António Costa, príncipe da ambiguidade esclarecida
Os tempos que vivemos apelam à utilidade metafórica da imaginação poética
"Isto está cheio de gente
falando ao mesmo tempo
e alguma coisa está fora de isto falando de isto
e tudo é sabido em qualquer lugar"
Manuel António Pina
A grande poesia – e cada vez mais me convenço que Manuel António Pina foi um dos maiores poetas portugueses da época contemporânea – tem essa qualidade extraordinária de se libertar de todas as amarras, ignorar os dados circunstanciais e adquirir vida própria. Na Teoria da literatura é conhecido o conceito de “obra aberta”. É um pouco nesse sentido que recorro a um extrato de um poema do autor supracitado. Os tempos que vivemos apelam à utilidade metafórica da imaginação poética. Doutro modo tornar-se-iam imensamente sombrios. Há na poesia, na autêntica, nessa que não consiste num cacarejar pretensamente lírico de lugares-comuns, alguma coisa que contribui para iluminar tudo o que é humano. Manuel António Pina (que recordo sempre no mesmo sítio, quase sempre na mesma mesa do restaurante Convívio, no Porto), ajuda-nos postumamente a compreender os dias que correm. Não era decerto essa a sua intenção. Os poetas têm mais que fazer do que ajudar-nos a compreender o mundo; essa talvez seja a tarefa dos filósofos, que, como é sabido, têm grande tendência para falhar em tal mister.
Olhando para o país de hoje, observando as coisas visíveis e percebendo tudo o que é do domínio do invisível, sentimos um certo socorro nas palavras poéticas de Manuel António Pina. Na verdade toda a gente fala; fala-se mesmo porventura demais na vida política portuguesa. O Presidente da República parece dar o mote: entre abraços e beijos, generosamente despendidos numa cerimónia de celebração da ginjinha, no Barreiro, até a um fúnebre comunicado relativo à morte de George Michael, o Professor Marcelo vive num estado de permanente logorreia. O Presidente é simpático, indesmentivelmente inteligente, nas horas de recolhimento deve rir-se que nem um perdido das circunstâncias que lhe são dadas viver. É quase impossível não gostar dele, mesmo quando consideramos detestável essa sobreexposição pública que não favorece a instituição Presidência da República. Chegará o dia em que ele próprio perceberá a suprema importância que o silêncio também tem na política.
Já o primeiro-ministro, como bem se notou na sua mensagem de Natal, possui uma rara qualidade: a de falar de uma coisa encenando estar a falar de coisa completamente distinta. António Costa, entre outras coisas, ficará para a nossa história contemporânea como um príncipe da ambiguidade esclarecida. Nele as palavras adquirem polivalência, mas nunca ganham autonomia. Por isso mesmo a hermenêutica dos seus discursos deveria ser uma disciplina para levar a sério, não fora o excesso de credulidade ou de impreparação de grande parte dos analistas nativos. Com António Costa – é justo que se diga – não entramos na dimensão agora aclamada da “pós-verdade”. Quando muito ficaremos no domínio da “para-verdade”, que não é assim tão rara no discurso político.
Como homem avisado que é, ele sabe que está a entrar na fase decisiva da sua acção como Primeiro-Ministro e como líder da improvável coligação das esquerdas. Por isso mesmo vai dando sinais à navegação que não devem ser desvalorizados. Por mérito próprio, soube colocar-se muito acima da solução, por natureza contraditória, que concebeu e aplicou. Uma só coisa – mas essa coisa é muito importante – deve tirar-lhe o sono: a eficácia do demiurgo esgota-se em grande parte no instante em que a sua obra nasce. Depois a obra ganha asas, e adquire de tal forma vida própria que não raro se volta contra o seu próprio criador. Nessa perspectiva, a grande interrogação que se vai colocar é a de saber em que estado ficam as vacas depois de aterragens forçadas, quando se dissipa a ilusão de um voo impossível. Haverá as que morrem e haverá as que sobrevivem, e entre estas últimas haverá as que sobrevivem intactas e as que ficarão condenadas a coxear para o resto dos seus infelizes dias.
Já da oposição se pode dizer que fez de um certo silêncio a tentativa mais ousada de permanecer viva. Pedro Passos Coelho percebe-se a si próprio e como tal apresenta-se ao país como uma espécie de Primeiro-Ministro no exílio. Acredito que isso corresponda simultaneamente ao seu estado psicológico e à sua percepção do que corresponde ao seu interesse político imediato. Depois de uns longos quatro anos de aplicação de uma política de austeridade pura e dura, assistirá agora, com perplexidade, à festiva governação que lhe sucedeu. No fundo sente-se um incompreendido, que só uma grave crise a curto prazo poderá reconciliar com o seu próprio país. Só que esse é precisamente o seu drama político mais profundo; não sendo – estando mesmo muito longe de o ser – um abutre, corre sérios riscos de o país o confundir com essa ave tão pouco popular. Pelo meio, alguns verdadeiros abutres, que os há a sério no PSD, já sobrevoam despudoramente aquilo que antecipam como o seu cadáver político. Tem a seu favor o facto de a história estar repleta de aves dessa natureza condenadas ao fracasso pela precipitação de falsas partidas.
No fundo, em 2017 o país político girará em torno destas três personalidades, todas elas respeitáveis a seu modo. E todas elas igualmente criticáveis, como é próprio de uma sociedade aberta, democrática e pluralista.