Esta comida que nos torna um povo

Os italianos comem massa, os franceses seguem receitas, a McDonald’s serve o mesmo hambúrguer em qualquer parte do mundo – são três exemplos de como a comida serve para comunicar uma identidade, seja de um povo seja global. Mas terá sido sempre assim?

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"Leave the gun, take the cannoli.” Esta é, provavelmente, uma das frases mais citadas de um dos filmes mais citados da história do cinema: O Padrinho, de Francis Ford Coppola. Mafiosos italianos e comida são uma combinação vencedora – neste caso com os bolinhos sicilianos que a mulher de Clemenza lhe tinha pedido e que estavam no banco do carro onde Rocco acabara de deixar Paulie caído com três tiros na cabeça. A arma ficou para trás – os "cannoli" não.

O cinema ajuda, sem dúvida, a construir muitos dos estereótipos que depois se tornam familiares. E Hollywood foi muito importante para consolidar a imagem dos italianos como um povo cuja identidade passa em grande parte pela comida e, em particular, pela pasta.

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Hoje a ideia do príncipe que pode comer tudo realiza-se no supermercado. E torna-se distintiva a ideia de conhecer a comida do território” Massimo Montanari

“A cultura da comida faz parte da tradição italiana de forma muito forte”, diz Massimo Montanari, um dos mais importantes especialistas da História da Alimentação, professor na Universidade de Bolonha e na Universidade de Ciências Gastronómicas de Pollenzo, que esteve recentemente em Portugal para participar na Semana da Gastronomia Italiana.

Durante a passagem por Portugal deu três conferências, uma no Instituto Italiano sobre “A Identidade Italiana na Cozinha”, e outras duas integradas num encontro do projecto DIAITA, em que falou de “Gosto. Considerações históricas sobre um conceito ambíguo” (em Coimbra) e da influência dos novos produtos vindos da América na alimentação europeia (em Lisboa).

“Há países que comunicam a ideia de serem tecnologicamente perfeitos, outros que comunicam a ideia de um estilo de vida”, explica. Um dos povos que conseguiram de forma mais eficaz identificar-se com um estilo de cozinha – e, sobretudo, com um produto, a massa – foi, sem dúvida, o italiano. Mas até que ponto essa identificação é reflexo da realidade ou foi construída? Montanari não tem dúvidas: “É construída, mas sobre algo que é real.”

A imagem dos italianos como comedores de massa não existiu sempre. Ela começa a surgir no final do século XIX, coincidindo com a unificação do país. “Nessa altura, a massa em Itália é típica sobretudo das regiões do Sul e foram principalmente os homens do Sul que emigraram para França, Bélgica, Alemanha e, sobretudo, para os Estados Unidos, levando para fora de Itália essa ideia dos comedores de massa.”

A identidade nacional vai-se construindo em grande parte pelo olhar exterior que identifica os italianos de uma certa maneira. Mas, continua Montanari, “ao mesmo tempo essa ideia estava a ser construída dentro de Itália também”. Foi no século XVII que, sobretudo por problemas ligados à produção, a dieta dos napolitanos se alterou, com a carne e os legumes a diminuir e a serem substituídos pela massa, pelo pão, pelas batatas e pela polenta, feita de farinha de milho. Com custos mais baixos, a massa tornou-se o alimento do povo.

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"Leave the gun, take the cannoli", uma das mais conhecidas frases na história do cinema ("O Padrinho", de Francis Ford Coppola) dr

Na altura da unificação de Itália, conta o professor, quando o reino de Piemonte estava prestes a conquistar o reino de Nápoles, o conde de Cavour, primeiro-ministro do Piemonte, escreve ao seu embaixador em Paris para lhe dar conta da evolução da situação e, para lhe dizer que as forças de Garibaldi já tinham conquistado a Sicília, usa uma metáfora gastronómica. “Cavour escreve ‘as laranjas [da Sicília] estão já na nossa mesa’, mas depois acrescenta, referindo-se a Nápoles, que ‘a massa ainda não está cozida’. A conquista do Sul pelo Norte é também a conquista da pasta, que se torna um elemento de unidade nacional.”

