Uma espécie de paternidade artística
Com o fim do Teatro da Cornucópia, dizem actores e encenadores ouvidos pelo PÚBLICO, desaparece uma companhia fundamental para o teatro português, e uma escola de fazer e de ver teatro.
No Teatro da Cornucópia, durante 43 anos, aprendeu-se a fazer e a ver teatro. Não é preciso avançar muito nos testemunhos ouvidos pelo PÚBLICO para uma mesma ideia se tornar nuclear: a Cornucópia é uma escola. Uma escola de pensamento sobre o que é o teatro, de paixão desabrida pelo texto, de encontrar formas de dotar de carne e espírito a palavra e largá-la com exigência pelo trabalho do espectador. É uma obra construída com três ou quatro gerações de actores; é um corpo com duas cabeças, do encenador e actor Luis Miguel Cintra e da cenógrafa e figurinista Cristina Reis, a questionar uma e outra vez o lugar do teatro. O Teatro da Cornucópia é, em paralelo, e sem qualquer perigo de exagero, “uma das aventuras fundamentais para o teatro português como o conhecemos hoje”, segundo definição do director do Teatro Nacional D. Maria II, Tiago Rodrigues.
Para Maria Helena Serôdio, autora do livro Questionar apaixonadamente: o teatro na vida de Luis Miguel Cintra e anterior presidente da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, a Cornucópia “inventou uma outra dimensão de fazer teatro” em Portugal que designa como “quase holística”. “Sendo exigente do ponto de vista da criação teatral”, explica ao PÚBLICO, “foi simultaneamente exigente a todos os outros níveis – tratamento dos textos, comportação da arte total que é o teatro, forma de receber o público e de tornar a sua casa um lugar de encontro e de convívio”. Esse papel reservado ao público, implicando quem vê e recusando-lhe um lugar confortável e amestrado na plateia, contribui no entender de Maria Helena Serôdio para o lugar único ocupado pela Cornucópia nos seus 43 anos de existência. “Enquanto em muitos outros casos vamos ao teatro para confirmar coisas que já sabíamos, a Cornucópia convida-nos muitas vezes para algo que parece conhecido mas em que reconhecemos outros patamares e outras formas de fazer teatro. Acho que fomos sempre encontrando ali essa novidade e essa excepcionalidade.”
A responsabilização passada para o lado do público tinha paralelo, naturalmente, também no trabalho com os actores. Beatriz Batarda, que aos 17 anos reencontrou Luis Miguel Cintra nas filmagens de Vale Abraão, de Manoel de Oliveira – anos depois de ter frequentado o Teatro do Bairro Alto, casa da Cornucópia, quando o seu pai, o artista plástico Eduardo Batarda, colaborou na cenografia de alguns espectáculos num período em que Cristina Reis se ausentou do país –, foi chamada pelo encenador passados dois anos para integrar o elenco bastante jovem de O Conto de Inverno, de Shakespeare, cabendo-lhe interpretar a princesa Perdita, personagem recolhida por um pastor e criada no campo. “Acho que a ideia foi ter uma Perdita em estado bruto e não polido, porque eu não tinha qualquer experiência de teatro, de movimentação no palco, de dicção ou de projecçao de voz.” Os três anos seguintes de Beatriz foram passados com a Cornucópia, “numa relação de adoração, admiração e total disponibilidade para aprender, mais do que propriamente para propor”. “A partir de determinada altura, o Luis Miguel teria gostado que fosse mais implicada nas propostas e não apenas disponível.” Foi o encenador que a empurrou então para prosseguir estudos teatrais.
