Entre a morte e a ciência, uma reflexão necessária
Projecto de investigação de Francisca Alves Cardoso tem duração de cinco anos, entre 2015 e 2019.
Francisca Alves Cardoso quer saber até que ponto os esqueletos exumados de campas temporárias em Portugal, que os familiares não reclamaram findo o prazo legal de inumação, foram realmente abandonados. E a crise tem agora aqui importância? A antropóloga do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tem um projecto de investigação sobre essas e outras questões éticas, sociais e legais relativas às colecções portuguesas de esqueletos humanos identificados.
Ao serem declarados abandonados, os esqueletos dessas pessoas podem ir para um ossário comum, ser cremados ou até incorporados em colecções identificadas. “Questiono até que ponto estes indivíduos estão de facto abandonados. Há pessoas que não têm por hábito ir ao cemitério [onde são colocados editais sobre as exumações]. Em contexto de crise económica, há pessoas que emigraram, que se desligaram da comunidade”, diz Francisca Alves Cardoso. Ou que não têm dinheiro para uma campa definitiva. “Se não compraram uma campa definitiva, passados três a cinco anos, pode não haver lá vestígios da pessoa. Muitas pessoas não têm essa noção.”
Antes de mais, há a questão da forma como os cemitérios gerem as ossadas humanas como resíduos nos centros urbanos, onde há pouco espaço.
Mas se não houve abandono e os esqueletos acabaram numa colecção, ao abrigo de protocolos com câmaras municipais, há também uma reflexão a fazer. Qual o impacto social das práticas científicas que usam vestígios humanos para construir colecções de esqueletos identificados? Esta é uma parte do trabalho de Francisca Alves Cardoso, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia entre 2015 e 2019. “As colecções têm uma enorme importância científica, em termos da evolução humana, da compreensão da saúde no passado, na construção de modelos de análise de antropologia forense”, realça a antropóloga. “Mas independentemente da importância científica, também têm uma componente humana e comunitária e tem de se pensar nela.”
O projecto também olhará para as próprias colecções de esqueletos humanos identificados já existentes no país. Qual foi o enquadramento legal e ético dessas colecções? Qual é a percepção e opinião pública sobre o uso pela ciência de vestígios humanos exumados em cemitérios modernos? Ao mesmo tempo, pretende-se ajudar ao esclarecimento público de como são usados estes vestígios na antropologia ou arqueologia.
A preservação das colecções, como património de investigação e ensino de referência internacional, também será tida em conta, pelo que os resultados serão incluídos num documento com boas práticas sobre as colecções e um código de ética para a sua conservação. E ainda será feito um esboço de uma proposta legislativa que regule estas colecções, a enviar aos grupos parlamentares. É o primeiro projecto em Portugal a olhar para as colecções desta forma, oposta a uma “objectificação” dos vestígios humanos. “É todo um processo de reflexão sobre as colecções.”