Uns anos depois surge Pellegrino Artusi (1820-1911), que se tornaria famoso com o livro La Scienza in Cucina e l’arte di mangiar bene, recolha de cerca de 800 receitas de todas as regiões, hoje considerado como uma obra fundamental noutra dimensão da unificação de Itália: a gastronómica. Com mais de 100 reedições, foi já traduzido para português mas ainda não foi editado. Em Lisboa, existe também o restaurante L’Artusi, cuja carta se baseia precisamente no receituário compilado por Pellegrino.

“Artusi interpretou esta ideia de dar à cozinha um papel de ligação nacional”, explica Montanari. “A inteligência dele está no ser o ponto de chegada de uma tradição, de contar o que se faz, de sublinhar algumas coisas como a importância da massa ou a estrutura da refeição.” É a partir do trabalho de Artusi que, entre outras coisas, se estabelece a refeição italiana, diferente da que existe no resto do mundo, com entrada, um prato de pasta e depois o prato de peixe ou carne.

Uma sopa “restauradora” das forças

A forma como se constrói esta identidade culinária e gastronómica italiana é muito diferente da de outro país-referência nesta área, a França. “Aí, a construção do modelo gastronómico é feita a nível profissional, pelos cozinheiros, que ligam sobretudo à sua profissão”, diz Montanari. “A cozinha francesa é muito codificada porque é feita de maneira profissional. É verdade que existem outras cozinhas em França, regionais, que não são profissionais, mas quando falamos da imagem da cozinha francesa é na cozinha dos chefs que pensamos.”

A importância das cozinhas regionais francesas é enorme, mas quando se fala da “escola francesa” é uma cozinha de técnicas, que se espalharam pelo mundo a partir de França e que continuam a ser hoje basilares no universo gastronómico europeu e não só. Isso tem a ver, por um lado, com a grande quantidade de livros de receitas que desde finais do século XVI foram sendo difundidos e publicados em França, muito mais do que nos outros países.

Mas também com o facto de ter sido em França que nasceu pela primeira vez, nos finais do século XVIII, após a Revolução Francesa, a ideia de restaurante moderno tal como o conhecemos hoje – eram, nesse tempo, os lugares em que se servia uma sopa “restauradora” das forças.

E, por fim, não menos importante, foi também em França que surgiu a ideia do “bom gosto”. Sendo algo que se aplica às artes em geral, é, contudo, uma expressão que deriva da gastronomia e que começa a surgir nos dicionários no século XVIII. Com esta associação às artes, a gastronomia começa a fazer o caminho que a vai afastar da ligação à saúde, à higiene e aos princípios médicos em voga e aproximá-la dos campos mais criativos, explica o também especialista em história da alimentação Jean-Louis Flandrin, num dos capítulos do livro Food – A Culinary History, que fez com Montanari e em que fala precisamente da “libertação do gourmet”.

Mas voltemos à eterna disputa entre as cozinhas italiana e francesa. Se em Itália o mais importante são os produtos e a sua difusão, ou seja, um momento “mais ligado à fase inicial do percurso alimentar e não à fase final”, em França “a construção de um património comum vem através da homologação das receitas”.

Dito por outras palavras, em Itália “há uma partilha de produtos que nasce primeiro no mercado e não na cozinha”, e “cada família tem a sua receita e a sua forma de fazer, por isso o ponto de partida é comum [o produto] e o de chegada [o prato] é muito variado”. Já a cozinha francesa tem um ponto de chegada “muito codificado, muito imperialista”.