A missão de um teatro nacional
Luis Miguel Cintra foi para Beatriz Batarda, e para muitos outros actores, “uma espécie de pai artístico”. “Não foi só comigo que ele teve uma relação como tem com a vida, bastante apaixonada, de afectos verdadeiros, com espaço para todas as turbulências, para a desilusão, para as exigências, os momentos de encantamento e frustração.” Com ela houve também um momento de desilusão, quanto Beatriz aceitou um pequeno papel numa produção inglesa e rejeitou fazer O Colar, texto de Sophia de Mello Breyner que o encenador estreou em 2002, conduzindo a um afastamento que se resolveu em palco cinco anos depois, quando os dois contracenaram em O Construtor Solness, de Ibsen. “Senti esse espectáculo como um combate permanente, mas um combate verdadeiramente amoroso”, diz a actriz. “Tinha de dormir a sesta todos os dias porque ele era enorme em palco e eu ficava esgotada fisicamente. Foi uma experiência incrível e acho que consegui conquistar aos olhos dele uma relativa paridade.”
Beatriz Batarda é um dos exemplos de uma longa lista de actores que foram encontrando ali a sua verdadeira escola de teatro. Tiago Rodrigues salienta na Cornucópia essa “capacidade de se alimentar de novos artistas, alimentando-os também e fazendo-os crescer no percurso da companhia”. Cita Duarte Guimarães, Nuno Lopes ou Pedro Lacerda como nomes da sua geração cujo trajecto testemunhou de perto, e fala da casa fundada por Cintra e Jorge Silva Melo, em 1973, como “uma companhia que cumpriu também a missão de um teatro nacional”. “Pela sua missão de montar grandes textos da dramaturgia universal, tem sido uma biblioteca viva que assumiu durante muitos anos esse papel fundamental de um teatro público.”
“O fim de uma companhia é sempre uma tragédia”, acrescenta o director do Teatro Nacional D. Maria II. “Ao contrário do fim de um realizador, de um artista visual ou de um escritor, o fim de companhia de teatro é irrecuperável. Muitos portugueses nunca verão o Teatro da Cornucópia. Ao acabar a Cornucópia acaba a possibilidade de vermos a Cornucópia – isso não deixa de ser uma tragédia.”
Rodrigo Francisco, director e encenador da Companhia de Teatro de Almada, foi co-produtor de Hamlet, o clássico de Shakespeare com que Luis Miguel Cintra se despediu dos palcos enquanto actor no final de 2015. Afirmando-se “perfeitamente solidário” com as razões apresentadas para o fim da companhia,ressalva que “o fim da companhia não significa o fim do Luis Miguel Cintra como encenador e da Cristina Reis como cenógrafa”. No entanto, protesta com “a situação de indigência em que a Cornucópia se encontrava e que não é digna de uma companhia com aquela importância": "São criadores de excepção e o Estado português devia ter encontrado uma forma excepcional de os tratar.” O encenador não hesita em citar A Gaivota como o espectáculo português mais marcante da sua vida, dizendo-se, ainda assim, “um pouco pessimista” em relação a qualquer ideia de legado. “Não sei se daqui a dez anos as pessoas vão saber o que é a Cornucópia, mas desconfio do caminho que isto está a tomar. É com grande desencanto que vejo o Estado – e o Estado somos nós – deixar cair esta companhia de teatro independente.”
Maria Helena Serôdio acredita que a Cornucópia deixa sementes, embora veja como dificilmente replicável o “equilíbrio extremamente bem feito daquilo que é triste com daquilo que é alegre, daquilo que parece muito complicado e erudito com aquilo que parece de recepção fácil por parte do público”. Beatriz Batarda sabe que nunca esmorecerá em si “a interrogação permanente sobre o que é o teatro” que aprendeu com Luis Miguel Cintra e Cristina Reis. “As cabeças deles estão completamente disponíveis para a arte e para o pensamento artístico”, observa a actriz e encenadora. “É nessa plataforma de comunicação que se encontram com as pessoas e se enamoram delas. A verdadeira intimidade com os dois acontece nesse lugar de suspensão e não numa relação normal terrena.” É esse lugar de suspensão que fica agora em parte incerta.