Geração perdida
Na década de 1990, Emir Kusturica, David Lynch ou Lars von Trier fizeram parte da última geração de cineastas mundiais reconhecidos por crítica e público como “autores”. Duas décadas depois, o que resta dessa geração?
Alinhem-se os nomes. David Lynch, os irmãos Coen, Quentin Tarantino, Emir Kusturica, os irmãos Dardenne, Lars von Trier, Nanni Moretti, Michael Haneke, Chen Kaige, Zhang Yimou, Takeshi Kitano, Mike Leigh, Abbas Kiarostami, Krzsyzstof Kieslowski, Jafar Panahi... Em comum, têm todos terem sido premiados em Cannes ou Veneza entre 1990 e 2000, e terem sido a última geração de cineastas a conjugar o reconhecimento da crítica com o sucesso do público, a provar que “adulto” não era palavra vã no mundo do cinema. A mais recente geração de autores de cinema que foram “canonizados” - isto é, entraram para o “cânone do grande cinema” e também, de algum modo, a “última” geração a sê-lo; deles, os nomes tornam-se muito menos unânimes ou muito mais raros.
Em Portugal, isso quer, também, dizer que foram a última geração de autores a ter público regular, fiel e constante, nas salas de cinema. Em grande parte devido ao impulso que a Atalanta Filmes de Paulo Branco deu na década de 1990 ao cinema de autor mundial, com o Forum Picoas e o King em Lisboa a tornarem-se “pontas de lança” de uma pequena “revolução” que conseguiu fazer sair da toca, e fidelizar durante alguns anos, um público que se tinha deixado perder. São os anos em que o King esgotava lotações para Segredos e Mentiras (96) de Mike Leigh ou Europa (91) de Lars von Trier – e como esquecer os meses de cartaz de fenómenos como O Carteiro de Pablo Neruda (94) de Michael Radford, Gato Preto, Gato Branco de Emir Kusturica (98), ou, já no final deste ciclo, Casamento Debaixo de Chuva (01) de Mira Nair?
O mundo, podemos (devemos) dizê-lo, mudou muito depois de 2001, e não só devido ao ”estado de guerra” que se instalou após o 11 de Setembro. A tecnologia trouxe uma série de terramotos que vieram questionar a própria noção de “ver um filme” – o DVD, a internet, o digital, o streaming, o esboroamento dos sistemas de financiamento, a perda de peso da sala, a rendição ao modelo do franchise, a transferência de talento do grande écrã para a produção televisiva… Nem todos afectaram do mesmo modo os cineastas do mundo não-anglo-americano. Toda uma geração asiática – capitaneada por gente como Jia Zhangke ou Wang Bing – ergueu-se sobre essas possibilidades alternativas de produção e divulgação, criando um espírito de resistência e desafio (que, de outros modos, podemos ver no cinema de Jafar Panahi) enquanto os seus predecessores se “rendiam” ao estatismo criativo.
Mas as problemáticas do financiamento vieram perturbar caminhos. Alguns – como Von Trier, Moretti ou os Dardenne – sobreviveram em parte graças às estruturas que criaram e que colocaram também ao serviço de outros. A Zentropa de Von Trier tornou-se num centro de produção escandinava; no caso do italiano, a Sacher, distribuidora, produtora e exibidora que resiste ainda e sempre; no caso dos belgas a sua própria produtora, Films du Fleuve. Lynch e Kusturica tiveram em comum, durante algum tempo, o mecenato da Ciby 2000 de Francis Bouygues, fugaz tentativa francesa de criar uma major do cinema de autor que produziu ainda Wenders, Bertolucci, Almodóvar ou Antonioni. Outros foram produzindo ao abrigo das especificidades do seu próprio país – o apoio regular do British Film Institute em Inglaterra ou a dobradinha Canal Plus/ARTE em França. O mundo foi mudando, as circunstâncias também; o cinema desta geração, nem por isso.