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Chefs franceses prestam provas. Como diz Montanari: "Quando falamos da imagem da cozinha francesa é na cozinha dos chefs que pensamos" Stephan Gladieu/ getty images

Cozinha, instrumento de comunicação

Entre as diversas obras que Montanari tem publicadas sobre a história da alimentação, encontram-se L’identitá italiana in cucina e vários livros sobre a alimentação na Idade Média, época na qual é especialista. Para se perceber as construções de identidades nacionais com base na cozinha, é importante perceber que anteriormente não era assim. Não só não existiam os estados-nação como a cozinha tinha um papel muito diferente. Mas com um ponto em comum: já era um instrumento de comunicação, usado para fazer passar uma mensagem sobre quem a apresentava à mesa.

“Basta pensarmos no valor político da comida como forma de manifestação de poder da parte dos reis e dos aristocratas, que confiam à mesa a comunicação do seu estado social de modo absolutamente consciente.” Num período como a Idade Média não era a identidade nacional mas sim uma identidade de classe que se pretendia comunicar – era uma diferença entre pessoas e não tanto entre lugares.

Um excelente exemplo é a carne, que, se aparecia em pequenas quantidades na mesa do agricultor, não podia faltar, e se possível em excesso, nas mesas dos senhores. E, conta Montanari num dos textos que integram o livro Food – A Culinary History, que organizou juntamente com Jean-Louis Flandrin, “enquanto os camponeses quase sempre coziam a carne, tentando extrair tudo o que ela tinha de bom até à última gota, os nobres preferiam os assados, com a carne a ser cozinhada directamente sobre o fogo em longos espetos ou grandes grelhas.”

Houve sempre – e continua a haver – uma associação entre a carne e o fogo e a ideia de homens fortes, guerreiros. “De acordo com uma conhecida tradição antropológica” escreve Montanari, “o uso de fogo sem a mediação de água ou de utensílios domésticos comunica uma maior intimidade com o ‘cru’ – ou seja, a natureza no seu estado selvagem”.

“A ideia de território, nos séculos passados, está mais ligada ao conceito de pobreza”, diz Montanari. “Por isso, a mesa dos príncipes tem que estar para lá do território”. Era preciso apresentar produtos exóticos, de outras paragens, produtos raros que mostrassem como aquele príncipe ou aquele rei eram senhores do mundo, e, se possível, como dominavam esse vasto mundo.

O que é curioso é que, se dermos um salto até aos dias de hoje, há quase uma inversão total dessa situação. “Esta ideia de ir para além do território, de ter à mesa produtos que vêm de todo o mundo, tornou-se um comportamento de massas e deixou de ser distintivo”, sublinha o professor. “Hoje a ideia do príncipe que pode comer tudo realiza-se no supermercado. E torna-se distintiva a ideia de conhecer a comida do território.”

A raridade continua a ser valorizada. Aquilo que é considerado raro é que é diferente e esse valor é dado agora ao que é artesanal. “A globalização alimentar permite, teoricamente, que todos possam ter tudo. Por isso, nos nossos dias o chef que se quer distinguir diz que vai buscar os produtos à horta. Diz que, afinal, é um camponês. O que é uma imagem totalmente oposta à dos chefs do Renascimento ou da Idade Média que faziam vir de longe os produtos e perseguiam um ideal de globalização.” 

Todos iguais?

Acreditarmos que a comida expressa a identidade de um território é, portanto, “uma ideia moderna, que contrasta com a ideia mais tradicional da comida como sinal de diferença entre o rico e o pobre, o senhor e o camponês”. Significa que “pelo menos do ponto de vista teórico, superámos a ideia de que o senhor come diferente do camponês”.

Essa mudança de percepção deu-se, segundo Montanari, por duas razões fundamentais: “A Revolução Francesa, que inventa esta ideia de que os homens são todos iguais, que é absolutamente nova. E, depois, o nascimento dos nacionalismos, que são um produto típico da cultura romântica do Oitocentos.”

