas. Anda ao ritmo do casal Hugo e Sónia Silva, que serve de cobaia para o treino do cão e se deixa conduzir numa cadeira de rodas. Lucas não tira os olhos da também educadora canina, pára quando ela pára, numa dedicação que chega a ser comovente. Daqui a uns meses, Sónia será substituída por Ana Isabel — mas a dedicação de Lucas manter-se-á. Pelos corredores de Serralves, não passa despercebido. Funcionários e visitantes de todas as idades sorriem para aquele cão, silencioso e concentrado no treino, que parece apreciar a exposição de arte portuguesa recente enquanto executa alguns exercícios: agarra e entrega uma peça de roupa caída no chão, toca com o focinho na mão, fica quieto num determinado sítio.
Um cão de assistência, define o educador de 37 anos, “deve ter um aspecto social agradável” e ser “naturalmente tranquilo”. Não é obrigatório ser de raça, trata-se de uma questão de probabilidades de erro. A raça de Lucas “gosta, normalmente, de estar com pessoas, cumprir tarefas e trazer coisas”, o que ajuda no treino. Só na idade adulta é que um cão pode estar preparado para ser um animal de assistência, razão pela qual Lucas ainda não foi entregue à futura dona. Em casa de Hugo e Sónia desde os três meses e meio, ainda não atingiu a maturidade necessária para poder acompanhar uma pessoa com dificuldades locomotivas.
Um casal de treinadores
A carreira de Hugo começou em 2002, quando se estabeleceu como educador canino. O que começou por ser um hobby acabou por se tornar numa profissão, depois de fazer um curso profissional especializado. Inicialmente só treinava cães, depois passou para outras espécies. “Apercebi-me que, de facto, acaba por ser tudo muito igual. Se eu também gosto de outros animais, porque não ajudá-los?” Em 2011, Sónia decidiu inscrever-se num dos cursos de formação que o bracarense costuma leccionar, no Hospital Veterinário do Porto. A partir do momento em que se conheceram, Sónia decidiu deixar a área da restauração e dedicar-se à educação canina. “Com as suas aulas, o Hugo mostrou-me como conseguimos que eles [os animais] cooperem connosco, não de uma forma impositiva, mas sim numa ajuda mútua”, recorda a educadora de 34 anos. O principal objectivo das aulas, sublinha, “é mostrar aos donos que o cão não tem de nos obedecer na sua natureza, fá-lo porque ganha”. “É encantador como podemos ajudar os cães e os donos.”
A ribatejana da Golegã e o bracarense decidiram mudar-se para Vila Nova de Gaia, onde vivem juntos há alguns anos com as cadelas Jenny e Matilde (que Sónia resgatou) e Salsa, outra cadela labrador, castanha, que faz apresentações da Ânimas em escolas e lares. “A Salsa está connosco há cinco anos e é uma representante da associação, é óptima porque deixa fazer festas, rebola, é muito especial para as pessoas que se sentem sozinhas”, conta Hugo, no sofá de casa, partilhado com Jenny e Matilde no momento da entrevista. Sónia trata-os por “meninos” e não passa um minuto sem lhes fazer festas ou dar beijinhos. Em casa, ela e Hugo tentam ser “apenas donos”, ainda que seja difícil desligar do trabalho que ambos partilham — sobretudo com Lucas, em treino permanente. “Aquilo que dizemos aos clientes, nós fazemos”, dizem: mimo, passeios, boa alimentação, higiene.
O trabalho como educadores caninos “é rentável”, garantem, e o casal até considera empregar mais pessoas. Neste momento, “são os próprios médicos veterinários que recomendam o Hugo pelos bons resultados”. É a melhor publicidade, asseguram: “Há donos que julgam que somos mágicos, mas nós utilizamos a ciência.” Nos 14 anos que leva na área, Hugo nota “muita diferença, felizmente”. “Há mais treinadores, muitos formados por mim, e uma maior procura por parte das pessoas devido, até, a programas de televisão”, considera, ainda que não seja fã da ideia de ser um “encantador de cães”. “É uma expressão demasiado fácil de usar, mas muito pouco assertiva.” Sónia desenvolve: “Ninguém consegue, em segundos, mudar o comportamento de qualquer ser vivo, principalmente se houver um historial. É um show off.”