Não há aqui nenhuma vontade de fazer um exercício nostálgico, do género “antes é que era bom”. Trata-se apenas de constatar que toda esta geração tem continuado paulatinamente a trabalhar, mas que cada vez mais parece que não cumpriu as promessas que nos fez então. David Lynch? Depois do “ponto alto” de Um Coração Selvagem (90), qual coelho branco, perdeu-se nos labirintos do seu próprio país das maravilhas – e não faz uma longa há dez anos, desde o filme-limite Inland Empire (06). Os Dardenne declinam o modelo-Rosetta (99) com maior ou menor eficácia e inspiração de filme para filme, sem nunca descer a fasquia mas também sem nunca a ultrapassar. Takeshi Kitano? Sonatine (93) e Fogo de Artifício (97) acabaram por ser “fogachos” de um cineasta que provou ser muito menos interessante do que parecia. Zhang Yimou rendeu-se ao decorativismo abençoado pelo Estado. E aqueles que se mantiveram fiéis ao seu percurso e que nunca desceram abaixo de um nível mínimo – os Coens, Quentin Tarantino, Michael Haneke, Mike Leigh, Pedro Almodóvar, Nanni Moretti – vêem o seu próprio posto de “canonizados” a jogar contra si. Parecem ter lugar reservado nas competições dos grandes festivais de classe A – Cannes, Veneza, Berlim – mas deles já ninguém espera novidades, apenas mais do mesmo. O consenso é que os seus melhores filmes já ficaram para trás, mesmo que se afadiguem a negá-lo.
Há dois cineastas exemplares neste percurso. Um é o dinamarquês Lars von Trier, que, a partir de Europa (91), começou a alinhar uma série de exercícios mais ou menos provocadores, desde as “obstruções” auto-determinadas do Dogma 95 aos dispositivos despojados de Dogville (03) e Manderlay (05) e à “pornografia” de Ninfomaníaca (13). Muito do seu trabalho nos últimos 20 anos é subordinado à bravata gratuita, à vontade de não se repetir excepto na provocação. Será, certamente, de todos estes contemporâneos aquele que mais se torturou (e que mais torturou os espectadores…) no processo de (re) definir a sua identidade de cineasta e mais procurou sabotar o seu próprio estatuto de inquestionável – demos-lhe, ao menos, isso.
O outro é Emir Kusturica – o pretexto de toda esta conversa a partir da estreia de Na Via Láctea, “canto do cisne” onde o sérvio joga todas as cartas para recuperar o élan que o tornou há 20 anos ponta-de-lança desse encontro entre o autor e o público. Kusturica, como poucos dos seus contemporâneos, tinha um apelo popular que vinha da truculência paredes-meias com o burlesco das suas crónicas balcânicas, e procurou aproveitar ao máximo as portas abertas pelo reconhecimento internacional e pelo sucesso de Underground – Era uma Vez um País (94) e Gato Preto, Gato Branco (98), sobretudo depois do fracasso da aventura americana Arizona (93). Mas a popularidade do Gato Preto acabou por engavetar o realizador numa gaveta de exotismo que explorou à exaustão, mais como músico do que como cineasta com as suas digressões globais à cabeça da No Smoking Orchestra, mas também com filmes menos conseguidos como A Vida é um Milagre (04) e Promise Me This (07) (que, pasme-se, nem chegou a estrear em Portugal). O cinema, ou pelo menos aquele cinema que nos atraia no Kusturica inicial, foi-se extinguindo aos poucos para ficar apenas uma espécie de auto-caricatura (como no seu documentário sobre Maradona), de cineasta que se limitou a responder às expectativas e se deixou encostar à bananeira sem parar para pensar que uma reputação desaparece muito mais depressa do que se constrói. Nesse aspecto, embora numa outra abordagem, Kusturica tem vários pontos de contacto com Lynch, que também se desmultiplicou em projectos paralelos – a música, a meditação transcendental – ao ponto de relegar o cinema para um papel quase secundário, e também tem passado os últimos anos a navegar à boleia de um culto global.
É por aqui que voltamos atrás: à sensação inevitável de uma série de talentos dispersos, perdidos. Sensação injusta, talvez: o mundo em que esta geração cresceu era muito diferente daquele em que os cineastas que os inspiraram fizeram filmes. É apenas lógico e natural que as vanguardas de ontem correspondam ao mainstream de hoje, que o tempo se encarregue de absorver e normalizar a diferença. Mas é natural, é mesmo inevitável, olhar para trás e, libertos de todo o ruído que os rodeou no seu devido tempo, perguntar se o que vimos nestes realizadores justificou a sua “canonização”, se podemos começar a achar que estão aqui cineastas “para a eternidade” como os seus predecessores o foram. A resposta, na verdade, é muito menos positiva do que parece.