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O actor Jack Lemmon à volta com um prato de massa italiana no filme "O Apartmento", de Bily Wilder Colecção John Springer/getty images

Passa a valorizar-se não apenas a maçã, mas a maçã de determinada região, a carne dos animais criados numa zona com características especiais, os solos que dão a cada vinho uma identidade única. Curiosamente, voltando ao prato-símbolo de Itália, a massa não é um produto do território. “É um produto italiano porque é feito em Itália mas não é um produto agrícola. A farinha que está na sua base na maioria não é italiana, é importada em grandes quantidades. Mas isto só mostra que a cultura da comida não é apenas o produto do território mas a capacidade de transformar esse produto numa coisa específica.” No caso da pasta, ou melhor, das inúmeras variedades de pasta (para não falar da massa da pizza) o que é valorizado é a capacidade de criação dos italianos perante um produto tão banal.

E isso leva-nos ao tema de uma das conferências que Montanari deu em Portugal e que tem a ver com a chegada à Europa, na época dos Descobrimentos, de muitos produtos do continente americano. Muito do que hoje é visto como um produto local e portador da tal identidade nacional, do milho ao tomate, passando pela batata, não são produtos endógenos dos países europeus. Mas foram integrados de forma tão profunda na alimentação e no receituário (basta pensarmos no molho de tomate para a pasta em Itália) que já ninguém consegue sequer conceber a cozinha mediterrânica sem eles.

A teoria de Montanari é que a chegada à Europa destes produtos transformou profundamente a agricultura europeia, e, em consequência, a paisagem. Mas, acrescenta, “um pouco provocatoriamente, defendo que este impacto não foi revolucionário no que diz respeito ao sistema alimentar”. O que aconteceu, prossegue o professor, foi que esses produtos vieram precisamente “reforçar modelos de consumo tradicionais”. Como? “O milho entra na Europa sobretudo como polenta, que não é uma dimensão gastronómica americana mas sim europeia. No início, a batata é promovida como produto para fazer pão, o que era uma ilusão, mas foi usada para gnocchi, foi frita, tudo métodos de utilização muito tradicionais. O tomate só teve sucesso quando foi transformado em molho, assumindo uma forma conhecida na Europa. A malagueta entra como substituto das especiarias a um nível popular – e em consequência disso a cozinha rica abandona as especiarias. E o cacau chega mas é adocicado, com a ajuda do açúcar.”

Há, efectivamente, uma assimilação das novidades, mas estas são depois “digeridas no interior da tradição, que se alarga mas não muda de natureza”. Trata-se, mais uma vez, de uma questão de poder. “Esta é uma troca desigual, na qual há dominadores e dominados. Os dominadores absorvem as novidades e incluem-nas na própria história. Por outro lado, levam coisas. A cultura da carne chega à América com os europeus, que levam os animais. Assim como as culturas do fermento, do vinho, do azeite. Os europeus transformaram a América mas a América não transformou a Europa.”

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Montanari: "Acredito que a fast-food e o McDonald’s exprimem uma identidade. É péssimo do ponto de vista gastronómico, mas formidável do ponto de vista identitário porque exprime uma ideia de pertença ao mundo" Peter Kovalev/getty images

Contudo, na alimentação, como em tudo o resto, nada é estanque. “As identidades estão em evolução, mudam, são antigas e novas e é preciso estudar cada caso. Temos uma identidade italiana mas também europeia e mundial”. Um dos maiores exemplos da construção de uma identidade alimentar global é, diz, o McDonald’s. “Acredito que a fast-food e o McDonald’s exprimem uma identidade. É péssimo do ponto de vista gastronómico, mas formidável do ponto de vista identitário porque exprime uma ideia de pertença ao mundo. Todo o mundo come a mesma coisa.” Abre um sorriso para concluir: “É o M de Mamma, a mcdonaldização da gastronomia.”

E, acrescenta, o McDonald’s assenta também na “codificação da receita, que deve chegar sempre ao mesmo resultado, baseia-se na ideia de que há uma maneira certa de fazer as coisas”. Nesse aspecto é, no fundo, diz mantendo o sorriso, muito semelhante à cultura gastronómica francesa.

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