Fundamental é a consciência de que o animal tem necessidades. “As pessoas têm que perceber o seu estilo de vida: quem sai de casa muito cedo e só chega muito tarde não deve ter um animal porque não vai ter tempo para ele”, prossegue a educadora. “Um cão não tem que ser tratado como uma criança, mas a responsabilidade é igual. Passear é uma obrigação, tal como comer ou beber”, comenta Hugo, que defende a adopção de cães mais velhos. “Se a pessoa não quer que o cão estrague coisas, qual é o problema de adoptar um animal mais velho?” O desconhecimento das necessidades dos cães e das suas características — algo que acontece, muitas vezes, devido a compras e adopções por impulso — faz com que as pessoas apenas recorram aos profissionais quando os problemas já existem, e não antecipadamente.
Ainda que a ideia mais comum sobre educadores e treinadores se prenda com obediência e hábitos adaptados à vida dos donos, o trabalho dos profissionais como este casal é mais vasto. Sónia integrou um projecto da Universidade do Minho no qual treinava cães de rua “para detectar fezes de animais em vias de extinção, como o lobo e a toupeira de água”. “A nossa ideia nunca foi treinar animais para espectáculos, não concordamos com isso”, Hugo faz questão de sublinhar. “Mas, já que os animais estão [em jardins ou parques zoológicos], é preciso fazer o melhor por eles, trabalhar a mente. Para um animal que deveria andar ou nadar quilómetros por dia, estar fechado não é fácil.” O treino de animais em cativeiro obedece a razões de saúde, como permitir que sejam examinados por médicos veterinários sem necessitar de anestesia, através de reforços positivos. Nunca força.
Um “trabalho de emoções”
Lucas é o segundo cão de assistência que Hugo treina, em regime de voluntariado, para a Ânimas. Esta associação, fundada em 2002, promove “intervenções assistidas por animais e incentiva trabalhos académicos dentro da área animal”, descreve Abílio Leite, voluntário e responsável pela comunicação da Ânimas. Desde essa data, 35 cães foram entregues a pessoas com deficiência, depois de devidamente treinados e fiscalizados pela Assistance Dogs Europe. A luta da Ânimas é que os cães de assistência sejam reconhecidos por todos como o são os cães-guia. Nos coletes que os cães da associação vestem há uma bolsa com o certificado de cão de assistência, o boletim de vacinas, o seguro e uma cópia da legislação, enumera Abílio. Tudo para evitar que a entrada do animal em qualquer espaço seja impedida. Faz falta “desmistificar” o “preconceito” de que só os cegos podem ter um cão de serviço. “Para um paraplégico, a cadeira de rodas é uma ferramenta e o cão de assistência também.” Para quem os recebe, após, muitas vezes, anos de espera, mas também para quem os treina.
A pergunta mais difícil das conversas com Hugo e Sónia é fácil de apontar: “Estão preparados para ficar sem o Lucas?” É neste momento que, por duas vezes, Hugo e Sónia não conseguem controlar as lágrimas. “É um trabalho de emoções, nunca se está preparado”, diz o treinador. “A ligação entre nós é extremamente forte, são quase dois anos juntos.” E Lucas, que assiste à conversa nos Jardins de Serralves, fica visivelmente incomodado por ver o (por agora) dono chorar. Ser educador, acredita Sónia, “não é só educar cães mas também a sociedade, uma maneira de estar”. “Mexe mesmo muito connosco”, admitem, por muito que tentem gerir as emoções e prevenir as lágrimas. “É um objectivo de vida”, isto de treinar cães para servir quem precisa.